http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922003000100004
Matheus Dulci compartilhou uma foto.
46 min ·
ARTIGOS
Três caminhos para a servidão
Gabriela Tunes da SilvaI; Roberto BartholoII
ICentro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília (CDS-UnB).
IIProfessor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE-UFRJ).
http://www.scielo.br/scielo.php…
RESUMO
Em O Caminho para a Servidão, F. A. Hayek argumenta que a planificação econômica defendida em algumas doutrinas socialistas gera o mesmo tipo de servidão presente nos Estados totalitários. Baseado nisso, ele conclui que a única forma de se garantir a liberdade é implementar o liberalismo econômico. Hayek identifica algumas características dos sistemas totalitários, mostrando que os Estados socialistas têm essas mesmas características. Este artigo pretende mostrar que a caracterização que Hayek faz dos estados totalitários aplica-se aos Estados Unidos. Assim, o liberalismo econômico gera o mesmo tipo de servidão encontrado nos sistemas totalitários. Polanyi nos mostra que a servidão não advém da centralização do poder ou da planificação da economia, mas sim da submissão da vida das pessoas a sistemas frios e impessoais. Pode-se concluir, então, que existem inúmeros caminhos possíveis para a servidão, e a humanidade já experimentou três deles: o totalitarismo, o comunismo e o liberalismo.
Palavras-chave: liberalismo, totalitarismo, comunismo, Polanyi, Hayek.
ABSTRACT
In "The Road to Serfdom", F. A. Hayek argues that the economic planning defended in some socialist doctrines leads to the same kind of serfdom present in totalitarian states. Based on this, he concludes that the only way to guarantee freedom is to implement economic liberalism. Hayek identifies some of the characteristics found in totalitarian systems, pointing out that socialist states have those very same characteristics. This paper intends to show that the characteristics described by Hayek as typical of the totalitarian systems are very present in the modern day United States. Hence, economic liberalism leads to the same serfdom found in totalitarian systems. Polanyi has shown us that serfdom is not a result of power centralization or economic planning, but of the very act of submitting people's day-to-day life to impersonal systems. We can conclude that there are several possible roads to serfdom, three of which the human race has already trailed: the totalitarian, the communist and the liberalist.
Key-words: communism, liberalism, totalitarian states, Polanyi, Hayek.
RÉSUMÉ
Dans "The Road to Serfdom", F. A. Hayek déclare que la planification économique répandue par plusières doctrines socialistes engendre le même type de servitude présente dans les états totalitaires. À partir de cela, il conclut que l'unique manière de garantir la liberté est l'impantation du libéralisme économique. Hayek identifie quelques caractéristiques des systèmes totalitaires en montrant que les états socialistes ont ces mêmes caractéristiques. Cet article a l'intention de montrer que la caractérisation que Hayek présente des états totalitaires sont aplicables aux États-Unis. Ainsi le libéralisme économique engendre le même type de servitude rencontré dans les systèmes totalitaires. Polanyi nous dit que la servitude ne vient pas de la centralisation du pouvoir ou de la planification de l'économie; par contre, elle vient de la soumission de la vie des personnes à des systèmes froids et impersonnels. Somme toute, il y a plusiers chemins pour la servitude, et l'humanité en a déjà vécu trois: le totalitarisme, le comunisme et le libéralisme.
Mots-clés: libéralisme, totalitarisme, comunisme, Polanyi, Hayek.
Karl Polanyi (2000), em A Grande Transformação, descreve e analisa os processos de mudanças sociais, políticas e econômicas que possibilitaram a emergência e o estabelecimento de uma economia de mercado, primeiramente na Inglaterra, no século XVIII, e depois no restante do mundo. Ele defende a idéia de que o grande progresso técnico dos instrumentos de produção, que aconteceu na Revolução Industrial, foi acompanhado de uma catastrófica desarticulação nas vidas das pessoas comuns (Polanyi, 2000, p. 51). Concede o nome de Moinho Satânico a essa transformação que triturou os homens, transformando-os em massa (Polanyi, 2000, p. 51).
A quase completa devastação da vida das pessoas comuns, evidenciada nas favelas que insistiam em se multiplicar nas chamadas cidades industriais, verdadeiros centros de desolação humana, em que as sobras das antigas famílias, trituradas e cuspidas pelo Moinho Satânico, se amontoavam na tentativa desesperada de sobrevivência, foi sem dúvida a principal conseqüência da Grande Transformação. Esse fato é cinicamente negligenciado pelos apologistas do liberalismo econômico que, ingenuamente, acreditavam e, mesmo depois de alguns séculos de desgraças, continuam acreditando que o desenvolvimento da tecnologia será a salvação da humanidade. Polanyi (2000) afirma que a filosofia liberal não teve capacidade de compreender completamente a mudança, porque julgou os acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico, e, assim, aceitava prontamente as conseqüências sociais do progresso, quaisquer que fossem elas.
Para Polanyi (2000), o progresso técnico, o surgimento das cidades fabris, a mudança no regime de trabalho, a presença de carvão e ferro, a concentração das indústrias, entre outros tantos fatores que comumente são apontados como causas, únicas ou múltiplas, da Revolução Industrial, são apenas incidentais em relação a uma mudança básica, que foi o estabelecimento da economia de mercado. A compreensão do impacto que o uso de máquinas provoca em uma sociedade comercial é, contudo, fundamental para que se entenda a natureza dessa mudança. Não foi a máquina a causadora da mudança, mas sua utilização foi crucial para a emergência e a consolidação da idéia de um mercado auto-regulável e da economia de mercado.
Polanyi (2000) caracteriza como agrária comercial a sociedade pré-industrial, pois ela consistia de agricultores e mercadores que compravam e vendiam o produto da terra. A inserção das máquinas nesse sistema de produção agrária forçou nele algumas mudanças: primeiramente, a quantidade de mercadorias produzidas teve de ser ampliada, para que a produção fosse rentável, tendo em vista o alto custo das máquinas; além disso, a produção (e a venda) de mercadorias deveria ser contínua, pois a produção por máquinas somente opera sem prejuízos se a saída de mercadorias for minimamente garantida. Sendo assim, a produção não pode parar em decorrência de nenhum fator como, por exemplo, falta de matéria-prima ou de mão-de-obra. Isso significa, em última análise, que matéria-prima e mão-de-obra são elementos que devem estar sempre disponíveis nas quantidades necessárias para a produção. Em conseqüência disso, e em segundo lugar, segue-se uma importante mudança nas relações de produção: o mercador, que antes comprava as mercadorias prontas do agricultor e as vendia para quem delas necessitasse, passa a comprar a matéria-prima e o trabalho necessários à produção da mercadoria.
A idéia explicitada na última frase do parágrafo anterior é repleta de implicações. A partir dela conclui-se que, no momento histórico em questão, todas as transações sociais se converteram em transações monetárias. Nesse novo tipo de organização da produção, todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa, e qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda (Polanyi, 2000, p. 60). Além disso, ocorreu uma inversão na motivação das ações por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência (Polanyi, 2000, p. 60). Dizendo a mesma coisa de outra forma: o sistema produtivo, que antes se orientava para a produção de valores de uso, passa a ser orientado para a produção de valores de troca. Nessa inversão consistem o sistema de mercado e a economia de mercado, o moinho satânico de homens, cuja emergência resultou nas mais profundas e maléficas modificações nas relações humanas.
A economia de mercado é definida por Polanyi (2000, p. 76) como sendo um sistema auto-regulável de mercado, ou seja, uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado. Ele defende que o surgimento e o estabelecimento de tal sistema não pôde ter acontecido e não aconteceu de forma espontânea, e houve necessidade de um firme controle (pelo braço do Estado) dos extraordinários pressupostos subjacentes a tal sistema (Polanyi, 2000, p. 62).
Um desses pressupostos é a existência de uma sociedade de mercado, uma sociedade modelada de forma tal a possibilitar que o sistema econômico funcione segundo as leis de mercado. Dessa forma, em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas na economia (Polanyi, 2000, p. 77). A transformação de que nos fala Polanyi, que deu origem à nossa época, não consiste na emergência dos mercados: eles existiram em muitas sociedades e durante muitos anos, mas subordinados a um sistema social que os regulava. Foi crucial a transformação dos mercados isolados em uma economia de mercado, e dos mercados reguláveis em um mercado auto-regulável.
A questão primordial é que o funcionamento do mercado como entidade auto-regulada exige que todo o tecido social opere segundo as leis de mercado. Toda a produção deve estar voltada para a venda no mercado, e todos os rendimentos devem derivar de tais vendas. Por isso, não somente os bens, serviços e componentes da indústria devem ter um preço no mercado, mas também o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, salários, aluguel e juros. Essas três coisas passaram a funcionar como mercadorias, e, sem isso, seria impossível o estabelecimento da sociedade de mercado, da economia de mercado e do mercado auto-regulável.
Ocorre que elas não são mercadorias, pois como afirma Polanyi (2000, p. 93): o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Então, para que a empreitada do estabelecimento da economia de mercado (e, com ela, o sistema capitalista industrial) tivesse êxito, foi necessário que o trabalho, a terra e o dinheiro, que não são mercadorias, fossem convertidos em mercadorias. E isso não foi (e nem poderia ter sido) um processo espontâneo. Foi deliberadamente promovido pelo Estado inglês, por meio de leis que asseguravam a criação das mercadorias fictícias: trabalho, terra e dinheiro. A intervenção do Estado foi, então, crucial para que a sociedade capitalista de mercado tivesse origem na Inglaterra do século XVIII.
Para demonstrar como a intervenção estatal foi fundamental para o estabelecimento de um mercado auto-regulável, Polanyi (2000) faz uma minuciosa análise da legislação inglesa da época, e mostra como a vigência de uma legislação que protegia a vida das pessoas (Speenhamland Law, de 1795 a 1834 na Inglaterra), garantindo-lhes uma renda mínima a despeito das oscilações do mercado, impossibilitou o pleno estabelecimento de uma economia de mercado e, com isso, o desenvolvimento do capitalismo industrial. Somente com a Reforma da Lei dos Pobres, em 1834, que abolia o "direito de viver" e possibilitava a presença de um mercado de trabalho competitivo, foi possível que o capitalismo industrial efetivamente se estabelecesse na Inglaterra.
O que Polanyi (2000) nos mostra é que a Revolução Industrial trouxe uma inversão na organização da sociedade: o mercado, que antes estava imerso na sociedade, que o regulava, passou a ser seu regulador. A conseqüência mais grave de tal inversão foi o empobrecimento da população causado, principalmente, pelos efeitos desarticuladores da economia de mercado na sociedade. Tal desarticulação aconteceu primeiramente no campo, pois, conforme afirma o próprio Polanyi (2000), a Revolução Agrícola antecedeu a Revolução Industrial. A racionalização agrícola, necessária ao estabelecimento da economia de mercado, destruiu a segurança social dos trabalhadores rurais. Sua sobrevivência, que antes era garantida não somente por rendimentos monetários, mas também por rendimentos familiares e pela produção de subsistência das terras comuns ou privadas, se tornou totalmente dependente dos rendimentos monetários. Nas cidades, o caráter flutuante dos novos empregos nas indústrias iria desestruturar para sempre o modo de vida dos artesãos, que diante do desemprego e das incertezas quanto às condições de trabalho, em vão retornavam para suas aldeias, pois o tipo de trabalho manual que realizavam não tinha mais lugar na nova sociedade.
Os benefícios técnicos e tecnológicos trazidos pela Revolução Industrial não foram maiores do que as mazelas que a acompanharam. Não se poderia justificar a desestruturação de modos de vida, a humilhação, a miséria e o desespero a que foram submetidas mais de uma geração em nome do progresso técnico. A inversão do lugar ocupado pela economia na sociedade subordinou a vida das pessoas a uma lógica fria e impessoal. As pessoas se transformaram em átomos dispensáveis, partes de uma grande máquina a que estavam condenadas a servir.
Sale (1999) aponta para a rapidez com que esse processo aconteceu. Em uma única geração, entre 1785 e 1830 o número de pessoas empregadas nas manufaturas excedeu o número das que lidavam com a terra, com atividades agrícolas. A Revolução Industrial provocou mudanças profundas no caráter da civilização britânica, e com tamanho sucesso que tais modificações foram posteriormente impostas à Europa e ao restante do mundo. Segundo o historiador E. Thompson, a grande transformação "remodelou a índole e as necessidades humanas" (apud Sale, 1999, p. 36).
O que torna as análises de Karl Polanyi (2000) e Kirckpatrick Sale (1999) particularmente interessantes é que elas trazem à tona a dimensão da catástrofe que a Grande Transformação produziu, evidenciada na desgraceira que provocou na vida cotidiana das pessoas, devido ao depauperamento em massa e à profunda mudança que impôs em seus modos de vida. A questão é que a grande maioria das análises, que representam o pensamento hegemônico desde o século XVII até nossos dias, simplesmente ignoram essa catástrofe subjacente à transformação, pois apontam a liberdade do mercado e o progresso técnico como os bens maiores, a que nada pode se interpor.
A filosofia liberal ignora não só a catástrofe, como também todo o ajuste legal necessário ao estabelecimento da economia de mercado e do mercado auto-regulável. Ela o faz não é à toa, pois esses dois fatos simplesmente põem no chão uma das premissas básicas da ideologia liberal: a infundada e estúpida idéia de que a competição por recursos é o comportamento natural dos homens. Se isso fosse verdade, não seriam necessárias a intervenção do Estado e a criação de leis visando ao estabelecimento de uma economia e uma sociedade baseadas no princípio competitivo. Negligenciá-los é, então, fundamental para que tal ideologia permaneça em pé, mesmo que constantemente cambaleando (levando-se em conta a sua debilidade congênita) e tendo que ser amparada por mecanismos cínicos e desleais como esse. István Meszáros (2002) aponta, sem nenhuma piedade, para as fraquezas da ideologia liberal, desqualificando-a como pseudo-científica, visto que é construída tendo por base analogias vazias arbitrariamente extraídas da biologia (Mészáros, 2002, p.190). O que, de fato, possibilitou a aceitação da filosofia liberal como válida, e mais, o que possibilitou que ela se convertesse em ideologia hegemônica não foi nem sua força teórica (que não existe), tampouco sua capacidade de explicar e/ou representar a realidade, mas sim o fato de que, conforme aponta Meszáros (2002), seu caráter eminentemente reacionário sempre agradou aos governos dos países capitalistas e às elites dominantes.
Um dos expoentes do pensamento hegemônico, caloroso defensor do liberalismo econômico, é Frederich A. Hayek. Como Polanyi, Hayek é austríaco, e publicou seu livro O Caminho para a Servidão (Road to Serfdom) em 1944, no mesmo ano em que Polanyi publicou A Grande Transformação (The Great Transformation). Pouco mais de dez anos separam o nascimento de Polanyi e Hayek, ambos em Viena, em 1886 e 1899, respectivamente. Ambos serviram no exército do Império Austro-Húngaro na I Guerra Mundial e, por motivos diversos, migraram para a Grã-Bretanha na década de 30. Hayek foi conferencista na London School of Economics de 1931 a 1940, quando emigrou para Cambridge, onde escreveu O Caminho da Servidão.
Polanyi viveu na Inglaterra empregando-se como tutor para a Workers Educational Association, um programa das Universidades de Oxford e Londres para a educação de adultos. Em 1935, recebeu um convite do International Institute of Education para proferir palestras em Universidades Americanas e, em 1940 foi convidado para uma estada na Bennington College, Vermont, onde escreveu A Grande Transformação. Em 1947, assumiu o posto de Professor Visitante na Columbia University em Nova York, onde permaneceu até 1953, quando se aposentou.
Enquanto a vida de Polanyi foi marcada por altos e baixos profissionais, sem que conseguisse estabilidade, altos postos e reconhecimento, Hayek foi o autêntico representante do que se poderia chamar de acadêmico bem-sucedido. Sua carreira culminou em um prêmio Nobel de economia em 1974. Hayek sempre fez parte da "elite pensante" da Inglaterra, e sempre ocupou os melhores postos nas universidades. Segundo Meszáros (2002), que o apelidou carinhosamente de o cavaleiro de honra de Margaret Tatcher, todo o reconhecimento e status alcançados por Hayek devem-se à sua capacidade de dizer exatamente o que o governo inglês queria ouvir, pois sua argumentação se caracteriza por declarações e premissas arbitrárias, ao lado de tautologias que mereceram o prêmio Nobel (Mészáros, 2002, p. 280). Do outro lado, o pensamento e a obra de Polanyi receberam reconhecimento e tornaram-se conhecidos do grande público somente nas últimas décadas, quando alguns dos problemas relacionados à economia de mercado tornaram-se muito evidentes no contexto socioeconômico-político mundial.
Em O Caminho para a Servidão, Hayek (1990) parte de uma crítica ao socialismo (que define como um regime em que a economia é planificada) para tentar demonstrar que o liberalismo econômico é a melhor e única forma de garantir a liberdade às pessoas. Afirma que a planificação e a centralização de poder propostas no socialismo consistem nos mesmos métodos utilizados pelos regimes totalitários (nazismo e fascismo), e levam ao mesmo tipo de "escravidão". A diferença entre socialismo e nazismo/fascismo seria quanto aos fins almejados: enquanto nos últimos estão relacionados à ampliação de território e a razões ligadas à eugenia, no primeiro caso, o fim seria "maior justiça e eqüidade". Todavia, Hayek (1990) afirma que a planificação e a centralização de poder são as reais causas da "servidão", e que, mesmo que o objetivo almejado seja louvável (como no caso do socialismo), os meios para atingi-lo são equivocados.
A crítica que Hayek (1990) faz ao socialismo (particularmente ao stalinismo) é pertinente em vários aspectos, notadamente porque aponta a centralização de poder como um fator que reduz e até mesmo elimina a liberdade, da mesma forma como nos regimes totalitários. A grande questão em sua linha argumentativa está no que vem adiante: sendo o socialismo um regime que elimina a liberdade, esta somente pode ser garantida por meio da aplicação da doutrina liberal. Então, para ele, somente existem duas possibilidades de organização da sociedade e do Estado: socialismo de economia planificada ou liberalismo.
Polanyi (2000) nos mostra que esse raciocínio é falacioso, pois, segundo ele, qualquer servidão advém da subordinação da vida das pessoas a uma lógica alheia à própria vida, não importando se essa lógica é representada pelo Estado ou pelo mercado. Além disso, criticar o socialismo não é exclusividade da doutrina liberal, embora Hayek (1990) não faça menção a essas críticas. Os socialistas utópicos e libertários (Saint Simon, Fourier, Owen, Proudhon, Kropotkin, Landauer) apontavam também para os mesmos problemas ligados ao socialismo científico, principalmente no que se refere à centralização do poder, mas tampouco acreditavam ser o liberalismo o caminho para a liberdade, e propunham outras formas de organização social, baseadas principalmente nas livres associações e no princípio federativo (Buber, 1996). Segundo Landauer, o socialismo jamais poderia ser alcançado por meio do Estado: "ele se tornará realidade não no Estado, mas fora dele, sem o Estado" (apud Buber, 1996).
Com efeito, o ideário anarquista, assim como o comunista, busca encontrar formas de organização social alternativas ao capitalismo, e se diferencia radicalmente da proposta comunista pela negação da autoridade e da necessidade de centralização de poder. Woodcock (2002) afirma que poucos movimentos foram tão mal-entendidos e mal-interpretados como o anarquismo, comumente associados ao niilismo ou ao terrorismo. Todavia, ele afirma que o anarquismo é um sistema de filosofia social, que busca a substituição do Estado por formas de cooperação não-governamental entre indivíduos livres. Embora as idéias dos muitos pensadores anarquistas apresentem divergências drásticas entre si, todas elas partem das idéias básicas da liberdade como valor maior, da crítica à propriedade (e ao sistema capitalista) e da capacidade de auto-organização da sociedade, sem necessidade de uma autoridade reguladora. Proudhon foi o criador da "alternativa federalista" de organização social, e acreditava que a vida em sociedade era uma necessidade humana, e na organização anarquista da sociedade baseada na idéia de justiça imanente. Proudhon criticava duramente as posições de Marx, e por isso tornou-se um de seus grandes inimigos ideológicos. Ao se recusar a participar de um grupo de correspondência de socialistas de vários países, liderados por Marx, ele afirma em correspondência ao próprio Marx:
Aplaudo de todo o coração a idéia de fazer vir à luz todas as opiniões; vamos dar ao mundo o exemplo de uma tolerância esclarecida e sagaz, mas não permitamos que o simples fato de encabeçar um movimento nos torne líderes de um novo tipo de intolerância; não nos façamos passar por apóstolos de uma nova religião, mesmo que seja a religião da lógica e da razão. Vamos reunir e estimular todos os tipos de protesto, estigmatizar a exclusividade e o misticismo. Não consideremos jamais que uma questão está esgotada e, quando tivermos utilizado o nosso último argumento, recomecemos outra vez se necessário com eloqüência e ironia. Sob essas condições, ingressarei com prazer na sua associação. Do contrário não! (apud Woodcok, 2002, p. 135-136)
Kropotkin criticava veementemente a idéia de competição como algo natural, e, no livro Ajuda Mútua, demonstra, com exemplos extraídos de observações no campo, que a cooperação é o comportamento natural dos seres vivos. Ele afirmava que existia uma diferença entre a relação baseada no princípio do comando e da disciplina e aquela baseada no princípio do entendimento mútuo, e que somente a última possibilita a liberdade. Todavia, além de criticar o ideal liberal, criticava também a centralização de poder proposta no socialismo científico. Na década de 20, Kropotkin escreveu uma Carta aos trabalhadores do mundo, em que criticava a Revolução Russa, e propunha a construção de uma Rússia anarquista baseada na união federal de comunidades, cidades e regiões livres. Nessa carta, ele criticava o governo central da Revolução Russa, afirmando que a Revolução Social deveria basear-se no poder construtivo de uma massa de forças locais e especializadas, e que desprezar essa colaboração e confiar nos ditadores é a maneira de não fazer a Revolução, ou de torná-la impossível.
Podemos dizer que os anarquistas, assim como Polanyi, recusavam-se a aceitar a subordinação da vida das pessoas às instituições, quaisquer que fossem elas. Alguns, como Bakunin, propunham a destruição radical e violenta dessas instituições; outros, como Tolstoi e Gandhi, eram adeptos do pacifismo. Tolstoi afirmava que a grande arma da mudança social era simplesmente a recusa a obedecer, e desprezava o progresso social como valor, afirmando que este deveria estar subordinado a outros valores. O fato de Hayek (1990) não levar em conta o pensamento dos anarquistas em seu livro, notadamente no que tange à questão da liberdade, tem um motivo: as críticas anarquistas ao sistema capitalista e ao liberalismo seriam muito duras e difíceis de refutar.
As tentativas de encontrar uma argumentação consistente que aponte as razões pelas quais o liberalismo garante a liberdade na obra de Hayek são vãs. Ele simplesmente afirma que a livre concorrência é a única forma de garantia de liberdade:
[a doutrina liberal] considera a concorrência um método superior, não somente por constituir, na maioria das circunstâncias, o melhor método que se conhece, mas sobretudo por ser o único método pelo qual nossas atividades podem ajustar-se umas às outras sem a intervenção coercitiva e arbitrária da autoridade. Com efeito, umas das principais justificativas da concorrência é que ela dispensa a necessidade de um controle social consciente e oferece aos indivíduos a possibilidade de decidir se as perspectivas de determinada ocupação são suficientes para compensar as desvantagens e riscos que a acompanham. (Hayek, 1990, p. 58)
É interessante notar que Hayek (1990) reconhece que a livre concorrência e o liberalismo não são formas "naturais" da organização social, ou seja, não surgem espontaneamente na sociedade. Para que elas se estabeleçam, é preciso intervenção do Estado. Ele afirma que a doutrina liberal enfatiza que, para que a concorrência funcione de forma benéfica, é necessária a criação de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada, (...) e nem as normas legais existentes, nem as do passado, estão isentas de graves falhas (Hayek, 1990, p.58). Ele, então, admite que o uso da concorrência como forma de organização social exclui certos tipos de intervenção na vida econômica, mas necessita de outros para garantir seu bom funcionamento.
Dessa forma, Hayek (1990) justifica a intervenção estatal somente para manutenção da concorrência e do livre mercado, que, segundo ele, são as únicas formas de garantir a liberdade. Ele afirma que as ações humanas são realizadas visando ao único objetivo de satisfação de necessidades individuais, e que há uma constante concorrência entre os homens pela posse dos recursos. Os "fins sociais" seriam, então, objetivos idênticos para muitos indivíduos ou, em outras palavras, o somatório dos fins individuais. Dessa forma, somente tem liberdade quem tem possibilidade de satisfazer suas necessidades individuais; aqui, nesse ponto, ele chega ao cúmulo da hipocrisia, ao apontar o dinheiro como um fantástico instrumento de liberdade:
Seria muito mais certo dizer que o dinheiro é um dos maiores instrumentos de liberdade já inventados pelo homem. É o dinheiro que, na sociedade atual, oferece ao homem pobre uma gama de escolhas extraordinariamente vasta, bem maior do que aquela que há poucas gerações se oferecia aos ricos. (Hayek, 1990, p. 99).
Hayek (1990) admite que injustiças sociais são produzidas em decorrência da implantação do livre mercado, porém afirma que tais injustiças são menos perniciosas do que a opressão causada pela planificação da economia. Em outras palavras, ele defende que o liberalismo é necessário porque o socialismo não presta. Assim, todos os problemas causados pelo liberalismo devem ser tolerados e aceitos, tendo em vista que a planificação da economia resulta em problemas ainda maiores. Nesse ponto, Mészáros (2002) está coberto de razão ao afirmar que o que move o pensamento de Hayek é um ódio patológico ao projeto socialista, que o impede de assumir uma postura crítica em relação às conseqüências injustas e destrutivas da aplicação dos preceitos do liberalismo.
A ideologia liberal, conforme defendida por Hayek, corresponde ao pensamento hegemônico em praticamente todo o planeta. É a ideologia adotada e reforçada pelos EUA, e que, após a divisão da URSS e o fracasso do socialismo real, passou a ser adotada por praticamente todos os Estados. Todavia, há um aspecto na obra de Hayek (1990) que muito chama a atenção quando analisamos a organização político-econômica mundial atual: a caracterização que ele faz dos regimes totalitários aplica-se quase totalmente aos EUA, a grande potência liberal, a "prova" de que o liberalismo "dá certo".
Primeiramente, Hayek (1990, p. 134) defende a tese de que, nos regimes totalitários, somente os piores chegam ao poder. Primeiro, porque os ditadores necessitam de alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista entre os indivíduos, e isso só é possível nas camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores, e prevalecem os instintos mais primitivos e comuns (Hayek, 1990, p.137). Sendo assim, o ditador conseguirá, então, apoio dos dóceis e simplórios, que não têm convicções fortes, mas aceitam um sistema de valores imposto, desde que seja apregoado com bastante estrépito e insistência.
Há uma outra razão para a subida dos piores, ainda mais importante: o ditador somente consegue criar um grupo homogêneo de apoiadores quando suscita no povo o ódio a um inimigo ou inveja dos que estão em melhor situação. Em suma, os piores chegam ao poder porque somente chega ao poder quem é capaz de criar uma inimizade entre o povo dominado e um inimigo escolhido (judeus, kulaks, terroristas). A antítese nós e eles, a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum (Hayek, 1990, p. 137).
Outras características dos regimes totalitários também nos remetem aos EUA do século XX: a propaganda utilizada para minimizar o sentimento de opressão na população e produzir uma característica de padronização das mentes, e a criação de mitos para justificar os atos do líder totalitário, com a adoção de teorias que fornecem justificativas racionais para o preconceito que o líder pretende disseminar (Hayek, 1990, p. 150). Também é interessante analisar o mecanismo de perversão da linguagem utilizado pelos líderes totalitários, com a deliberada mudança no sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes. Hayek afirma que as palavras mais utilizadas por tais líderes são liberdade, justiça, lei, direito e igualdade, sendo que a primeira (liberdade) é sempre a mais deturpada. Poderíamos atualizar essa lista a partir dos discursos de George W. Bush, acrescentando-lhe a palavra democracia.
Herman e Chomsky (2003) afirmam que a mídia de massa norte-americana, composta por grandes empresas que controlam os mais diversos tipos de veículos de comunicação (jornais, revistas, redes de televisão, canais a cabo, editoras de livros, somente para citar os mais importantes), é claramente um poderoso instrumento de propaganda do governo norte-americano. A grande maioria dos canais da mídia funciona segundo um modelo de propaganda, e esse modelo garante que somente a informação desejada apareça, de forma a manipular a opinião pública, de maneira semelhante aos regimes totalitários e socialistas de economia planificada. Todavia, quando a mídia está sob controle direto da burocracia estatal, torna-se muito mais fácil identificá-la como instrumento de propaganda da elite dominante (inclusive porque é submetida a sistemas de censura formal). Na contemporaneidade, a mídia é privada e não existe censura formal, há um ambiente de competição acirrada entre as várias empresas ligadas a ela, e freqüentemente são veiculadas críticas a grandes empresas e às ações governamentais e, mais importante, ela se pretende porta-voz da liberdade de expressão e do interesse geral da comunidade. Todavia, não é questionada a natureza limitada dessas críticas, assim como a enorme desigualdade no domínio dos recursos, bem como seu efeito tanto no acesso ao sistema de mídia privada quanto em seu comportamento e desempenho (Herman e Chomsky, 2003, p. 62). Sendo assim, a relação que a mídia guarda com as elites dominantes é disfarçada, não aparece com clareza, e assim torna-se mais difícil identificá-la como instrumento de propaganda.
Os autores apontam cinco tipos de filtros de notícias, que permitem que só as notícias adequadas sejam veiculadas, marginalizando as opiniões contrárias e garantindo que as elites dominantes transmitam seus recados ao público. O primeiro desses filtros baseia-se no fato de um empreendimento de mídia de massa requerer um investimento enorme. Dessa forma, a propriedade da mídia está limitada a empresas ou grupos empresariais com capacidade de realizar grandes investimentos. Existe uma grande centralização dos canais da mídia em poucos grupos (somente 29 sistemas de mídia respondem por mais da metade da circulação de jornais e pela maior parte do faturamento e do público de revistas, transmissões, livros e filmes). Há uma clara tendência à fusão de grupos de mídia, e criação de sistemas de monopólio cada vez maiores. É dessa maneira que a grande parte da informação veiculada concentra-se nas mãos de um pequeno grupo de empresas.
O segundo filtro consiste no fato de que grande parte das receitas dos sistemas de mídia advém da propaganda. Sendo assim, as demandas da população em geral, que são os consumidores dos serviços oferecidos pela mídia (leitores de jornais, revistas, espectadores de programas televisivos), não são os fatores decisivos na definição do tipo de notícia que será veiculada. O anunciante tem, aí, um papel proeminente, visto que a própria sobrevivência do sistema de mídia depende dele. Isso é particularmente evidente no caso da mídia televisiva. Como a televisão é financiada pela propaganda, os anunciantes têm o poder de determinar a programação da TV, e as redes de televisão fazem de tudo para seduzir os anunciantes, e isso inclui buscar um público alvo com alto poder aquisitivo. Conforme salientam Herman e Chomsky (2003, p. 75): A idéia de que a corrida por grandes públicos torna a mídia de massa "democrática" sofre da fraqueza inicial de que seu análogo político é um sistema de votação ponderado pela renda!
O terceiro filtro está na fonte de notícias da mídia de massa. Ela tem uma espécie de relação simbiótica com as elites dominantes, em função de uma reciprocidade de interesses. A mídia tem uma grande demanda por acontecimentos diários que tem que cobrir, e evidentemente os custos da manutenção de equipes de reportagem nos quatro cantos do planeta não é baixo. Sendo assim, em função de um imperativo econômico, a mídia se apóia em fontes de informação ligadas aos governos. Herman e Chomsky (2003) citam a Casa Branca, o Pentágono e o Departamento de Estado em Washington como locais de obtenção de furos jornalísticos por repórteres. Os autores mostram que as instituições governamentais gastam porções consideráveis de suas receitas com a produção de notícias, ou com assessorias de comunicação. Dessa forma, instituições como essas subsidiam a mídia de massa ao produzir as notícias e fornecê-las para a mídia. Fica, então, difícil para os veículos de mídia criticarem as autoridades, visto que são delas profundamente dependentes. Existem, obviamente, fontes extra-oficiais de notícias que podem fornecer visões dissidentes com autoridade. Comumente, essas fontes referem-se a especialistas, cientistas e/ou analistas, normalmente ligados a universidades e centros de pesquisas. Herman e Chomsky (2003) afirmam que um mecanismo de cooptação de especialistas alivia esse problema: eles são incluídos nas folhas de pagamento como consultores, suas pesquisas são financiadas por entidades governamentais, entre outras formas de compra.
O quarto filtro refere-se às reações negativas que a veiculação de um programa ou de uma declaração pode suscitar. Tais reações podem partir de pessoas físicas ou de instituições, e podem variar desde cartas, telegramas, telefonemas e e-mails a ações judiciais e outras formas de ações punitivas. Quando as reações negativas vêm da opinião pública em geral, os anunciantes podem retirar seu patrocínio. Quando vêm de fontes poderosas, as empresas de mídia podem receber cartas ou telefonemas da Casa Branca, pode haver financiamento de campanhas políticas contra a mídia, ou então ações judiciais são movidas. O termo poderosos refere-se tanto a grandes grupos empresariais quanto ao governo, muito embora seja o último o principal produtor de reações negativas, atacando, ameaçando e "corrigindo" regularmente a mídia, tentando refrear quaisquer desvios da linha estabelecida (Herman e Chomsky, 2003, p. 87).
Finalmente, o quinto filtro é o que Herman e Chomsky (2003) denominam ideologia do anticomunismo. Da mesma forma como Hayek (1990) aponta a criação de um inimigo comum como ingrediente fundamental na manutenção de um regime totalitário, Hermam e Chomsky (2003) afirmam que:
[A ideologia do anticomunismo] ajuda a mobilizar a população contra um inimigo comum, e como o conceito é obscuro, pode ser utilizado contra qualquer um que defenda políticas que ameacem os interesses de proprietários ou apóie a acomodação com países comunistas e com o radicalismo. Dessa forma, tal ideologia ajuda a fragmentar a esquerda e os movimentos trabalhistas e serve como mecanismo de controle político. (Herman e Chomsky, 2003, p. 88).
É importante enfatizar que a mídia norte-americana como instrumento de propaganda do governo não funciona da mesma maneira como a propaganda dos regimes totalitários. Ela é um sistema de propaganda que falsamente se pretende neutro, que alardeia ao público que funciona de maneira livre, e que garante manter compromisso com a "verdade dos fatos". Dentro da mídia podem acontecer debates, críticas e dissidências, mas, conforme apontam Herman e Chomsky (2003, p. 365), desde que estes permaneçam fielmente dentro do sistemas de pressuposições e princípios que constituem o consenso da elite, um sistema de tal forma poderoso que é, em grande parte, internalizado sem consciência. Dessa forma, ela dificulta a sua identificação como instrumento de propaganda, e consegue, com uma eficácia impressionante, impedir que a população exerça qualquer tipo de controle sobre os processos políticos. É dessa maneira que o governo dos EUA consegue "apoio" da população norte-americana para promover uma série de barbáries (tais como guerras, terrorismo estatal, entre outras), que são absolutamente inaceitáveis, mas que são feitas em nome da salvaguarda da "paz", da "liberdade", da "democracia", e encontram respaldo na população norte-americana (e, por muitas vezes, nos povos de outros países logicamente os que não estão na mira dos mísseis).
Olhando através desse prisma, notamos que os EUA do início do século XXI enquadram-se muito mais na caracterização de um regime totalitário ou socialista, conforme a visão de Hayek (1990), do que na de um regime liberal. A centralização de poder causa todos os males por ele descritos, mas ele nega que o liberalismo também gera centralização de poder. E poder-se-ia dizer que em proporções muito maiores, com conseqüências ainda piores.
Michael Hardt e Antonio Negri (2001) descrevem a nova organização de poder que emergiu na contemporaneidade, no seio do liberalismo econômico, a que denominam Império. Uma das características mais importantes do Império é a forte centralização do poder político-econômico-bélico nos EUA, e o enfraquecimento do poder político dos outros Estados-nação, pois estes se vêem subordinados a grandes empresas transnacionais e ao poderio norte-americano.
Os autores identificam o fim da Guerra Fria com o início do estabelecimento de uma rede de poder, cujo nó central são os EUA. Para eles, a principal conseqüência da Guerra Fria foi a reorganização das linhas de hegemonia (por exemplo, a subordinação das potências imperialistas ao regime norte-americano) o que acelerou o declínio das antigas potências imperialistas e a subida da iniciativa norte-americana de constituição de uma ordem Imperial.
Não é, portanto, o livre mercado que irá salvar o homem da escravidão, pois no contexto da economia de mercado foi possível a emergência do Império norte-americano, cuja capacidade de concentrar poder ultrapassa a de qualquer regime totalitário ou socialista. O liberalismo teve como conseqüência a íntima associação entre poder político e econômico, de forma que quem possui poder econômico tem também poder político. É precisamente nesse ponto que a análise de Hayek (1990) tem sua principal falha.
Hayek (1990) aponta, ao longo de todo o livro, a centralização de poder como a principal razão pela qual o socialismo se assemelha aos regimes totalitários e, por isso, escraviza as pessoas. Essa crítica ao socialismo, conforme já apontado, não é exclusiva da ideologia liberal. Ele foi ingênuo ao defender o liberalismo sob o argumento que o sistema de concorrência elimina o poder, pois, segundo ele, o sistema de concorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo, pela descentralização, o poder exercido pelo homem sobre o homem (Hayek, 1990, p. 142).
Além disso, ele afirma que a separação dos objetivos políticos e dos objetivos econômicos é fundamental como garantia à liberdade dos indivíduos, e que no socialismo e nos regimes totalitários, essa separação não acontece. O regime liberal estaria imune a isso porque o poder econômico nunca se torna um poder exclusivo ou completo, jamais se converte em poder sobre todos os aspectos da vida de outrem (Hayek, 1990, p.142). O que vivemos no início do século XXI é exatamente o contrário: todos os aspectos da vida das pessoas sendo orientados pela racionalidade econômica, de modo que tornamo-nos escravos do dinheiro e do mercado.
Segundo István Mészáros (2002), o capital não é, como muitos afirmam, uma entidade material, ou um mecanismo (conforme os apologéticos do liberalismo o denominam: mecanismo de mercado), mas sim uma forma incontrolável de controle sociometabólico. Sua incontrolabilidade advém do fato de ser a mais poderosa estrutura totalizadora de controle que já surgiu na história, à qual tudo deve se adaptar, inclusive os seres humanos, ou perecer. O caráter totalizador do capital, aliado ao seu modo de metabolismo socioeconômico, possibilitam a existência de uma correlação entre economia e política antes impossível. O Estado serve ao capital, na medida em que é sua estrutura totalizadora de comando político. Além disso, o Estado moderno é uma espécie de ação corretiva que visa sanar os defeitos estruturais do capital, cuja existência deriva do fato de o capital ser antagonicamente estruturado.
São três os defeitos ou antagonismos estruturais do capital: entre produção e controle, entre produção e consumo e entre produção e circulação. O papel do Estado é tentar corrigir esses antagonismos, buscando a unidade entre esses elementos estruturalmente fragmentados. A separação entre produção e controle da produção requer que o Estado crie sistemas jurídicos de regulação, cuja função é sancionar e proteger o material alienado e os meios de produção do processo de reprodução socioeconômica. É a estrutura legal do Estado que garante a tirania nos locais de trabalho, ou seja, que possibilita que o controle da produção não seja exercido pelos sujeitos da produção, sem que iniciativas de revolta e resistência irrompam constantemente em resposta a essa separação. As leis referentes à propriedade privada (inclusive no que se refere à transmissão hereditária da propriedade) são de extrema importância para que se mantenha a idéia de unidade entre produção e controle. Sem essa regulação por parte do Estado, o sistema do capital seria rompido internamente por desacordos constantes. Também a máquina estatal, altamente burocratizada, desempenha o papel de tentar criar uma unidade entre a produção e o controle, tornando esse último impessoal, pois é aparentemente regido pelas complexas regras burocráticas.
A ruptura entre produção e consumo é responsável por gerar uma situação em que o excesso de consumo, mais absurdamente manipulado e desperdiçador, encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas (Mészáros, 2002, p. 105). Aqui aparece com clareza a necessidade da idéia de que a natureza do homem é competitiva: a partir dela é possível justificar as profundas desigualdades e injustiças que o capital traz, pois o fato dos fracos serem devorados pelos fortes torna-se algo considerado natural. A soberania do consumidor individual é a ideologia que permite às pessoas "aceitar" a exclusão da esmagadora maioria da população mundial de forma prejulgada e legalmente amparada. Também aqui o Estado tem um papel crucial: ele garante a dominação do capital contra as forças que poderiam desafiar as desigualdades no consumo e na distribuição. Além disso, ele é responsável por prover algumas das necessidades reais do conjunto social (visto que a produção, no sistema do capital, não se volta para as necessidades humanas, em virtude da ruptura entre produção e consumo), como moradia, saúde, educação e alimentação. Mas, além disso, ele é importante consumidor de supérfluos (como, por exemplo, a alimentação da perdulária máquina burocrática e do complexo bélico-militar), garantindo a saúde do capital.
O Estado se faz, todavia, mais presente na busca da unidade entre produção e circulação. A separação advém do fato de a estrutura de controle político do capital se articular como Estados-nação, embora o capital, como forma de controle sociometabólico, não possa se confinar a esses limites. Por isso, o Estado resolve essa contradição por meio da criação de um sistema de duplo padrão: em casa (ou seja, nos países metropolitanos ou centrais do sistema do capital global) um padrão de vida bem mais elevado para a classe trabalhadora associado à democracia liberal e, na periferia subdesenvolvida, um governo maximizador da exploração, implacavelmente autoritário (e, sempre que preciso, abertamente ditatorial), exercido diretamente ou por procuração (Mészáros, 2002, p. 111).
A globalização consiste, então, no desenvolvimento de um sistema internacional de dominação e subordinação, levado a cabo como uma necessidade intrínseca do capital como modo de regulação da sociedade. Sendo assim, observa-se claramente que o capital comporta-se em suas ações internacionais de forma completamente diferente da utilizada no âmbito das políticas internas. Por exemplo, no plano interno, o Estado comumente introduz medidas legais antimonopolistas; mas, no domínio da competição internacional, o Estado torna-se facilitador da expansão monopolista do capital no exterior (Mészáros, 2002).
Tendo em vista a íntima associação entre o Estado e o capital como regulador sociometabólico, Mészáros (2002) defende que sua inter-relação se caracteriza pela simultaneidade, no sentido de que essas duas instituições surgem ao mesmo tempo na história, sendo, portanto, co-determinadas. O Estado não poderia ser, então, caracterizado como super-estrutura, visto que Estado e capital são um só e inseparáveis.
A idéia defendida por Hayek (1990) de que o sistema liberal impede a centralização de poder por separar o poder político do econômico mostra-se, então, completamente absurda e insustentável. A partir da análise de Mészáros (2002), podemos concluir que a adoção do capital como regulador da sociedade só poderia levar à criação de um monstro superpoderoso feito os Estados Unidos, pois o capital é inerentemente orientado para a expansão e movido pela acumulação. Dessa forma, a globalização, a exclusão, as desigualdades sociais, os monopólios, a forte concentração de renda (e de poder) são conseqüências inexoráveis da adoção do capital como sistema de regulação da sociedade. A dominação hegemônica de uma superpotência também o é. Mészáros (2002) afirma que os EUA fazem e farão de tudo para manter sua hegemonia, e isso inclui, por exemplo, realizar imperialismo de cartão de crédito, gerando um endividamento que chega à ordem dos trilhões de dólares. Os países subdesenvolvidos são forçados a pagarem a dívida dos EUA, produzindo os recursos que a economia americana requer. Quando esses países não forem mais capazes de fazê-lo, o mundo assistirá a um calote final de magnitude inimaginável (p. 1086), e isso certamente trará terríveis conseqüências para a vida das pessoas comuns, principalmente no Terceiro Mundo.
Uma outra estratégia, de grande importância, utilizada pelos EUA visando à manutenção de sua hegemonia é a imposição, de maneira extremamente opressiva, de sua cultura e de seu modo de vida ao restante do mundo. Essa imposição se faz por meio da fusão entre cultura e economia. Dessa forma, a cultura não mais é o domínio em que é possível negar ou se refugiar dos males do capital, mas sim sua mais evidente expressão. A propaganda aqui também exerce um papel fundamental, pois, na medida em que cultura e economia se fundem, a produção de mercadorias é também um fenômeno cultural, e os produtos são comprados e vendidos tanto por sua imagem quanto pela sua efetiva utilidade. A indústria da propaganda planeja a imagem das mercadorias e a estratégia de venda: a propaganda tornou-se uma mediação fundamental entre a cultura e a economia (Jameson, 2001, p. 23). Mas, além da propaganda, também são utilizados outros meios de imposição de cultura. Por exemplo, Jameson (2001) afirma que os EUA realizaram um grande esforço após a Segunda Guerra Mundial no sentido de garantir a dominação de seus filmes em mercados estrangeiros, e que isso foi feito por via política, com a inclusão de cláusulas específicas em pacotes e tratados de ajuda econômica.
Essa imposição cultural tem um gigantesco potencial destrutivo, visto quepode provocar a extinção final das culturas nacionais, que só podem ser ressucitadas de uma forma disneyficada, através da construção de simulacros artificiais e da transformação em meras imagens do que antes eram tradições ou crenças imaginadas (Jameson, 2001, p. 27). A assimetria radical entre os EUA e os demais países do mundo permite que sua cultura e sua língua, associadas com o dinheiro e com as mercadorias, tenham um prestígio que é prejudicial, se não letal, para toda a produção cultural doméstica. É inegável que o Terceiro Mundo vive hoje, de forma dramática, essa destruição da produção cultural local (cinema, televisão, literatura, música, entre outros).
Jameson (2001) ressalta que o triunfo de Hollywood não é somente um triunfo econômico, mas também um importante triunfo político, visto que a disseminação do american way of life e do consumismo inerente a ele é fundamental para que a dominação político-econômica dos EUA seja mantida, pois dizer produção de cultura equivale a dizer produção da vida cotidiana e sem isso um sistema econômico não consegue continuar a se implantar e se expandir (Jameson, 2001, p. 60)
Observa-se, então, que a aplicação da cartilha liberal permitiu que a dominação norte-americana se desse nos planos econômico, político e cultural, de forma simultânea e sinérgica. Tal dominação ampara-se, em última instância, no assustador poderio bélico norte-americano, que ameaça, com a possibilidade de destruição total, qualquer manifestação de resistência. Ela representa o fim de toda a possibilidade de liberdade, incluindo a de expressão e de pensamento, que, até mesmo nos mais cruéis regimes totalitários, é tolhida com dificuldade. Utilizando a terminologia de Polanyi (2000), é como se o moinho satânico tivesse crescido e se multiplicado, adquirindo cada vez maiores poderes de destruição, mastigando todos e quaisquer estilos de vida organicamente estruturados, para substituí-los por outros pré-fabricados, mecanizados e regidos pelo instrumentalismo associado à lógica econômica.
Mészáros (2002) afirma que Polanyi (2000) se equivocou ao acreditar que o Moinho Satânico fosse o mercado auto-regulável ou a economia de mercado; segundo ele, o terrível moinho era o próprio sistema do capital, do qual o mercado auto-regulador foi somente um momento passageiro e subordinado (Mészáros, 2002, p. 903). Ele afirma que o mercado auto-regulador é um sistema em que o trabalho excedente é extraído por meio de mecanismos econômicos. Todavia, aponta que, nos Estados socialistas (stalinistas), a extração de trabalho excedente era feita por meio de imposição política; por extrair trabalho excedente (e alienar a produção do controle), tais sociedades também adotaram o capital como forma de regulação sociometabólica, muito embora não seguissem a cartilha do liberalismo. Na contemporaneidade, o mito do mercado auto-regulador não mais se sustenta, tendo em vista o papel cada vez maior desempenhado pelo Estado na manutenção da ordem vigente. Poderíamos dizer, utilizando a terminologia de Mészáros (2002), que a extração de trabalho excedente hoje não se faz por mecanismos políticos ou econômicos exclusivamente, mas sim por meios político-econômico-culturais, visto que nunca antes esses três elementos estiveram tão unificados.
Isso, todavia, de maneira alguma invalida a análise de Polanyi (2000), pois o que ele nos mostra é que o primado do princípio econômico na sociedade é uma novidade histórica: surgiu há alguns séculos atrás, por intenção deliberada do Estado inglês, e teve como conseqüência a desestruturação completa do modo de vida das pessoas. Os princípios éticos, os laços de parentesco e convivenciais, que antes orientavam e motivavam as ações das pessoas foram substituídos por outros, ligados à lógica econômica. Nisso consistiu a Grande Transformação, e por isso ela foi responsável por uma verdadeira tragédia na vida cotidiana das pessoas que a viveram. Polanyi pode ser considerado um dos principais inimigos do liberalismo porque vislumbra uma questão para a qual os socialistas foram cegos.
Hassan Zaoual (2003) afirma que o processo de re-encaixe ou enraizamento (no sentido de imersão, conforme a terminologia de Polanyi) da economia nas práticas cotidianas vividas pelas pessoas é fundamental para a proposição de estratégias de desenvolvimento que não repitam os fracassos históricos de modelos de desenvolvimento baseados na lógica da economia de mercado. A economia não pode ser entendida como entidade independente da sociedade, visto que a realidade econômica é feita de um enredamento de mercados locais concretos, inseridos em territórios, histórias e memórias.
Ele afirma que o homem é um animal territorial, que necessita vitalmente de crer e se inserir em locais de pertencimento. Tais locais de pertencimento, aos quais denomina sítios simbólicos de pertencimento são multidimensionais, pois abarcam uma variedade de aspectos relacionados à vida dos homens, tais como mitos, crenças, experiências, memórias, saberes sociais, teorias, modelos, ofícios, ações, história, entre tantos outros. Além dessas dimensões, o sítio de pertencimento engloba outras que fogem da possibilidade de racionalização, pois o homem é representante do indefinível (Zaoual, 2003, p. 93). É por meio do sentimento de pertencer a um sítio que o homem encontra o sentido, a ancoragem e o vínculo social de que necessita para viver, e isso a economia do capital é incapaz de lhe fornecer. O homem situado, ou homo situs, é aquele que tem capacidade de se situar para poder "definir" os problemas que tem. O homem é rei em seu território, ele deve ser o especialista em seus próprios problemas. A definição dos problemas, assim como sua solução, são, então, questões que devem ser formuladas in situ. Cada sítio possui um código de leitura e um modo de funcionamento, que só podem ser entendidos por quem pertence efetivamente a ele.
A imposição de um modelo único de sociedade e de desenvolvimento agride esse caráter essencialmente territorial do homem, e por isso o oprime e elimina a possibilidade de exercício de sua autonomia. Zauoal (2003) nos mostra que não se deve buscar nem esperar fórmulas, modelos ou teorias cuja aplicação traga justiça e liberdade para as pessoas, posto que esses anseios somente se tornarão realidade no interior dos sítios de pertencimento dos homens, respeitando-se a diversidade e singularidade de cada um deles.
Podemos arriscar dizer, a partir da obra de Polanyi (2000), que a subordinação de todos os aspectos da vida das pessoas a uma instituição, seja ela o mercado, o Estado ou qualquer outra, é o real motivo de escravização dos homens. Há, então, inúmeros caminhos possíveis para a servidão, sendo que a humanidade já experimentou três deles: o totalitarismo, o comunismo e o liberalismo.
Referências bibliográficas
BUBER, Martin. Paths in Utopia. Nova York: Syracuse University Press, 1996, 152 p. [ Links ]
HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Tradução de Berilo Vargas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. 501 p. [ Links ]
HAYEK, Frederich .A. O caminho para a servidão. Tradução: Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. 221 p. [ Links ]
HERMAN, Edward S.; CHOMSKY, N. A manipulação do público: política e poder econômico no uso da mídia. São Paulo: Futura, 2003. 470 p. [ Links ]
JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro: ensaios sobre a Globalização. Tradução de Maria Elisa Cervaso e Marcos César de Paula Soares. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 207 p. [ Links ]
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002. 1102 p. [ Links ]
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. 349 p. [ Links ]
SALE, Kirckpatrick. Inimigos do futuro:a guerra dos luditas contra a revolução industrial e o desemprego. Tradução de Valéria Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 1999. 278 p. [ Links ]
WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas. Tradução de Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 2002. V. 1: A Idéia. 272 p. [ Links ]
ZAOUAL, Hassan. Globalização e diversidade cultural. Tradução de Michel Thiollent. São Paulo, SP: Cortez, 2003. 120 p. [ Links ]
Artigo recebido em 15 jul. 2003; aprovado em 28 set.2003
Nenhum comentário:
Postar um comentário