terça-feira, 25 de setembro de 2018

UM ATLETISMO AFETIVO

#artaud | um atletismo afetivo • o teatro e seu duplo

UM ATLETISMO AFETIVO

É preciso admitir, no ator, uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos sentimentos. 

O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressalva surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde um organismo
afetivo análogo, e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro embora não aja no mesmo plano.

O ator é como um atleta do coração.

Também para ele vale a divisão do homem total em três mundos; e a esfera afetiva lhe pertence propriamente.

Ela lhe pertence organicamente.

Os movimentos musculares do esforço são como a efígie de um outro esforço duplo, e que nos movimentos do jogo dramático se localizam nos mesmos pontos.

Enquanto o atleta se apóia para correr, o ator se apóia para lançar uma imprecação espasmódica, mas cujo curso é jogado para o interior.

Todas as surpresas da luta, da luta-livre, dos cem metros, do salto em altura encontram no movimento das paixões bases orgânicas análogas, têm os mesmos pontos físicos de sustentação.

Cabe ainda a ressalva de que aqui o movimento é inverso e, com respeito à respiração, por exemplo, enquanto no ator o corpo é apoiado pela respiração, no lutador, no atleta físico é a respiração que se apóia no corpo.

A questão da respiração é de fato primordial, ela é inversamente proporcional à importância da representação exterior.

Quanto mais a representação é sóbria e contida, mais a respiração é ampla e densa, substancial, sobrecarregada de reflexos.

E a uma representação arrebatada, volumosa e que se exterioriza corresponde uma respiração de ondas curtas e comprimidas.

Não há dúvida de que a cada sentimento, a cada movimento do espírito, a cada alteração da afetividade humana corresponde uma respiração própria.

Ora, os tempos da respiração têm um nome, como nos mostra a Cabala; são eles que dão forma ao coração humano e sexo aos movimentos das paixões.

O ator não passa de um empírico grosseiro, um curandeiro guiado por um instinto mal conhecido.

No entanto, por mais que se pense o contrário, não se trata de ensiná-lo a delirar.

Trata-se de acabar com essa espécie de ignorância desvairada em meio à qual avança todo o teatro contemporâneo, como em meio a uma sombra, em que ele não pára de tropeçar. - O ator dotado encontra em seu instinto o modo de captar e irradiar certas forças; mas essas forças, que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos, ele se espantaria se lhe fosse revelado que elas existem, pois nunca pensou que pudessem existir.

Para servir-se de sua afetividade como o lutador usa sua musculatura, é preciso ver o ser humano como um Duplo, como o Kha dos Embalsamados do Egito, como um espectro perpétuo em que se irradiam as forças da afetividade.

Espectro plástico e nunca acabado cujas formas o ator verdadeiro imita, ao qual impõe as formas e a imagem de sua sensibilidade.

É sobre esse duplo que o teatro influi, essa efígie espectral que ele modela, e
como todos os espectros esse duplo tem uma grande memória. A memória do coração é durável e, sem dúvida, o ator pensa com o coração, mas aqui o coração é preponderante.

Isso significa que no teatro, mais do que em qualquer outro lugar, é do mundo afetivo que o ator deve tomar consciência, mas atribuindo a esse mundo virtudes que não são as de uma imagem, e que comportam um sentido material.

Quer a hipótese seja correta ou não, o importante é que ela seja verificável. Pode-se fisiologicamente reduzir a alma a um novelo de vibrações.

É possível ver esse espectro de alma como intoxicado pelos gritos que ele propaga; se não fosse assim, a que corresponderiam os mantras hindus, as consonâncias, as acentuações misteriosas, em que o subterrâneo material da alma, acuado em seus covis, vem contar seus segredos à luz do dia.

A crença em uma materialidade fluídica da alma é indispensável ao ofício do ator. Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania.

Alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro.

Saber que existe uma saída corporal para a alma permite alcançar essa alma num sentido inverso e reencontrar o seu ser através de uma espécie de analogias matemáticas.

Conhecer o segredo do tempo das paixões, dessa espécie de tempo musical que rege seu batimento harmônico, é um aspecto do teatro em que nosso teatro psicológico moderno há muito não pensa.

Ora, esse tempo por analogia pode ser reencontrado; e é reencontrado nos seis modos de dividir e manter a respiração tal como um elemento precioso.

Toda respiração, seja qual for, tem três tempos, assim como na base de toda criação existem três princípios que, mesmo na respiração, podem encontrar a figura que lhes corresponde.

A Cabala divide a respiração humana em seis principais arcanos, o primeiro dos quais, chamado de Grande Arcano, é o da criação:

ANDRÓGINO MACHO FÊMEA
EQUILIBRADO EXPANSIVO ATRATIVO
NEUTRO POSITIVO NEGATIVO

Assim, tive a idéia de empregar o conhecimento da respiração não apenas no trabalho do ator, mas também na preparação ao ofício de ator. Pois, se o conhecimento da respiração ilumina a cor da alma, com maior razão pode provocar a alma, facilitar seu desenvolvimento.

Não há dúvida de que, se a respiração acompanha o esforço, a produção mecânica da respiração provocará o nascimento, no organismo que trabalha, de uma qualidade correspondente de esforço.

O esforço terá a cor e o ritmo da respiração artificialmente produzida.

O esforço por simpatia acompanha a respiração e, conforme a qualidade do esforço a ser produzido, uma emissão preparatória de respiração tornará fácil e espontâneo esse esforço. Insisto na palavra espontâneo, pois a respiração reacende a vida, atiça-a em sua substância.

O que a respiração voluntária provoca é uma reaparição espontânea da vida.
Como uma voz nos corredores infinitos em cujas margens dormem guerreiros. O sino matinal ou a trompa de guerra agem sobre eles para lançá-los regularmente na refrega.
Mas, se uma criança de repente grita "olha o lobo", esses mesmos guerreiros despertam.
Despertam no meio da noite. Alarme falso: os soldados voltam. Mas não: chocam-se contra grupos hostis, caíram numa verdadeira armadilha. A criança gritou no sonho. Seu inconsciente mais sensível e flutuante topou com uma tropa de inimigos. Assim, por meios indiretos, a mentira provocada do teatro cai sobre uma realidade mais temível que a outra e da qual a vida não suspeitara.

Assim, pela acuidade aguçada da respiração o ator cava sua personalidade.

Pois a respiração que alimenta a vida permite galgar as etapas degrau por degrau. E através da respiração o ator pode repenetrar num sentimento que ele não tem, sob a condição de combinar judiciosamente seus efeitos; e de não se enganar de sexo. É que a respiração é masculina ou feminina; menos freqüentemente, andrógina. Mas poderá ser necessário descrever preciosos estados suspensos.

A respiração acompanha o sentimento e pode-se penetrar no sentimento pela respiração, sob a condição de saber discriminar, entre as respirações, aquela que convém a esse sentimento.

Como dissemos, há seis combinações principais de respiração:

NEUTRO MASCULINO FEMININO
NEUTRO FEMININO MASCULINO
MASCULINO NEUTRO FEMININO
FEMININO NEUTRO MASCULINO
MASCULINO FEMININO NEUTRO
FEMININO MASCULINO NEUTRO

E há um sétimo estado situado acima das respirações e que, através da porta da Guna superior, o estado de Sativa, reúne o manifesto com o não-manifesto.

Se alguém disser que o ator, não sendo metafísico por essência, não precisa preocupar-se com esse sétimo estado, responderemos que, a nosso ver, e embora o teatro seja o símbolo mais perfeito e mais completo da manifestação universal, o ator traz em si o princípio desse estado, desse caminho de sangue pelo qual ele penetra em todos os outros cada vez que seus órgãos potenciais despertam de seu sono.

Na maior parte do tempo, sem dúvida, o instinto comparece para suprir essa ausência de uma noção que não se pode definir; e não é preciso cair de tão alto para emergir nas paixões medianas como aquelas de que o teatro contemporâneo está cheio.
Do mesmo modo, o sistema das respirações não é feito para as paixões medianas. E não é para uma declaração de amor adúltero que nos prepara a cultura repetida das respirações, segundo um procedimento muitas vezes empregado.

Uma emissão repetida sete e doze vezes nos predispõe a uma qualidade sutil de gritos, a desesperadas reivindicações da alma.

E nós localizamos essa respiração, nós a dividimos em estados de contração e descontração combinados. Usamos nosso corpo como um crivo pelo qual passam a vontade e o afrouxamento da vontade.

No tempo de pensar em querer, projetamos com força um tempo masculino,
seguido sem solução de continuidade demasiado sensível por um tempo feminino prolongado.

No tempo de pensar em não querer, ou mesmo de não pensar, uma respiração feminina fatigada nos faz aspirar um mofo de porão, o hálito úmido de uma floresta; e nesse mesmo tempo prolongado emitimos uma expiração pesada; enquanto isso, os músculos de todo o corpo, vibrando por regiões de músculos, não pararam de trabalhar.

O importante é tomar consciência dessas localizações do pensamento afetivo. Um meio de reconhecimento é o esforço; e os mesmos pontos sobre os quais incide o esforço físico são aqueles sobre os quais incide a emanação do pensamento
afetivo. Os mesmos que servem de trampolim para a emanação de um sentimento.

Deve-se observar que tudo o que é feminino, o que é abandono, angústia, apelo, invocação, o que tende para alguma coisa num gesto de súplica, baseia- se também nos pontos do esforço, mas como um mergulhador palmilha o fundo do mar para depois voltar à superfície: há como que um jato de vazio no lugar onde estava a tensão.

Mas nesse caso o masculino volta para povoar o lugar do feminino como uma sombra; enquanto o estado afetivo é masculino, o corpo interior compõe uma espécie de geometria inversa, uma imagem do estado invertido.

Tomar consciência da obsessão física, dos músculos tocados pela afetividade, equivale, como no jogo das respirações, a desencadear essa afetividade potencial, a lhe dar uma amplitude surda, mas profunda, e de uma violência incomum.

E assim qualquer ator, mesmo o menos dotado, pode, através desse conhecimento físico, aumentar a densidade interior e o volume de seu sentimento, e uma tradução ampliada segue-se a este apossamento orgânico.

Com esse objetivo, não é mau conhecer alguns pontos de localização.

O homem que levanta pesos, é com os rins que o faz, é com um desancamento dos rins que ele sustenta a força multiplicada de seus braços; e é curioso constatar que, inversamente, todo sentimento feminino que cala fundo, o soluço, a desolação, a respiração espasmódica, o transe, é na altura dos rins que ele realiza seu vazio, nesse mesmo lugar onde a acupuntura chinesa dilui a obstrução do rim. A medicina chinesa procede apenas através do cheio e do vazio. Côncavo e convexo. Tenso e relaxado. Yin
e Yang. Masculino e feminino.

Outro ponto de irradiação: o ponto da raiva, do ataque,
da mordacidade é o centro do plexo solar. É aí que se apóia a cabeça para lançar moralmente seu veneno.

O ponto do heroísmo e do sublime é também o da culpa. É onde batemos no peito. O lugar onde se recalca a raiva, aquela que consome e não avança.

Mas onde a raiva avança a culpa recua; é o segredo do cheio e do vazio.

Uma raiva superaguda e que se desmembra começa por um neutro estalante e se localiza no plexo por um vazio rápido e feminino, a seguir é bloqueada nas duas omoplatas, volta como um bumerangue e lança fagulhas masculinas, mas que se consomem sem avançar. A fim de perder o tom mordaz, conservam a correlação da respiração masculina: expiram com ênfase.

Quis dar apenas alguns exemplos em torno de alguns princípios fecundos que
constituem a matéria deste texto técnico. Outros erigirão, se tiverem tempo, a completa anatomia do sistema. Há trezentos e oitenta pontos na acupuntura chinesa, dos quais setenta e três principais e que servem à terapia corrente. Há um número bem menor de saídas grosseiras para nossa humana afetividade.

Um número bem menor de apoios que possamos indicar e nos quais se baseará o atletismo da alma.

O segredo consiste em exacerbar esses apoios como uma musculatura que se esfola.

O resto se faz com gritos.

É preciso refazer a cadeia, a antiga cadeia em que o espectador procurava no espetáculo sua própria realidade, é preciso permitir que esse espectador se identifique com o espetáculo, respiração a respiração e tempo a tempo.

Não basta que essa magia do espetáculo prenda o espectador, ela não o aprisionará se não se souber onde pegá-lo. Basta de magia casual, de uma poesia que não tem a ciência para apoiá-la.

No teatro, doravante poesia e ciência devem identificar-se.

Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidade voltaica.

Saber antecipadamente que pontos do corpo é preciso tocar significa jogar o espectador em transes mágicos. É dessa espécie preciosa de ciência que a poesia no teatro há muito se desacostumou.

Conhecer as localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica.

E com o hieróglifo de uma respiração posso reencontrar uma idéia do teatro sagrado.

N. B. - Ninguém mais sabe gritar na Europa, e especialmente os atores em transe não sabem mais dar gritos. Quanto às pessoas que só sabem falar e que se esqueceram de que tinham um corpo no teatro, também se esqueceram de usar a garganta. Reduzidas a gargantas anormais, não é nem mesmo um órgão, mas sim uma monstruosa abstração que fala: os atores, na França, agora só sabem falar.

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