Podemos dizer que, pelo menos, um dos objetivos do romance O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho, é apontar a alienação que caracteriza a nossa sociedade. A história é narrada pelo personagem principal do romance: um senhor herdeiro que vive a espionas janelas vizinhas com o seu binóculo e a escrever os acontecimentos do seu dia em seu diário. O personagem começa a sua narrativa afirmando que o que escreve em seu diário é uma "grande e misteriosa empreitada – tão misteriosa que eu mesmo me esqueci de qual seja" (pág 319), levando o leitor, desde o princípio, a desconfiar que talvez a personagem não domine bem as faculdades mentais.
O personagem deixa a mulher sozinha na Filadélfia após se deparar com um púcaro búlgaro no Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia. Inconformado, pois ele não acredita na existência da Bulgária, por isso o púcaro não poderia ser búlgaro, deixa os EUA e volta para o Brasil decido a confirmar se o que se passara no museu fora verdadeiro.
Depois de ter confirmado pelo diretor do museu, através de troca de correspondências, a existência do púcaro búlgaro, a personagem, ainda incrédula da existência de um púcaro que seja búlgaro, toma uma segunda medida: anuncia na página "mais lida" do jornal, a necrológica, uma expedição à Bulgária.
A partir daí entrarão na história personagens também não muito lúcidas como Radamés, o professor de bulgarologia; Penacchio, que só anda inclinado para esquerda devido a uma neurose adquirida por morar ao lado da Torre de Pisa, na Itália; Ivo que viu a uva, dono de todos os zeros do mundo e Expedito que foi aceito na expedição imediatamente por causa do seu tão sugestivo nome. Não se pode esquecer de Rosa, personagem feminina que aparece apenas como objeto sexual ao longo de toda a narrativa.Todos eles, com exceção desta última, trabalharão para, quem sabe se em dias ou séculos, descobrir a Bulgária e decretar se ela é ou não um mito.
Depois do MSPDIDRBOPMDB (Movimento Subterrâneo Pró-Descoberta ou Invenção
Definitiva do Reino da Bulgária Ou Pelo Menos De Búlgaros) finalmente decidir que partirão rumo a Bulgária, num navio um pouco maior do que um daqueles feitos dentro de garrafas, e quantos quilos de vaselina ou quantas garrafas de uísque ou gim ou cachaça, dentre muitas outras coisas "úteis", levarão para a viagem, percebem-se impossibilitados de realizar a expedição, visto que foram furtados por Expedito e por Rosa, não possuindo, portanto, recursos para a viagem.
Os expedicionários, sem mais expedição, separam-se, e eis que Radamés revela-se búlgaro e confessa ter entrado nessa empreitada apenas para ficar mais próximo de Rosa, mulher que o atraía há um tempo.
É claro que o romance não tem apenas o objetivo de contar a história de cinco loucos que não acreditam na Bulgária: é através das divagações e conversas sem sentido entre eles, que o autor lança, quando menos se espera, críticas relevantes contra e para a sociedade. Como prova disso temos a esposa da personagem principal que, assim como Rosa, aparece somente como objeto sexual; a primeira como um produto que já perdeu a validade, “Foi uma mulher boa enquanto foi boa, depois as nádegas lhe cresceram tanto que eu tinha dificuldade até de atingir a cozinha, estando ela nas imediações” (pág. 320), e a segunda como a que dá para o gasto: “Rosa dá para o gasto, e eu sou o gasto” ( pág. 351).
Críticas sobre o homem inconsequente, que fala demais, aparecem não apenas uma vez: “Se o morto é tão acatado e respeitado é justamente devido ao seu espantoso silêncio, algo que escapa à compreensão de qualquer mortal e o torna, ao morto bem entendido, o menos entendido de todos os mistérios da natureza, seja ela feminina ou masculina” (pág. 323-324) e mais à frente, “O expedicionário e professor Radamés contestou veemente que se tratasse de uma degenerescência, parecendo-lhe tal fato antes um sinal de sabedoria e manifesta superioridade sobre o homem, que justamente se perde pela boca e vive perdendo a cabeça (...) defecamos tanto por cima quanto por baixo” (pág 359). A narrativa contém temas como antropofagia para questionar a “civilidade” humana: “muito pior do que comer o seu semelhante é fazer com ele o que se vem fazendo desde que o mundo é mundo, sobretudo entre as classes dominantes e cujo domínio é tão incerto quanto os domínios britânicos ou de qualquer espécie” (pág. 359) e mais à frente sobre a ambição, “o gato não devora o rato quando se sentia enfastiado, ao passo que o homem mesmo enfastiado devoraria o seu semelhante se tivesse a certeza de que a carne deste era tão boa quanto a carne de vaca ou mesmo de cavalo (...) conceitos ou preconceitos morais e religiosos nunca evitaram coisíssima nenhuma, como atestam os tempos de guerra e sobretudo os tempos de paz” (pág. 360) .
As críticas não param por aí, elas surgem para apontar a hipocrisia da vida em sociedade, “Sempre fui, sempre serei um crápula. Um crápula que dorme com uma rosa, no escuro para que o julguem menos crápula – os crápulas” (pág. 325), os idosos, “Pessoalmente tenho uma teoria muito particular sobre esses venerandos destroços que insistem em continuar atravancando o nosso caminho” (pág. 339), os crentes, por exemplo, “Eu adoro os veados, mas a longa distância como fazem os crentes com o seu deus, que fazem tudo para ver o mais tarde possível, se possível nunca” (pág. 354) os indivíduos e o governo, “Você deixa que os outros pensem por você e decidam sobre o que você deve fazer; e como os outros, por sua vez, estão deixando que alguém pense ou decida por eles, acaba ninguém pensando nem decidindo coisa nenhuma, o que é justamente o que o governo quer faz o possível para que aconteça” (pág. 253) e, por fim, e talvez mais relevante a alienação, por exemplo, “O único perigo, acrescentou, é encontrar petróleo...” (pág 369).
Outro fator importante, mas que não aprofundaremos aqui, é o jogo de palavras presente em quase todo o momento dentro do texto: “Mas um procurador, além de ser difícil procura-lo (...) como todo procurador que bem procura” (pág. 336); “as da tataraneta ainda mais sensuais sob o justo mas injusto vestido negro” (pág. 351).
O Púcaro Búlgaro é o romance que usa do cômico para lançar questionamentos e críticas à sociedade de forma bem descontraída e engraçada, de maneira que, se tratando de um leitor distraído, o romance não passará de uma história engraçada, enquanto para o leitor atento, será mais um objeto de séria reflexão sobre o mundo ao seu redor.
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