quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A corrosiva poesia de Guilhermino César.



No mês em que comemoramos o centenário de Guilhermino Cesar, nada mais justo do que presenteá-lo concedendo-lhe um pedido feito antes de sua partida, registrado no discurso em sua homenagem em 1988, na cidade de São Luiz Gonzaga, RS: “Mas se algum dia alguém quiser lembrar de mim, que se lembre do poeta. é a única coisa que me identifica. Eu só tenho essa vaidade no mundo. Eu me considero um poeta.”

Pela erudição de seus versos, através de rimas ricas, versos brancos ou metrificados, Guilhermino nos apresenta, acima de tudo, a degradação do ser humano perante a velocidade do mundo pós-moderno. Este tema acompanha o autor em seus diversos escritos e se humaniza na forma de sujeitos sem face, meninos moradores de um País Sem Nome, emigrantes perdidos, um homem “Na sarjeta”, o homem “Bicho da terra” que somos e, na sua dilacerante criação, o Animal do Tarde, um ser que “não é planta, não é diorito,/ nem ave; é/ um animal do tarde” que “não larga o poder nem para dormir; / o poder na mão é o seu existir. / O poder é o seu mais ébrio uísque” ¹.

Guilhermino aprofunda nossos sentidos inúmeras vezes para atentarmos o quanto “A civilização é uma coisa de mau cheiro, / orgulhosa de seus pudores mecânicos, / de sua baba erudita, de seus crimes polidamente bem arrotados na Bolsa”. Suas sinestesias escatológicas atingem o leitor como um golpe. Outra forma encontrada pelo autor para abordar a pós-modernidade é o uso da imagem da tecnologia (principalmente com máquinas) que substituiria a mão humana. É possível identificar estas características em “O espião” onde “o espião espia o robô enferrujando o poeta” e em “O último homem”, onde “Do vidro liso/ que o gerou/ salta sem complexos/ e não tem segredos/ e não tem passado. / é / um senhor asséptico, / alourado, discreto”. A presença da tecnologia como destruidora da identidade humana voltará à tona também nas crônicas de Cesar, abordando o engolimento do homem pela cidade, que o desumaniza, como em “Humanização do Cimento” e “Civilization” (publicadas respectivamente em 05/10/74 e 27/10/73 no jornal porto-alegrense Correio do Povo), sendo desta última o seguinte excerto: “a inseminação artificial humana, artificial e asséptica, sem dor e sem odor, sem graça e sem gemido”. Até mesmo a procriação sendo substituída pela máquina.

Outra figura destruidora do indivíduo muito presente nas obras de Guilhermino é a acidez, que assim como acontece com Dr. Jekyll de Stevenson, extermina o lado humano de quem a detém, é um desatinador. Vejamos o excerto de “A Poção”: “Combino frustrações: duas pitadas/ de pejo: um bocado só de mágoa,/ nascida ontem, quase ao anoitecer;/ adiciono a goma verde dos dias de nojo,/ e bebo. / Bebo esta mistura cinqüenta vezes ao dia/ nela não encontro jamais o gosto das brancuras/ idealizadas (de que tanto necessito)/ mas apenas carinhos nonatos/ frustrações de um e outro continente,/ e o mais que omito por pudor(...) / Combino duzentas gramas de pasmo / quinhentas de nojo/ agito, agito, poção dos infernos, / e bebo.”. Na mesma perspectiva o poema “Viver no ácido” revela: “Viver no ácido é o meu sistema. / Não que o tenha construído / eu. / Recebi de presente, não sei como. / é um modo de morrer se esfarelando”. O ácido de Guilhermino Cesar corrói nossa leitura e nosso senso de realidade; consegue tornar seus versos, literalmente, ácidos.

Existe uma crueza em relação ao comportamento humano, em sua sede de conquista pela morte e pelo lucro. O livro “Arte de Matar” define a modernidade como um tempo onde “(A pomba da paz se come / com batatas e arroz)” e “O monstro é sócio do monstro. / Não há ninguém para receber / o grito dos que morrem / na terra povoada / de feras”. O sádico matador dos versos “Confissão” acusa a morte da culpa: “A consciência me assusta? Faço o possível / por enterrá-la numa caixa de vidro / asséptica, e escrevo por fora: PERIGO”. Já nos versos históricos de “Gongo-Soco”, o poema “O Mal do Ouro” lembra: “O mal do ouro / rói os alicerces do sobrado, / de todos os sobrados,/ em todas as ruas, / paróquias e potocas. / O mal do ouro/ come braços, troncos, pernas; roendo/ enterra-se no podre/ do intestino grosso. / O mal do ouro/ só não come o sopro/ além do corpo”.

É possível encontrar muita comunicação entre os versos de Guilhermino e outros poetas. Com Gonçalves Dias há uma intertextualidade escancarada, pois o nosso centenário aniversariante cria uma versão (colonizadora e expansionista) da “Canção do Exílio” com a seguinte finalização: “E depois de tudo feito/ não permita Deus que eu morra/ sem que volte para lá;/ quero ver os Coronéis/ quero ver os Carajás/ na terra das frustrações/ onde canta o sabiá”. Existe ainda o poema “Em S. Martinho de Anta”, onde há uma introdução de I-Juca Pirama e, nos versos guilherminianos, a ênfase de “meninos, eu vi”.

“Guilhermino Cesar, o que, menino pediu ao pai uma bicicleta e o velho deu-lhe as poesias de Bilac” ², se tornou um erudito que discorreu com excelência em todas suas áreas de atuação (diplomacia; crítica literária, teatral e cinematográfica; pesquisa; pesquisa histórica; tradução; crônica; poesia; sala de aula...). Poderíamos afirmar que este espírito pela busca do vasto saber foi herança do berço mineiro, pai orgulhoso de outros tantos talentosos nomes da Literatura, ou de sua saudosa Cataguases para onde o centenário dirige muitas vezes seus versos como um lugar idílico, referencial para seu repouso eterno, como nos versos de “Bilhete para Cataguases”, “Em família”, “Viagem” e “Morrer Aqui”. Poderíamos procurar também a origem de sua erudição na sua observação constante, seu olhar clínico para o mundo.

O fato é que temos um escritor de grande presença literária e, com certeza, merecedor do título de POETA. Recebe, Guilhermino, teus louros! Como poeta tu (também) serás lembrado!

1. Títulos e citações extraídos dos livros “Arte de Matar”, “Lira Coimbrã”, “Gongo-Soco”, “Novembro Paulistano”, “Paris-Expresso”, “Anepígrafo” e “Sistema do Imperfeito & Outros Poemas”.
2. “Seqüestro de Guilhermino Cesar”, Carlos Drummond de Andrade.



*Priscila Oliveira Monteiro Moreira (Porto Alegre RS)é estudante de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista no projeto Acervo Guilhermino Cesar na mesma instituição.

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