sábado, 12 de agosto de 2017

Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin


   
Jeanne-Marie Gagnebin

Obra póstuma — pode-se duvidar que Benjamin a teria publicado na forma em que a deixou escrita, pois sabia muito bem que essas teses teriam sido fonte de inúmeros mal-entendidos (3) —, é um texto fulgurante que deve justamente seu brilho à junção, perigosa e esplêndida, de motivos materialistas e marxistas com temas teológicos e messiânicos. A primeira tese já trata, de modo enigmático, da estreita relação que, segundo Benjamin, deve unir o materialismo histórico e a teologia. Leio agora essa tese, à interpretação da qual voltaremos no fim desta exposição.
"Como se sabe, deve ter havido um autômato, construído de tal maneira que ele, a cada jogada de um enxadrista, respondia com uma contrajogada que lhe assegurava a vitória da partida. Diante do tabuleiro, que repousava sobre uma ampla mesa, sentava-se um boneco em trajes turcos, com um narguilé na boca. Um sistema de espelhos despertava a ilusão de que essa mesa era transparente de todos os lados. Na verdade, um anão corcunda, mestre no jogo de xadrez, estava sentado dentro dela e conduzia por fios a mão do boneco. Pode-se imaginar na filosofia uma contrapartida dessa aparelhagem. O boneco chamado 'materialismo histórico' deve ganhar sempre. Ele pode medir-se, sem mais, com qualquer adversário, desde que tome a seu serviço a teologia, que, hoje, sabidamente, é pequena e feia e que, de toda maneira, não deve deixar-se ver" (4).
Como podem imaginar, os espíritos se dividiram rapidamente quando se tratou de explicar uma imagem tão estranha. Para Scholem, a comparação indica nitidamente que a teologia rege a História e deve reger o materialismo histórico, uma vez que o pequeno anão, escondido por certo, porém jogador soberano, é quem manipula os fios que comandam os movimentos do autômato. No lado oposto, para Hans Dieter Kittsteiner, no tão citado número da revista berlinense de esquerda, Alternative, consagrado já em outubro de 1967 a Benjamin, tratar-se-ia muito mais de fazer da teologia uma ancilla philosophiae, ou melhor, uma serva do materialismo histórico que a toma a seu serviço, como afirma a tese (5).

Tais interpretações desencontradas dos adeptos de um Benjamin materialista e de outro, místico-teológico, haveriam felizmente de ser aos poucos substituídas por estudos de conjunto sobre o autor. Assim como o têm notado muitos comentadores (6), sob a diversidade dos temas e dos estilos, o pensamento de Benjamin é, no entanto, atravessado, já em suas obras de juventude e ainda nos fragmentos do Passagenwerk, por determinados motivos-chaves: a desconfiança para com a tradição afirmativa burguesa, a preocupação com o singular, o detalhe, os fenômenos estranhos e extremos contra a média niveladora (7), enfim, reunindo essas duas primeiras características, uma concepção da interpretação e da história acompanhada por uma vontade soteriológica, um desejo de memória e preservação dos elementos preteridos e esquecidos pela historiografia burguesa, sempre apologética: os excluídos e vencidos, mas também o não-clássico, o não-representativo, o estranho, o barroco etc. Essa teoria herética e iconoclasta do conhecimento é amparada, sempre de acordo com tais intérpretes, em uma concepção lingüística de origem teológica que opõe à arbitrariedade do signo a existência de uma língua originária, na qual, respondendo ao verbo criador de Deus, o homem nomeia o mundo com justeza. Essa língua adâmica, tal como a descreve o ensaio de 1916, Über Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen, já não existe hoje; não está, porém, totalmente perdida. Sua presença subterrânea continua habitando, idealmente, a multiplicidade de nossas diversas línguas, manifestando-se em particular na dupla operação, ao mesmo tempo de distanciamento e aproximação, em que se constituem a tradução e a crítica (8), assim como, aliás, nos esforços, vãos e sempre renovados, dos filósofos e dos poetas para dizer verdadeiramente o mundo. Portanto, teríamos em Benjamin, sempre na opinião desses intérpretes, um esquema teórico que reformularia, de modo extremamente original, é verdade, um paradigma de origem religiosa: a história humana seria a perda de um paraíso originário determinada pela queda na temporalidade e na incomunicabilidade (Babel, como consagração lingüística do pecado original); a transformação dessa história decaída e o restabelecimento da harmonia primitiva seriam assim a única tarefa autêntica na qual os homens se devem empenhar, por uma prática (revolucionária) ou/e por uma teoria reparadora da injustiça.

3 Ver a carta de Benjamin a esse respeito, dirigida a Gretel Adorno, G.S. I-3, p. 1223.
4 "Bekanntlich soll es einen Automaten gegeben haben, der so konstruiert gewesen sei, dass er jeden Zug eines Schachspielers mit einem Gegenzuge ewidert habe, der ihm den Gewinn der Partie sicherte. Eine Puppe in türkischer Tracht, eine Wasserpfeife im Munde, sass vor dem Brett, das auf einem geräumigen Tisch aufruhte. Durch ein System von Spiegeln wurde die Illusion erweckt, dieser Tisch sei von allen Seiten durchsichtig. In Wahrheit sass ein buckliger Zwerg darin, der ein Meister im Schachspiel war und die Hand der Puppe an Schnüren lenkte. Zu dieser Apparatur kann man sich ein Gegenstück in der Philosophie vorstellen. Gewinnen soll immer die Puppe, die man 'historischen Materialismus' nennt. Sie kann es ohne weiteres mit jedem aufnehmen, wenn sie die Theologie in ihren Dienst nimmt, die heute bekanntlich klein und hässlich ist und sich ohnehin nicht darf blicken lassen" (G.S. I-2, p. 693). Tradução [manuscrito] de J.M. Gagnebin e M. Lutz-Müller.
5 H.D. Kittsteiner, Die 'Geschichtsphilosophischen Thesen', in Alternative, Berlim, n. 56-57, p. 245, out./dez, 1967.        [ Links ]
6 Citarei principalmente, apesar de suas respectivas diferenças, muitas vezes importantes, Irving Wohlfarth, Michael Löwy e Stéphane Mosès. Na Alemanha, Bernd Witte e Winfried Menninghaus.
7 Em artigo fundamental, Carlo Guinsburg mostra como certa epistemologia do excêntrico revelou-se fecunda para as ciências humanas contemporâneas de Warburg até Freud. Evidentemente, eu acrescentaria W. Benjamin. Ver Guinsburg, Miti emblemi spie: morfologia e storia, Einaudi, 1986.        [ Links ]
8 Ver sobretudo Die Aufgabe des Übersetzers, G.S. IV-1.

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