sábado, 8 de setembro de 2018

pela evocação de realidades transcendentes, do mistério e de poderes sobrenaturais, o liminar nos oferece uma visão do mundo, que normalmente não enxergamos, cegados pelas estruturas usuais da vida social e cultural

O que há de interessante nesses momentos de transição é que sua liminaridade de vida curta está muitas vezes encravada na liminaridade dilatada, em que a transição final é, como foi, ensaiada em uma série de minitransições: as provas, testes e provações das cerimônias de puberdade, por exemplo. Caracterizam-se por múltiplas repetições em vários registros. Turner descreveu essas longas passagens e, embora reconhecesse sua qualidade dramática, em meu juízo, não avaliou plenamente o modo como elas atingem o clímax, o momento da passagem que, em essência, não pode ser enunciado. Ele tendeu, em suas generalizações sobre a liminaridade, como antiestrutura e communitas, a achatá-lo. Freud, sem dúvida, teria visto essas travessias cada vez mais dramáticas como um modo de dominar a ansiedade. Lévi-Strauss talvez as visse como um modo de reduzir a lacuna entre os dois lados da travessia. Eu quero salientar o perigo, a ansiedade e o terror que evocam. Eles, de maneira inconsciente, chamaram atenção para o artifício de nossa compreensão social e cultural ao exporem esses momentos refratários, que escapam a – e correm o risco de destruir – aquela compreensão e suas exigências de coesão e continuidade. Podemos descrever tais momentos com a expressão horror vacui,5 com a qual Nietzsche (1967) caracterizou o momento dionisíaco da tragédia grega; ou "abismo" – l'abîme –, tão popular na poesia simbolista francesa; ou não-ser. Mas devemos fazê-lo com cuidado, pois elas refletem, como insiste Derrida, nossa insistente ontologia da presença – uma ontologia que, apesar de suas pretensões universalistas, de modo algum é compartilhada universalmente.

O liminar foi muitas vezes equiparado ao sonho – ao processo primário de pensamento. Ele sugere possibilidades imaginativas que, não necessariamente, estão ao nosso dispor no cotidiano. Por meio de paradoxo, ambigüidade, contradição; de símbolos incomuns, exagerados e, por vezes, grotescos – máscaras, indumentária, estatuetas –; e pela evocação de realidades transcendentes, do mistério e de poderes sobrenaturais, o liminar nos oferece uma visão do mundo, que normalmente não enxergamos, cegados pelas estruturas usuais da vida social e cultural. Turner cita o místico alemão Jakob Böhme: "Em incerteza todas as coisas consistem". Devemos citar igualmente al-'Arabi ou um sem-número de outros místicos que chamam atenção para os paradoxos de nossa compreensão. Turner escreve:
A liminaridade talvez possa ser considerada como o Não de todas as asserções estruturais positivas, mas, em certo sentido, a fonte de todas elas e, mais do que isso, como um reino de pura possibilidade, de onde novas configurações de idéias e relações podem surgir. (1967, p. 97

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