quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Uma fantástica colonização.

Não se encontra o tonal como se encontraria qualquer coisa, ele está em toda parte, é visto sem ser percebido, está nas coisas, é o próprio rosto do mundo. “Em outras palavras, o tonal faz as regras pelas quais apreende o mundo. Assim, de certo modo, cria o mundo”362 . Não é Deus que encerra tudo como poderíamos ter pensado um dia. Tanto esse pensamento quanto o próprio Deus são objetos da ilha. Desde que entramos na ilha ou ela em nós, que é a mesma coisa, “começamos a fazer pares”363 . Passamos a ter dois lados: “alma e corpo. Ou o espírito e a matéria. Ou o bem e o mal. Deus e Satanás”364 . Segundo o autor, desde que nos tornamos inteiramente tonais “(...) não fazemos outra coisa senão incrementar aquele antigo sentimento de deficiência que nos acompanha (...) e que nos diz incessantemente que há uma outra parte para completar-nos”365 . Uma fantástica colonização, socialização, aculturação, seja que nome se vai conferir. Fazer a roupa, um rosto, edipianizar, dar funções-nomes aos pais. No entanto, há um outro lado que não se encontra na ilha, sentimo-nos ao nosso lado, “ilhas desertas”. Porém, quando somos afetados por esse outro lado deserto, “o tonal apodera- se da batuta e, como maestro, é muito mesquinho e zeloso. Ofusca-nos com sua esperteza e nos obriga a obliterar o mais leve vislumbre da outra parte do verdadeiro par, o nagual”366 . O tonal fez o homem acreditar. Fé estranha que o faz pensar estar sendo guiado por forças de bem ou de mal. Para Castañeda, a vida tem o seu verdadeiro movimento entre o “negativo e o positivo”. Não há nenhum valor de bem ou de mal, apenas forças. O corpo sem órgão reage: “fizeram-me um organismo! Dobraram-me indevidamente! Roubaram meu CORPO! O juízo de Deus arranca-o de sua imanência, e lhe constrói um organismo, uma significação, um sujeito. É ele o estratificado”367 . É assim que se fabrica um sujeito, estratificando-o, esmagando o seu “corpo” debaixo dos estratos, ilhando-o até o limite do intolerável. Contudo, segundo Deleuze e Guattari, seguindo Castañeda, “existe no ser humano um outro plano, obscuro e informe, onde a consciência não entrou, mas que a cerca de uma espécie de prolongamento sombrio”368 . Esse é o plano que, constantemente, ameaça a consciência com as “sensações aventurosas”, sem controle algum. O que para Artaud, “são os fantasmas desavergonhados que afetam a consciência doentia”369 . E conclui Artaud: “eu também tive sensações falsas, percepções falsas e nelas acreditei”370 . O Fora da consciência não seria uma outra consciência, nem uma espécie de contra-consciência. Não é concebível pensar esse outro plano como um lugar de nossa psique. O nagual é comparado ao “mundo das anarquias coroadas”, mundo cintilante onde o eu se desfaz na multiplicidade, lugar do corpo sem órgãos, plano de imanência do desejo. Feliz coincidência, em Nietzsche,371 o mundo não é apenas uma vontade, o mundo é uma pluralidade de forças em luta: “(...) qualquer ser vivo quer expandir a sua força – a própria vida é vontade de poder”372 . Em Castañeda, a noção de força, semelhantemente a de Nietzsche, também guarda o sentido de poder – preservando o sentido desse conceito em Nietzsche. O nagual, diferentemente do tonal, não é experiência, nem consciência. O tonal se firma na mesma proporção do Eu empírico, que pensa pensar e revelar a realidade, nasce com o homem e morre quando da sua

Um comentário:

  1. Contudo, o “nagual não tem limites”373
    . Ele é poder de afetar. “Pode-se
    dizer que o nagual explica a criatividade (...). O nagual é a única parte de nós
    que consegue criar”374
    . A questão é como enfrentar as dificuldades para atingir
    este mundo “da Anarquia coroada, se se fica nos órgãos”375
    . Se são os órgãos
    que nos fixam nesse mundo, como operar esse movimento entre forças que se
    opõem? Como criar um modo de vida entre tensões? São elementos que se
    detestam, não podem coexistir sem que haja tremores e erupções. E de onde veio a idéia de que o homem só pode viver seguro quando esse combate tiver findo? Não vem das antigas idéias de bem e de mal que fazem o julgamento da vida? Diz Dom Juan:
    (...) tudo nelas é triste, as roupas, o cheiro, a atitude. Por que você acha que é assim?
    -Talvez tenham nascido assim – respondi. -Ninguém nasce assim. Nós nos tornamos assim376
    . Para quem se acostumou a viver tonal, como andar em terras onde não
    existem deuses para julgar?

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