segunda-feira, 21 de agosto de 2017

The air-conditioned nightmare


Não são os vestígios que importam, mas suas fontes humanas. A arqueologia não deveria se ocupar das ruínas, mas do esplendor das mãos anterior a elas. Isso poderia tirar do estudo do passado remoto sua roupagem funerária, sua obsessão por túmulos, suas descobertas que se transformam em museus suntuosos. Descobrir um gesto numa fogueira extinta é mais importante do que ver imobilizado um trono de ouro acompanhando múmias.
A função civilizatória da arqueologia não é o deslumbramento provocado pela precocidade dos ancestrais, mas enxergar o que qualquer civilização esconde quando for comparada ao verdadeiro enigma, a natureza. O que faz o projeto esquecido de uma pirâmide no alto da montanha? Qual o sentido de uma cidade industrial americana colocada ao lado do Grand Canyon? Esses eventos poderão revelar toda a fuligem, precariedade, escândalo e horror que acompanham a modernidade?
É disso que se ocupa Henry Miller no seu clássico livro de viagens, “Pesadelo Refrigerado”, um trabalho arqueológico que despreza os vestígios, a não ser que sirvam para provar sua tese sobre a sujeira da América. Ao detectar a origem do pesadelo — o divórcio entre homem e natureza no país que despreza a arte e a cultura — ele vai atrás do tesouro verdadeiro oculto a quilômetros abaixo das aparências: os gênios, anônimos ou simplesmente desprezados e perseguidos, que fazem a grandeza da sua época e que passam despercebidos pela brutalidade de uma nação que aposta nas vantagens da guerra. Esta, já estava desencadeada na Europa na época em que foi escrito o livro, mas ainda não havia o engajamento, vislumbrado como iminente, do governo Roosevelt, em 1941.
Miller costuma acertar porque não faz concessões, como comprovam algumas frases ciscadas (e colocadas aqui em sequência, para destacar a contundência de suas análises e profecias) no seu percurso pelo país que o assusta o tempo todo: “Neste mundo, o poeta é anátema, o pensador um tolo, o artista um alienado, o homem de visão um criminoso. O pior sofrimento é o que se encontra no próprio coração do progresso. Todo o mundo branco se transformou em um campo armado. Vamos aprender a aniquilar o planeta inteiro num piscar de olhos — espere só para ver”.
Diante do pesadelo, que é o país deserto e insuportável, os gênios pontuam a trajetória do autor envolvendo-o em passeios, conversas, evidências. Inspirado nas palavras de Swamii Vivekananda, o primeiro grande difusor das ideias espirituais da Índia no Ocidente e que fez grande sucesso na virada do século 19 para o 20, Miller aposta nas mentes ocultas, naquelas criaturas que transformam o mundo e jamais vêm à tona, ou quando são vistas, todos fingem não enxergá-las.
Assim, convivem no mesmo espaço de revelações profundas tanto o morador do deserto, homem simples e isolado, que ensina os arqueólogos sobre os verdadeiros motivos de uma tragédia ocorrida milhares de anos antes, quanto pintores considerados fundamentais, como John Marin e Marion Souchon. Revolucionários do som ordenado que mudaram radicalmente a percepção da música, como Edgar Varèse, são vistos com a mesma grandeza de um velho mecânico que fez o Buick do autor cruzar infinitos espaços sufocados por altas temperaturas.
Não se trata, entretanto, de um livro de viagens exótico ou “esnobe”, como dele disseram na imprensa brasileira. Por ser radical, por colocar os gênios como milagres que desafiam uma cultura autodestrutiva, Miller provoca o desconforto habitual da fornalha da sua escrita. O leitor não faz uma viagem agradável pelas paisagens físicas e humanas de uma América deslumbrante e aterradora. Não se trata de um livro para confirmar a hegemonia de algo irreversível ou para entreter quem quer que seja. É obra de arte, no que isso tem de mais provocador e gratificante. Mesmo escrito há mais de 60 anos, serve para gerar uma nova visão do país que emergiu da guerra como se fosse o paradigma de uma civilização futurista e nada mais é, segundo o próprio Miller, do que o final de um processo que está destinado a desaparecer, fruto de suas próprias contradições.
“O estilo americano é seduzir o homem por meio da propina até torná-lo um prostituto”, diz Miller, para não deixar dúvidas sobre o pseudocharme da civilização hoje vitoriosa no mundo. Ao ser lido depois que todas as suas suspeitas e certezas sobre o que via se confirmaram, principalmente na invasão do Iraque, Henry Miller, com “Pesadelo Refrigerado”, encerra o melhor das profecias, que são as percepções colhidas no início dos acontecimentos, quando estes se encontram em estado quase latente em relação ao que poderão desenvolver. A América prestes a entrar na guerra intensificaria todos os seus erros e disseminaria pelo mundo a adoração pelo dinheiro. Isso incomodava na época e hoje é mais atual do que nunca.
A guerra faria a civilização americana chegar ao auge, mas a França, na época sob o tacão nazista, não seria destruída, segundo Miller. A França é o contraponto ao pesadelo refrigerado e seu modelo são os anos 1930, quando Miller rodou por Paris e produziu suas grandes obras, como “Trópico de Câncer”. A viagem pelo país dilacerado provocava, nos detalhes, como ensinava Proust, um retorno às raízes da emoção do autor, fundamente fincadas nas paragens francesas. Suas madeleines — o doce que desencadeia a memória afetiva em Proust — em Miller são os detalhes de um passeio, uma conversa aleatória.
O que mais encanta no livro é a aguda visão do escritor dos lugares por onde anda sem os óculos do turista inconsequente. Debocha dos comentários vazios dos que precisam devorar a paisagem amparados pela incultura onívora e chama a atenção para o chão púrpura da hospedaria onde uma turista entediada reclamava do crepúsculo, suave demais para quem precisava enxergar o sol como se fosse uma gigantesca omelete.
Literatura de combate sem ser de guerra, este é um livro que escancara a individualidade necessária nesta época em que tudo se parece, como se estivéssemos numa viagem tediosa por lugares famosos. O que é sagrado para Miller é essa abordagem única de um espírito livre, que, por sua altivez e profundidade, nos ensina mais do que nos deleita, e nos estoca para uma vida mais sincera e habitada. Sua arqueologia atinge o coração das trevas e de lá retira algo que está vivo e não se deixa morrer, mesmo que a guerra pareça interminável.

Leia um trecho de “Pesadelo Refrigerado”

Foi num hotel em Pittsburgh que terminei de ler o livro de Romain Rolland sobre Ramakrishna. Pittsburgh e Ramakrishna — pode haver contraste mais violento? Um é o símbolo do poder e da riqueza brutais, o outro, a própria encarnação do amor e da sabedoria.
Começamos aqui, então, o rapidíssimo pesadelo, a cruz em que todos os valores são reduzidos a lixo.
Estou em um quarto pequeno, que deve ser considerado confortável, de um hotel moderno equipado com todas as últimas comodidades. A cama é limpa e macia, o chuveiro funciona perfeitamente, o assento da privada foi até esterilizado depois do último hóspede, se é que se pode acreditar no que diz a tira de papel que o envolve; sabonete, toalhas, luz, papel de carta, tudo fornecido em abundância.
Estou deprimido, mais deprimido do que consigo expressar. Se fosse ocupar este quarto por um tempo considerável, ficaria louco — ou cometeria suicídio. O espírito do lugar, o espírito dos homens que fizeram desta cidade o horror que ela é, penetra pelas paredes. Existe assassinato no ar. Tudo me sufoca.
Há poucos instantes saí para respirar um pouco. Senti me de volta à Rússia czarista. Vi Ivã, o Terrível, seguido por uma turba de brutos de focinho. Lá estavam, armados com porretes e revólveres. Tinham o ar de homens que obedecem zelosamente, que atiram para matar à menor provocação. Nunca o status quo me pareceu mais horrendo. Este não é o pior lugar de todos, eu sei. Mas estou aqui, e o que vejo me atinge com força.
Talvez tenha tido sorte de começar meu tour da América via Pittsburgh, Youngstown, Detroit; sorte de não ter começado por Bayonne, Bethlehem, Scranton e que tais. Podia não chegar nunca a Chicago. Podia ter me transformado em uma bomba humana e explodido. Algum astuto instinto de autopreservação me levou a virar para o sul primeiro, a explorar os estados da União chamados de “retrógrados”. Posso ter me entediado a maior parte do tempo, mas pelo menos tinha paz. Será que não vi sofrimento e miséria no Sul também? Claro que vi. Existe sofrimento e miséria por toda parte neste vasto país. Mas há tipos e graus de sofrimento; o pior, em minha opinião, é o tipo que se encontra no próprio coração do progresso.
Neste momento, falamos da defesa de nosso país, das instituições, de nosso modo de vida. Tomamos como certo que essas coisas precisam ser defendidas, sejamos ou não invadidos. Mas existem coisas que não deviam ser defendidas, deviam ser deixadas para morrer; existem coisas que devíamos destruir voluntariamente, com as próprias mãos.
Vamos fazer uma recapitulação imaginária. Tentemos pensar nos velhos dias em que nossos patriarcas chegaram a estas terras. Para começar, com certeza fugiam de alguma coisa; como os exilados e expatriados que estamos acostumados a denegrir e aviltar, também eles abandonaram sua terra natal em busca de algo mais próximo dos desejos de seu coração.
Uma das coisas mais curiosas sobre esses antepassados é que, embora estivessem manifestamente buscando paz e felicidade, liberdade religiosa e política, eles começaram roubando, envenenando, assassinando, quase exterminando a raça a que pertencia este vasto continente. Mais tarde, quando principiou a corrida do ouro, fizeram com os mexicanos a mesma coisa que haviam feito com os indígenas. E, quando os mórmons surgiram, praticaram as mesmas crueldades, a mesma intolerância e perseguição de seus próprios irmãos brancos.
Penso nesses feios fatos porque, enquanto estava indo de Pittsburgh para Youngstown, atravessando um inferno que vai além de qualquer coisa imaginada por Dante, subitamente me veio a ideia de que precisava ter um indígena americano ao meu lado, de que ele devia participar desta viagem comigo, comunicar-me, em silêncio ou de alguma outra forma, suas emoções e reflexões. Minha preferência seria ter comigo um descendente de uma das tribos comprovadamente “civilizadas”, um seminole, vamos dizer, que houvesse passado a vida nos intricados pântanos da Flórida.
Imagine nós dois parados em contemplação diante da horrenda grandeza de uma dessas siderúrgicas que pontilham a ferrovia. Dá quase para ouvi-lo pensando: “Então foi para isso que nos privaram de nossos direitos de nascimento, levaram nossos escravos, queimaram nossas casas, massacraram nossas mulheres e crianças, envenenaram nossas almas, romperam cada tratado que fizeram conosco e nos deixaram a morrer nos pântanos e selvas dos Everglades!”.
Você acha que seria fácil fazê-lo trocar de lugar com um de nossos trabalhadores regulares? Que tipo de persuasão seria preciso utilizar? O que se poderia prometer a ele que fosse realmente sedutor? Um carro usado para ir trabalhar? Um barraco de tábuas que pudesse, se fosse ignorante a tal ponto, chamar de casa? Uma educação para seus filhos que os tirasse do vício, da ignorância e da superstição mas ainda os mantivesse em escravidão? Uma vida limpa, saudável, em meio à pobreza, ao crime, à sujeira, à doença e ao medo? Salários mal suficientes para manter a cabeça fora da água e muitas vezes nem para isso? Rádio, telefone, cinema, jornais, revistas vagabundas, canetas-tinteiro, relógio de pulso, aspiradores de pó e outros aparelhos ad infinitum? São essas bobagens que fazem a vida valer a pena? São essas coisas que nos deixam felizes, relaxados, generosos, compassivos, gentis, pacíficos e tementes a Deus? Estamos prósperos e seguros hoje, como tantos estupidamente sonham estar? Algum de nós, mesmo os mais ricos e poderosos, tem certeza de que nenhum vento contrário arrebatará nossas posses, nossa autoridade, o medo e o respeito que nos são votados?
Essa atividade frenética que nos mantém a todos, ricos e pobres, fracos e po­derosos, em suas garras — aonde está nos levando? Ao que me parece, existem duas coisas na vida que todos os homens desejam e poucos obtêm (porque ambas pertencem ao domínio do espírito): a riqueza e a liberdade. O farmacêutico, o médico, o cirurgião são incapazes de nos dar saúde; e dinheiro, poder, segurança, autoridade não fornecem liberdade. A educação nunca provê sabedoria, nem as igrejas religião, nem a riqueza a felicidade, nem a segurança a paz. Qual é então o sentido de nossa atividade? Qual a finalidade disso tudo?
Somos não apenas tão ignorantes, supersticiosos, perversos em nossa conduta quanto os “selvagens ignorantes e sanguinários” que espoliamos e aniquilamos ao chegar aqui — somos muito piores que eles. Nós degeneramos; degradamos a vida que procuramos estabelecer neste continente. A nação mais produtiva do mundo, porém inapta para alimentar, vestir e abrigar adequadamente mais de um terço de sua população.
Vastas áreas de solo valioso são transformadas em deserto por negligência, indiferença, ganância e vandalismo. Dilacerada há oitenta anos pela guerra civil mais sangrenta da história do homem, até hoje é incapaz de convencer o lado derrotado do país sobre a correção de nossa causa; incapaz, como libertadora e emancipadora de escravos, de lhes dar verdadeira liberdade e igualdade, ao contrário, escravizando e degradando nossos próprios irmãos brancos. Sim, o norte industrial derrotou o sul aristocrático — os frutos dessa vitória são agora visíveis. Onde quer que haja indústria existe feiura, miséria, opressão, tristeza e desespero.

Nenhum comentário:

Postar um comentário