quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Dados econômicos fortes.




“Uma concreção de poder, de desejo e de territorialidade ''

Foucault publicava Surveiller et punir, dando corpo a uma investigação que denotava um deslocamento dos seus interesses da constituição do saber à genealogia do poder. Não mudava apenas o objecto, mudavam, correlativamente, os conceitos. Entre outros, e sobretudo, o conceito de episteme deixa o lugar central que tinha ocupado até então para que seja ocupado pelo conceito de dispositivo (nada menos que 39 ocorrências, quando nunca antes tinha sido utilizado, fora dos cursos do College de France desse mesmo ano Les anormaux e «Il faut défendre la société»).

E Foucault tem nisto, sobretudo, uma dívida com Deleuze, com quem na época colabora no Groupe d'information sur les prisons; neste sentido, escreve: “eu não saberia medir por referências ou citações o que este livro deve a Gilles Deleuze e ao trabalho que faz com Félix Guattari” (FOUCAULT, 1975, p. 29 ). Trata-se da mesma dívida que reconhece um ano mais tarde no College de France; então atribui a razão do seu novo trabalho às “ofensivas dispersas e descontínuas” como as da anti-psiquiatria, mas sobretudo “à eficácia de algo – eu não ouso dizer um livro – como L'Anti-Oedipe [...] livro, ou, antes, coisa, acontecimento” (FOUCAULT, 1997, p. 7). Foucault fala grandiloquentemente, mas não entra em precisões. Diz-nos que tem uma dívida para com Deleuze, não o que lhe deve.

 Confunde-se Foucault, que escreve o seu prólogo em 77, depois da publicação de Kafka? Ou é sensível a algo que passa despercebido ao grosso dos leitores de L'Anti-Oedipe? Bom, tudo é possível, digo, não podemos saber realmente o que passava pela cabeça de Foucault, mas a verdade é que, ainda que escassas, já encontramos ocorrências de ambos os términos em L'Anti-Oedipe. Pelo menos duas: 1) Primeiro, falando das regras de parentesco, Deleuze e Guattari referem-se a um «dispositivo matrimonial»: Os etnólogos não deixam de dizer que as regras de parentesco não são aplicadas nem aplicáveis aos matrimónios reais: não porque estas regras sejam ideais, senão, pelo contrário, porque determinam pontos críticos nos quais o dispositivo se volta a por em marcha com a condição de estar bloqueado, e se situa necessariamente numa relação negativa com o grupo. É aí que aparece a identidade da máquina social com a máquina desejante (DELEUZE; GUATTARI, 1973, p. 178).

 E, em seguida, no final do capítulo três, aparece pela primeira vez explicitamente a ideia de «agenciamento maquínico»: “Substituir o sujeito privado da castração [...] por agentes colectivos, que remetem a agenciamentos maquínicos. Reverter o teatro da representação na ordem da produção desejante: a tarefa por excelência da esquizoanálise” (DELEUZE; GUATTARI, 1973, p. 324). São apenas duas ocorrências, mas dão conta do surgimento de uma noção que estava a cobrar vida. Numa entrevista do mesmo ano, ainda, Deleuze assinalava a possibilidade de pensar a linguagem, para além do sujeito e da estrutura, como um “sistema de fluxos contínuos de conteúdo e expressão, recortado pelos agenciamentos maquínicos de figuras discretas e descontínuas” (DELEUZE, 2002, p. 35), como uma hipótese que ainda não tinham desenvolvido suficientemente.

Ou então Foucault fala de agenciamentos: «agenciamento panóptico» (FOUCAULT, 1975, p. 210), «agenciamento político da vida» (FOUCAULT, 1976, p. 163), etc. Porque Foucault fala indistintamente de agenciamento e dispositivo, ainda que certamente faça do agenciamento um uso muito restrito (1 ocorrência em Surveiller et punir, 4 em La volonté de savoir). Em todo o caso, o conceito ganha em precisão. Entre outros, Edgardo Castro propõe considerar para a definição foucaultiana de dispositivo três elementos essenciais: 1) O dispositivo é a rede de relações que se podem estabelecer entre elementos heterogéneos: discursos, instituições, arquitecturas, regulamentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não-dito. 2) O dispositivo estabelece a natureza do nexo que pode existir entre estes elementos heterogéneos. Por exemplo, o discurso pode aparecer como programa de uma instituição, como um elemento que pode justificar ou ocultar uma prática, ou funcionar como uma interpretação a posteriori desta prática, oferecer-lhe um campo novo de racionalidade. 3) O dispositivo é uma formação que num momento dado teve como função responder a uma urgência [...] tem assim uma função estratégica, como, por exemplo, a reabsorção de uma massa de população flutuante que era excessiva para uma economia mercantilista [assim, o hospital geral, pode funcionar como dispositivo de controlosujeição da loucura](CASTRO

O que é um agenciamento? Em princípio, é uma alternativa conceptual ao sujeito e à estrutura, que permite a Deleuze – as palavras são de Philippe Mengue – “refundar uma teoria da expressão, eliminando qualquer traça «representativa» na função de expressão, e contornando toda a teoria da linguagem e dos signos (do significante) de Saussure” (MENGUE, 1997, p. 61 - 62). Como funciona? Basicamente, relacionando os fluxos semióticos com os fluxos extrasemióticos e as práticas extra-discursivas, para além das relações de significante a significado, de representante a representado: trata-se de uma relação de implicação recíproca entre a forma do conteúdo (regime de corpos ou maquínico) e a forma da expressão (regime de signos ou de enunciação). Neste sentido, qualquer agenciamento tem duas caras: Não há agenciamento maquínico que não seja agenciamento social de desejo, não há agenciamento social de desejo que não seja agenciamento colectivo de enunciação [...] E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado como o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação num processo que não permite que nenhum sujeito seja assignado, mas que permite por isto mesmo marcar com maior ênfase a natureza e a função dos enunciados, uma vez que estes não existem senão como engrenagens de um agenciamento semelhante (não como efeitos, nem como produtos). [...] A enunciação precede o enunciado, não em função de um sujeito que o produziria, senão em função de um agenciamento que converte a enunciação na sua primeira engrenagem, junto com as outras engrenagens que vão tomando o seu lugar paralelamente (DELEUZE; GUATTARI, 1975, p. 147 - 152 ). Há outra característica fundamental dos agenciamentos: qualquer agenciamento apresenta, por um lado, uma estratificação mais ou menos dura (digamos, os dispositivos de poder; Deleuze diz: “uma concreção de poder, de desejo e de territorialidade ou de reterritorialização, regida pela abstracção de uma lei transcendente” (Ibid, p. 153)), mas por outro compreende pontas de desterritorialização, linhas de fuga por onde se desarticula e se metamorfoseia (“onde se liberta o desejo de todas as suas concreções e abstracções”, diz Deleuze ( Ibid, p. 154)).


Uma fantástica colonização.

Não se encontra o tonal como se encontraria qualquer coisa, ele está em toda parte, é visto sem ser percebido, está nas coisas, é o próprio rosto do mundo. “Em outras palavras, o tonal faz as regras pelas quais apreende o mundo. Assim, de certo modo, cria o mundo”362 . Não é Deus que encerra tudo como poderíamos ter pensado um dia. Tanto esse pensamento quanto o próprio Deus são objetos da ilha. Desde que entramos na ilha ou ela em nós, que é a mesma coisa, “começamos a fazer pares”363 . Passamos a ter dois lados: “alma e corpo. Ou o espírito e a matéria. Ou o bem e o mal. Deus e Satanás”364 . Segundo o autor, desde que nos tornamos inteiramente tonais “(...) não fazemos outra coisa senão incrementar aquele antigo sentimento de deficiência que nos acompanha (...) e que nos diz incessantemente que há uma outra parte para completar-nos”365 . Uma fantástica colonização, socialização, aculturação, seja que nome se vai conferir. Fazer a roupa, um rosto, edipianizar, dar funções-nomes aos pais. No entanto, há um outro lado que não se encontra na ilha, sentimo-nos ao nosso lado, “ilhas desertas”. Porém, quando somos afetados por esse outro lado deserto, “o tonal apodera- se da batuta e, como maestro, é muito mesquinho e zeloso. Ofusca-nos com sua esperteza e nos obriga a obliterar o mais leve vislumbre da outra parte do verdadeiro par, o nagual”366 . O tonal fez o homem acreditar. Fé estranha que o faz pensar estar sendo guiado por forças de bem ou de mal. Para Castañeda, a vida tem o seu verdadeiro movimento entre o “negativo e o positivo”. Não há nenhum valor de bem ou de mal, apenas forças. O corpo sem órgão reage: “fizeram-me um organismo! Dobraram-me indevidamente! Roubaram meu CORPO! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado”367 . É assim que se fabrica um sujeito, estratificando-o, esmagando o seu “corpo” debaixo dos estratos, ilhando-o até o limite do intolerável. Contudo, segundo Deleuze e Guattari, seguindo Castañeda, “existe no ser humano um outro plano, obscuro e informe, onde a consciência não entrou, mas que a cerca de uma espécie de prolongamento sombrio”368 . Esse é o plano que, constantemente, ameaça a consciência com as “sensações aventurosas”, sem controle algum. O que para Artaud, “são os fantasmas desavergonhados que afetam a consciência doentia”369 . E conclui Artaud: “eu também tive sensações falsas, percepções falsas e nelas acreditei”370 . O Fora da consciência não seria uma outra consciência, nem uma espécie de contra-consciência. Não é concebível pensar esse outro plano como um lugar de nossa psique. O nagual é comparado ao “mundo das anarquias coroadas”, mundo cintilante onde o eu se desfaz na multiplicidade, lugar do corpo sem órgãos, plano de imanência do desejo. Feliz coincidência, em Nietzsche,371 o mundo não é apenas uma vontade, o mundo é uma pluralidade de forças em luta: “(...) qualquer ser vivo quer expandir a sua força – a própria vida é vontade de poder”372 . Em Castañeda, a noção de força, semelhantemente a de Nietzsche, também guarda o sentido de poder – preservando o sentido desse conceito em Nietzsche. O nagual, diferentemente do tonal, não é experiência, nem consciência. O tonal se firma na mesma proporção do Eu empírico, que pensa pensar e revelar a realidade, nasce com o homem e morre quando da sua

Linhas, fusos e meridianos distintos.

. Para Deleuze e Guattari, os indivíduos ou grupos são atravessados por verdadeiras linhas, fusos e meridianos distintos. Nossa existência é uma espécie de geografia. Somos corpos cartográficos. Assim como os mapas geográficos delimitam e registram territórios políticos, econômicos e culturais, os indivíduos também são registrados e cruzados por linhas. Algumas dessas são traçadas do exterior e não se cruzam, ao contrário, separam-se e demarcam os seus próprios territórios. Outras são produtos do acaso; mas há outras que devemos inventá-las, traçá-las efetivamente na vida. Devemos criar nossas próprias linhas de fuga. Mesmo que para alguns indivíduos ou grupos nunca seja possível construí-las. Outros já as perderam. As linhas de fuga são "uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma"346 . O desejo escorre para agenciamentos e não há agenciamentos solitários. “Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol (...)”347 . Desejar é desterritorializar para construir sempre outras paisagens. Guattari declara que “torna-se imperativo refundar os eixos de valores, as finalidades fundamentais humanas e das atividades produtivas”348 . É a possibilidade de um engajamento ético, estético e analítico. Para Guattari, uma ecosofia “consistirá, portanto, em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho”

Datilografia



Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Educação de marinheiro






quarta-feira, 30 de agosto de 2017

de notáveis para elevadas



Acordar


Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lirios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também..

terça-feira, 29 de agosto de 2017

(Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo,)


Conclusão a sucata!... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...

A, microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...

Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...

La pedagogia social...







Três de Ortega y Gasset.





Psiquetipia (Ou Psicitipia) ÁLVARO DE CAMPOS



Símbolos. Tudo símbolos
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti...
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é...
E por que não há de ser?

Símbolos...
Estou cansado de pensar...
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

Meu Deus! e não sabes...
Eu pensava nos símbolos...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
"It was very strange, wasn’t it?"
"A wfully strange. And how did it end?"
"Well, it didn't end. It never does, you know."
Sim, you know... Eu sei...
Sim eu sei...
É o mal dos símbolos, you know.
Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...

LABIRINTO (Borges)


Marinetti, acadêmico (Álvaro de Campos )


Lá chegam todos, lá chegam todos...
Qualquer dia, salvo venda, chego eu também...
Se nascem, afinal, todos para isso...

Não tenho remédio senão morrer antes,
Não tenho remédio senão escalar o Grande Muro...
Se fico cá, prendem-me para ser social...

Lá chegam todos, porque nasceram para Isso,
E só se chega ao Isso para que se nasceu...

Lá chegam todos...
Marinetti, acadêmico...

As Musas vingaram-se com focos elétricos, meu velho,
Puseram-te por fim na ribalta da cave velha,
E a tua dinâmica, sempre um bocado italiana, f-f-f-f-f-f-f-f...

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

(Corre, raio de rio, e leva ao mar)

Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjetiva!
Qual "leva ao mar"! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se ativa,
Morre a pôr etiquetas ao grande ar...

Escancarado Furness, mais três dias
Te aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilíssimas vistorias...

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso...

ODE MARÍTIMA (Álvaro de Campos)


Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É – sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha

Três de Álvaro de Campos.