terça-feira, 31 de outubro de 2017

TRANSFORMAÇÃO






No Mundo. RICARDO REIS

No mundo, só comigo, me deixaram
Os deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim, o trigo baixa ao vento, e, quando
O vento cessa, ergue-se.

Com a fluidez daquilo que jamais termina,

 Com a fluidez daquilo que jamais termina,
    Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
    Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

    Charles Baudelaire

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Agente de fuerzas heteróclitas.

A Gregorovius, agente de fuerzas heteróclitas, le había interesado una nota de Morelli: "Internarse en una realidad o en un modo posible de la realidad, y sentir cómo aquello que en una primera instancia parecía el absurdo más desaforado, llega a valer, a articularse con otras formas absurdas o no, hasta que del tejido divergente (con relación al dibujo estereotipado de cada día) surge y se define un dibujo coherente que sólo por comparación temerosa con aquél parecerá insensato o delirante o incomprensible. Sin embargo, ¿no peco por exceso de confianza? Negarse a hacerpsicologías y osar al mismo tiempo poner a un lector –a un cierto lector, es verdad– en contacto con un mundo personal, con una vivencia y una meditación personales... Ese lector carecerá de todo puente, de toda ligazón intermedia, de toda articulación causal. Las cosas en bruto: conductas, resultantes, rupturas, catástrofes, irrisiones.

RAYUELA(Júlio Cortázar)

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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

LOTERIA ESPORTIVA


"O CONCEITO DE RACIONALIDADE EM HABERMAS

Segundo Lyotard, há uma variedade de jogos de linguagem, uma heterogeneidade de elementos, cada um veiculando consigo "valências pragmáticas sui generis". Metarrelatos como a "dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza" não oferecem mais condições para se poder dizer sobre a legitimidade da variedade dos jogos de linguagem ou sobre a heterogeneidade de suas valências.
A legitimidade, tanto em matéria de justiça social como dos critérios de verdade, é a da otimização das performances do sistema, através de seus critérios de eficácia. Com a falência do que Lyotard chama de metarrelatos, a legitimidade passa a constituir um problema, pois não pode mais ser obtida pelos critérios de operatividade, na medida em que estes não permitem distinguir o verdadeiro do falso. Assim como a legitimidade também não pode mais ser obtida através da discussão, pois violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem, a invenção se produz sempre no interior não do consenso mas do "dissenso" (16, p. 8).

Para Lyotard, o conhecimento muda de status ao mesmo tempo em que as sociedades entram na era "pós-industrial" e as culturas na era "pós-moderna". Esta ultrapassagem começou no final da década de 50, q uando a Europa terminava a sua reconstrução. Depois de passados  quarenta anos, as ciências e as tecnologias ditas de ponta trouxeram para a linguagem "a fonologia e as teorias lingüfsticas", "os problemas da comunicação e da cibernética", "as álgebras modernas e a informática", "os computadores e suas linguagens", "os problemas de tradução das linguagens", "a busca de compatibil idades entre linguagens-máquinas", "a telemática", "a paradoxologia", etc (1 6, p. 11-1 2). Essas novas tecnologias acarretaram também conseqüências ao nível da investigação e da transmissão do conhecimento. No que diz respeito a sua transmissão, o conhecimento só pode ser transmitido em termos de quantidade de informações.


A orientação das pesquisas, por seu lado, subordina-se à condição de tradutibil idade dos resultados em linguagem das máquinas. Tanto os produtores quanto os utilizadores do saber devem encontrar os meios de traduzir estas linguagens. Com a crescente hegemonia da informática, uma certa lógica se impõe sobre o conjunto de prescrições e também sobre os enunciados aceitos como conhecimento. O velho princfpio de que o saber é indissociável e indispensável à formação (Bildung) do esprrito, e mesmo da pessoa, "deixa de ter sentido" (16, p.1 4). O saber será produzido para ser vendido, para ser valorizado em uma nova produção, deixando de ser portanto um fim em si mesmo. Com a informatização da sociedade o status do conhecimento muda: ele deixa de ser orientado com a finalidade de ser "original", "verdadeiro", passando a ser orientado por critérios de eficácia, de "capacidade discriminante".


Em um caprtulo do seu livro, Lyotard retoma a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein.


Sobre os sujeitos dos jogos de linguagem observa que nestes as regras não são legítimas em si mesmas, mas resultantes de um contrato explícito. Uma modificação mínima de uma regra modifica a natureza do jogo. Todo enunciado deve ser considerado como um "lance". I sto significa que todo ato de fala é um ato de combate, no sentido do jogo, e que os atos de linguagem revelam uma "agonrstica gerar'.


O sentido do lance se relaciona com o prazer da invenção que "é o que permite a evolução da linguagem" (16, p. 26). Em um contexto de decomposição dos grandes relatos em conseqüência da dissolução da lei social e com a passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa de átomos individuais lançados no interior de um movimento browniano, os jogos de linguagem representariam o minimum de relação exigida para a reprodutibi lidade social. Esta atomização do social em flexrveis redes de jogos de linguagem pode parecer bem distante de uma realidade moderna permanentemente paralisada, bloqueada por aparatos burocráticos. No uso cotidiano, em uma discussão, no entanto, elas podem encerrar uma maior flexibilidade dos enunciados. A burocratização seria o limite desta tendência (16, p. 26). Cabe observar que a utilização feita por Lyotard do conceito de jogos de linguagem do último Wittgenstein não tem como meta a explicação do funcionamento das relações de comunicação intersubjetivas no interior da própria socialidade, ao contrário, Lyotard coloca-o fora dos contextos institutionais, distante do "grande mundo", e sem qualquer possibil idade ou final idade de mudar as regras deste. No limite, a· aplicação do ' conceito de jogos de linguagem restringe-se ao âmbito do ócio,como uma prazerosa experiência estetizante de um diálogo engenhoso. Como observa A.Honneth, Lyotard "projeta Nietzsche em Wittgenstein" (13, p. 895) .


O g rande relato, seja ele especulativo ou emancipador, perdeu sua credibilidade. O declínio dos relatos é resultado do avanço das técnicas e das tecnologias que ocorreu a partir da Segunda  G uerra Mundial e que acentuou a importância dos meios em relação aos fins. Este processo é simultâneo à grande transformação do capitalismo liberal avançado durante os anos 1 930 a 1 960. Esta renovação, segundo Lyotard, "eliminou a alternativa comunista e valorizou odesfrute individual e dos serviços" (16, p. 68) .


Lyotard toma o movimento cultural que vai da diagnose niilista de N ietzsche até o pessimismoestético e literário das vanguardas em Viena na virada do século como a "pré-história da pós-modernidade". N ietzsche mostrou que o niil ismo europeu resultou da auto-aplicação das exigências científicas de verdade a estas próprias exigências. Este processo de deslegitimação Wittgenstein entendeu à sua maneira. A ciência faz seu próprio jogo de linguagem. E la não pode legitimar outros jogos de linguagem. Disto resulta uma conclusão pessimista: "ninguém pode falar todas as línguas, não há metal inguagem universal". Foi este pess imisl]1o que nutriu a geração de intelectuais vienenses na virada do século: artistas como Musil, Kraus, Hofmannsthal , Loos, Schõenberg, Broch, e também fil6sofos como Mach e Wittgenstein ( Nota E; 1 6, p. 68).


IV


A crítica de Lyotard aos relatos de emancipação, e principalmente ao modelo de consenso,é dirigida contra a tradição do idealismo alemão, principalmente à ética da "comunidade da comunicação" defendida por K. O. Apel e J. Habermas. Lyotard expressa seu ceticismo em rela­ ção à possibilidade de se fundar racionalmente uma ética em uma época de crise de legitimidade dos relatos de emancipação decorrente do desenvolvimento das ciências, pois para ele isto afeta diretamente a idéia da validade intersubjetiva. Mas é possível se contentar com normas morais reguladoras da convivência humana · cuja val idade se restrinja aos pequenos grupos, aos acordos meramente locais, remetendo a relação entre os grupos à destrutiva luta darwinista pela sobrevivência? A situação é paradoxal: nunca a questão de se construir uma éticaracional se mostrou tão sem esperanças e ao mesmo tempo tão imprescindível, dado que a possibi lidade de extermínio catastrófico da espécie não é mais uma mera mitologia terrificante, como em outros tempos, mas uma possibilidade concreta. Esta possibilidade afeta não apenas um limitado grupo de pessoas, mas o "gênero humano" como um todo. No entanto, predomina, no horizonte da modernidade tardia, a idéia generalizada e amplamente difundida - seja através dos meios de comunicação de massa ou nas discussões restritas dos círculos intelectuais - de que são remotas tanto as possibil idades de uma objetividade científica no âmbito das ciências lógico-matemáticas e das ciências empírico-analíticas quanto as possibilidades de uma validade intersubjetiva dos argumentos. E isto porque os juízos de valor não podem ser deduzidos nem dos formalismos das conclusões lógico-matemáticas nem das conclusões indutivas com base em fatos. A idéia da objetividade científica difere da pretensão de val idade das normas e dos juízos de valor no âmbito da subjetividade não vinculante. Walter Benjamin, no aforismo "Posto de gasolina", expressou de modo profético, já na década de vinte, esta situação paradoxal hoje imperante: "A construção da vida, no momento, está muito mais no poder dos fatos que de convicções. E, aliás, de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções" (2, p. 5).


O conceito de "dialética" como decurso histórico objetivamente necessário está em contradição tanto com a idéia moderna da objetividade científica como também com a da livre decisão moral da consciência. Este conceito de realidade "concreta", como realidade em processo, comum a Hegel, Marx e ao tardio Whitehead, segundo Apel, "não está de fato em condições de 'eliminar' a distinção, relevante tánto na prática como na ética, entre o que é agora e o que deve ser" ( 1 , p. 21 1 ). Enquanto filosofia dialética o marxismo não aceita a separação entre ser e dever-ser, entre fatos cognoscíveis cientificamente e normas fixadas subjetivamente. A idéia de que a humanidade só se coloca tarefas para as quais pode encontrar solução e que ela tem diante de si . a tarefa de "superar" a sua pré-história natural, isto é, o particularismo atomizante dos interesses de grupos e classes, representa um aspecto positivo do antagonismo entre o que é e o que deve ser. Ser e dever-ser, fatos do conhecimento e normas subjetivas, no que diz respeito a sua função ideológica, na verdade não se contradizem, mas se complementam.


Segundo Apel, há uma conexão, uma "complementaridade oficial", entre "misticismo" e "subjetivismo existencial", entre "solipsismo transcendental" (Wittgenstein) e "comunicação indireta" (Kierkegaard) ou "iluminação da existência" (Jaspers). Para Apel, "a complementaridade entre objetivismo avalorativo das ciências, de um lado, e subjetivismo existencial dos atos de fé religiosos e das decisões éticas, de outro, são a moderna expressão filosófico-ideológica da separação liberal entre âmbito público e âmbito privado da vida" (1 , p. 214). Isto tem como conseqüência geral que em praticamente todos os âmbitos da vida pública os fundamentos morais da práxis são substituídos por argumentos pragmáticos que podem ser fornecidos pelos especialistas com base em regras científico-tecnológic. as objetiváveis. Apel lembra que Weber descreveu a racionalidade da esfera pública, do comércio e da administração burocrática do estado como um processo indissoCiável. E sta análise e este processo se ampliaram e se generalizaram principalmente com o auxnio da cibernética e com a teoria funcionalista da sociedade como sistema. Nos dias atuais o "pragmatismo instrumentalista" se tornou parte componente da filosofia analítica e do pensamento publicamente ativo. Isto se efetivou não sem acarretar problemas teóricos insolúveis, como, por exemplo, os das dificuldades metodológicas da "ordinary language philosophy" em geral. Já no último Willgenstein estes aparecem fundados no fato de ele não refletir sobre a relação "comunicativo-reflexiva" entre os "jogos de linguagem" e as "formas de vida" por ele descritos, que permanecem entre uma "análise transcendental"e uma "análise quase behaviorista" (1 , p. 226) .


O que escapa à análise de Lyotard é que as flexíveis redes dos jogos de linguagem pluraissão inimagináveis sem pressupor o que Apel chama de uma comunidade da comunicação de indivíduos capazes de ilimitada comunicação e de consensos intersubjetivos. Mesmo o pensador sol itário só pode explicar e controlar a sua argumentação enquanto está em condições, no"colóquio da alma consigo mesma" (Platão) , de interiorizar o diálogo de .uma comunidade da argumentação racional. Isto significa que não se pode seguir uma regra sozinho. Mesmo no âmbito privado, a linguagem, para ser reconhecida como válida, é em princípio pública. Compreender a si mesmo e ao outro significa conceber as condições de possibi lidade e de validade da compreensão do sentido. Para Apel, a afirmação de Willgenstein, contida nas Investigações filosóficas, de que "não é possível que um só homem tenha seguido uma regra uma só vez", parte do pressuposto do jogo lingüístico como condição dos critérios de prova e portanto da validade das "regras" e da "observância de regras" ( 1 , p. 238). Em uma observação marginal, Apel destaca que Willgenstein nada tem a ver com O behaviorismo, porque este substitui a compreensão da ação, que decorre da comunicação, pela observação meramente exterior do comportamento (1 , p. 238-239).


O sentido da comunidade da comunicação tem como pressuposto o reconhecimento de todos os membros com iguais direitos de discussão. Deste ponto de vista, na dimensão pragmá­ tica do discurso, a "competência comunicativa" (Habermas) é primária em relação à "competência gramatical" (Chomsky) ( 1 , p. 239) . A tese desenvolvida por Habermas da possibil idade de se poder, em princípio, verbalizar todas as ações e todos os gestos expressivos é sugerida pela descoberta de Austin da "manifestação executiva" e da sua generalização e radicalização na história dos "atos lingüísticos" de J. R. Searle ( 1 , p. 239) . Essa comunidade da comunica­ção se apresenta portanto como possibil idade de comunicação de sentido e de justificaçãodialógica para as operações monológicas das ciências.


A comunidade da comunicação como a priori, conforme os argumentos de Apel, não significaria um retroceder à concepção idealista da "dialética do espírito". Esta comunidade não tem como pressuposto o a priori da "consciência". Ela significa, segundo Apel, "uma comunidade real da comunicação, e quem argumenta se torna ele mesmo membro através do processo de socialização e, em segundo lugar, uma comunidade ideal da comunicação que esteja em condições de em princípio compreender adequadamente os sentidos dos seus argumentos e de julgar definitivamente a sua verdade. O elemento singular e dialético desta situação está portanto em que ele de certo modo pressupõe a comunidade ideal na comunidade real, isto é, como possibil idade real da sociedade real, mesmo que ele saiba que na maior parte dos casos "a comunidade real... está longe de assemelhar-se à comunidade ideal da comunicação" (1 , p.263). Uma contradição no sentido não metafórico que, como tal, deve "ser suportada" (Hegel), e que só pode encontrar uma verdadeira "superação" através da realização da comunidadeideal da comunicação no interior da comunidade real da comunicação. Esta exigência implica que toda argumentação possa ser derivada de dois princípios regulativos fundamentais para a estratégia moral das ações de cada homem; todo agir deve garantir a sobrevivência do gênero humano como sobrevivência da comunidade real da comunicação e ter como questão a realização da comunidade ideal no interior da comunidade real. 


Carlos Eduardo Jordão MACHADO"

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Medo Líquido


Medo Líquido - Zygmunt Bauman uma resenha

Para Bauman, há três formas do medo afligir as pessoas em nossa sociedade líquida: 1) pelo medo de não conseguir garantir o futuro, de não conseguir trabalhar ou ter qualquer tipo de sustento, 2) pelo medo de não conseguir se fixar na estrutura social, que significa, basicamente, o medo de perder a posição que se ocupa, de cair para posições vulneráveis e 3) o medo em torno da integridade física.
Bauman também toma o conceito de “medo derivado”. Ao contrário do medo primário, o medo derivado (que é secundário) é um medo inculcado socialmente. O medo primário se trata do medo da morte na sua forma mais pura: é o medo de levar um tiro quando se está na guerra; já o medo secundário é aquele que nos obriga a seguir pelo caminho mais longo para não passarmos pelo meio da favela.
Este conceito, me parece, toma emprestado as características do conceito de habitus, de Bourdieu, pois o medo secundário é uma propulsão, ele trabalha enquanto disposição socialmente incorporada. Para este medo, há práticas socialmente aceitas e incorporadas que representam sua fuga.
Para onde estas análises levam? Primeiramente para a constatação de que trocamos segurança por proteção. Existe uma diferença (não muito tratada neste livro, mas bem explicada em “Comunidade”). Basicamente, segurança é aquilo que nos constitui. Proteção são equipamentos. Segurança = interior, proteção = exterior. Ser inseguro (como explicita a análise de Bauman) é ser um sujeito constituído de tal forma que a incerteza, a liquidez das relações e o medo de tudo, são características a priori. A priori histórico, claro.
Se trata de dizer que o inseguro é aquele que fica olhando o celular do parceiro para saber se ele ou ela está traindo. Já a proteção pode ser vista no número de câmeras instaladas em estabelecimento/condomínios/instituições, coletes à prova de balas, armas que são compradas para se usar “contra bandidos”, senhas para impedir que qualquer um veja a tela de seu celular e etc.
A cidade
Este princípio da proteção como solução para a insegurança também é vista fora dos equipamentos para a gurda da integridade física: ao citar a cidade como um local de1 encontro, como um espaço mixofílico e mixofóbico, ele trata de estabelecer alguns paralelos entre a arquitetura urbana e a insegurança pós-moderna.
Bauman, medo líquido
O Grito
A cidade é o lugar do encontro, da mistura, do novo, da efervescência, é o lugar onde tudo e todos se encontram mesmo sem querer se encontrar, é o lugar onde estar com quem não se conhece é um pressuposto, é um termo aceito tacitamente e, por isso, ela é um espaço mixofílico (que promove a mistura, que faz da mistura um gosto aceitável e aprovável). No entanto, a sujeira precisa ser limpa. É na cidade onde pode-se encontrar os resultados da exclusão: os mendigos, as favelas e seus moradores, todos estes estranhos são seres que provocam o desprezo e a repulsa dos cidadão ditos normais. A mixofobia (a repulsa pelo estranho) é vista materialmente de forma peculiar.
Ao invés de utilizar o exemplo de Bauman, prefiro me referir à Avenida Paulista. A Paulista é a principal avenida paulista, é o centro financeiro da cidade e, como é de se esperar, é um antro da exclusão, do comportamento blasé e da normatização hegemônica. Em frente aos grandes prédios, além dos vários seguranças que efetivamente estão lá para espantar os excluídos, há a presença de longas barras de ferro cheias de pontas que ficam acopladas em frente as vitrines. Qual o motivo? Mendigo não dormir. Isto é uma expressão clara da mixofobia.
A mídia
Segundo Bauman, a sociedade é um dispositivo que visa tornar tolerável a experiência da vida tendo a certeza da morte. Para ele, há duas formas de se lidar com a morte: 1) a desconstruindo, ou seja, detalhando completamente suas causas de maneira que, no fim, parece que ela poderia ser evitada e 2) a banalizando, que quer dizer, mostrá-la como algo do cotidiano. O programa do Datena é o exemplo perfeito de ambos. Brasil Urgente tem a enorme vantagem de falar, basicamente, só de desgraça. Os acidentes de carro são descritos minunciosamente e a culpa é sempre de um motorista bêbado ou distraído. A morte não é um fato, é um acidente, de acordo com o discurso do programa. Além disso, a quantidade de mortes ali já deixa claro a banalização do acontecimento.
A morte não é só, digamos, morrer. Bauman coloca graus de morte, mas enquanto relação para quem sente: a morte em primeiro grau é, de fato, a morte, é deixar de existir; já a morte em segundo grau (que seria a experiência primária de um sujeito vivo com a morte) seria a morte do outro, a morte de quem nos relacionávamos; enquanto a morte em terceiro grau é a quebra do relacionamento, a exclusão (e é a experiência secundária que se pode ter da morte).
O ponto alto deste capítulo é a relação da experiência secundária da morte como uma experiência banal e cotidiana (e que produz insegurança), já o exemplo (incrível) de Bauman são os reality show, como o Big Brother, em que os participantes tem como pressuposto a exclusão. Eles precisam quebrar os relacionamento em algum momento, pois só um saíra vencedor. O Big Brother, sendo um produto cultural, é também parte de nossa sociedade e nele é possível enxergar um pouco de sua lógica.
Medo líquido Bauman sociedade
Bauman
A liquidez moderna resulta em uma infinidade de experiências secundárias da morte, de exclusão e, portanto, na construção cotidiana e tijolo por tijolo de uma insegurança estrutural. Insegurança essa, que promove a criação e a utilização de técnicas e tecnologias para a proteção.
O papel da mídia também se mostra importantíssimo por ser aquilo que espalha o medo. O medo não é mais o que se escuta nos contos, nos mitos, nas reuniões de família, nas agremiações e etc e etc. Ela é vista cotidianamente pela televisão, pelos jornais, pela internet e etc e etc.
Bauman cita a Al-Qaeda. Antes do 11 de setembro, eram alguma coisa? E depois?
A responsabilidade
Uma grande sacada está na análise da responsabilidade humana por seus problemas. Bauman verifica que, a partir de Rousseau, a posição da humanidade em torno dos desastres naturais se modificou. Os desastres naturais, únicos que poderiam escapar da responsabilidade humana e serem imputados aos deuses, ao acaso e etc, acabam tendo o foco modificado. Rousseau diz que o desastre natural ocorrido em Lisboa (e que vitimou milhares), não pode ser tido como algo “que acontece”, mas sim como a falta de planejamento das pessoas que moravam nos locais em perigo. O desastre acontece, mas as pessoas podem evitá-lo.
O que ele quer dizer com isso? Ao traçar essa divisão entre o momento em que a responsabilidade não pode ser evitada, ele consegue argumentar que, em um sistema complexo e global, em uma rede tão interligada, não há como não ter responsabilidade sobre seus próprios atos e sobre os seus resultados macro. O micro é a engrenagem do macro. É impossível retirar o corpo da jogada.

domingo, 22 de outubro de 2017

«A Vocação do Poeta», Hölderlin.


Miguel Monteiro
Dichterberuf. Friedrich Hölderlin.
Tradução in fieri do alemão de Miguel Monteiro.

  

As margens do Ganges ouviram o o Deus da Alegria
     Triunfante quando, vindo do Indo, o jovem
          Conquistador Baccho começou com o santo
               Vinho a acordar os Povos do seu sono.

E tu, Anjo do Dia!, não acordas aqueles
     Que ainda dormem? Dá-lhes a Lei, dá-
          -Nos Vida. Vence, Mestre, só tu
               Tens o Direito de Conquistar como Baccho.

A Humanidade nada tem que cuidar ou que tratar
     Nem em casa nem sob o céu aberto,
          Desde que o Homem se nutra e alimente
               Com mais nobreza do que a besta. Porque há outra coisa

Que ao cuidado e serviço dos que poetas foi confiada.
     É nossa tarefa perante o mais Alto
          Que cada vez mais perto e sempre de novo
               Os corações amigos O possam ouvir.

E ainda assim, vós Celestes, todos vós,
     Vós as fontes, as costas, os montes e bosques,
          Foi tão maravilhoso quando Tu
               Me agarraste os cabelos, e inesquecivelmente

O génio criador de que eu já tinha desistido
      Veio até nós em toda a sua divindade. Os nossos sentidos
          Ficaram mudos e foi como se
               Um relâmpago nos despedaçasse os ossos,

Vós sois Façanhas na terra inteira à solta —
     Dias de Destino — Cortes. Quando o Deus
          De pensamento sereno parte para onde a cólera ébria
               Dos corcéis gigantescos o levam,

Temos que ficar calados? E quando a Melodia
     Calma do ano eterno soa dentro de nós,
          Será que deve ser como se uma criança
               Tivesse na brincadeira ousado tocar

A pura e santificada lira do Mestre?
         Foi para isto, poeta, que ouviste
               Os profetas do Oriente, o Canto Grego,
                    E agora o Trovão? Foi para poderes

Maltratar o Espírito, para te lançares sobre a Presença
     Do Bem e troçares dela, para desprezares
          O ingénuo e sem misericórdia lhe dares umas moedas
               Para ele se comportar como um animal numa jaula?

Até que com o teu espicaçar cruel ele
     Se lembre da sua origem e chame o próprio
          Mestre, que vem e te deixa desfalecido
               Com os seus ferventes dardos de morte.

Há tanto tempo que o Divino só serve para servir,
     Que todas as Forças do Céu se esbanjam, que se abusa
          Da Bondade por desporto e sem gratidão, uma
               Geração calculista que presume,

Quando o Sublime lhe cultiva os campos,
     Que conhece a luz do Dia e o Trovejante quando espreita
          Pelo telescópio e numera e
               Dá nomes às Estrelas do Céu.

Mas o Pai pega na Noite sagrada
     E cobre-nos os olhos para podermos ficar.
         Ele não ama o Desmesurado. A Força
               É extensa mas não empurra o Céu.

Também não é bom ser demasiado sábio. A Gratidão
     Conhece-o. Mas guardá-lo sozinho não é fácil,
          E por isso um poeta gosta de se juntar a outros
               Que ajudem a entender.

Mas, como tem de ser, o Homem permanece destemido
     E solitário diante Deus, a sua candura protege-o,
          Não precisa de armas nem de
               Estratagemas, até que por fim ausência de Deus o ajuda.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

LOTERIA ESPORTIVA


O elemento carnívoro do ato de escrever

Materiais de Psamênite utilizados na redação do contador de histórias , encontrando fortes semelhanças presumíveis ''em detalhes de estilo'' com outros documentos e fotografias. Nenhuma explicação dela porém,  calma e sociável como sempre.  Já eu, não sabia se tinha sonhado ou sido de fato interrogado por um agente na Chancellor Avenue . Voltei de lá tonto,  evitando o choque se ... e assim por diante . Jogando com algumas peças intelectuais fora de circulação, nunca cavalguei outro cavalo além desse . Mas não lemos romances para multiplicar nossas experiências, apenas para multiplicarmos a nós próprios, entre nossas condições de vida há muita coisa que só quem lê entende .Os livros de um erudito são sua serenidade (wainagium) mas ele não se prende de modo algum aos livros, devora-os e nada mais, com a serenidade de um vilão. Ou chutze , sob o céu  o monopólio é uma prática comum, mas é evidente que sou o único a fazer o que faço . Sim , nos momentos de maior lucidez considero-o perfeitamente possível . Minha lucidez alcança tamanha acuidade que até meus escritos, no começo da minha carreira política, me parecem críveis. Eu fôra tão esquerdista no começo que atuara até como porta-voz dos sindicalistas radicais. Uma pequena lâmpada e uma grande paciência, para conduzir  minha torrente de pensamentos no vazio do materialismo histórico , nessa época , como uma corrente sanguínea purificada. Depois, vendo que ela permaneceria irredutível com o passar dos anos , cedi . Ela me seguia com os olhos e eu não fazia outra coisa além de ir e vir, às suas ordens . E não maquinava, ao me aproximar dela. SHIH , no primeiro tom.  Da alimentação diária à leitura compulsiva de romances havia uma escala contínua , até as praias do amor . E escrever é o ato de vampirizar as coisas, extraindo delas seu sabor vital . Operação psíquica que investiga e recolhe os graus materiais dessa escala, até o sabor último das coisas , pessoas e acontecimentos. Classificação gastronômica da prosa : os modos narrativos do povo , todo um cânone de procedimentos, , da prosa que circula como dinheiro difícil, como alimento raro, sem a duração desnecessária daquilo que é incompatível com independência do pensamento . Arrancado ao domínio mágico e hierático do que foi assimilado , e com isso sua intenção antropológica, nos remeteremos mais uma vez à esfera profana, para destacar o elemento carnívoro do ato de escrever . Há tanta tensão na carne daquilo que é do puro âmbito da matéria, quanto em sua carnação conceitual , que também é diferente do que é determinado na carne  pela ''tensão'' narrativa. O afeto fundamental da leitura, por sua vez, é a fome de matéria. 

K.M.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

No Ciclo Eterno. RICARDO REIS

No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Un extraño texto morelliano.

 Recordemos el comentario de Oliveira acerca de un extraño texto morelliano en Rayuela:

"En el fondo sabía que no se puede ir más allá porque no lo hay". La frase se repite a lo largo de toda la página, dando la impresión de un muro, de un impedimento. No hay puntos, ni comas, ni márgenes. De hecho, un muro de palabras ilustrando el sentido de la frase, el choque, el choque contra una barrera, detrás de la cual no hay nada. Pero hacia abajo, y a la derecha, en una de las frases falta la palabra lo. Un ojo sensible descubre el hueco entre los ladrillos, la luz que pasa (Rayuela: 425).


Ese "hueco" es apertura y revelación. Es la poética del "intervalo" a la que se hace referencia en "Traslado", un texto de Territorios en que Cortázar comenta la obra del pintor argentino Leo Torres Agüero. Es el gesto que se marca para mostrar en él lo que "el poeta llama la Realidad", una realidad más vasta, más allá de la percepción habitual. Es la entrevisión que se condensa en Prosa del observatorio:


esa hora que puede llegar alguna vez fuera de toda hora, agujero en la red del tiempo, esa manera de estar entre, no por encima o detrás sino entre... 

Una novela compleja, un reto, un regalo

Un antes y un después tras su lectura o su edición. Una novela compleja, un reto, un regalo. Un fragmento (o muchos) del hacer literario, de la vida misma, del amor, del desamor, de la cultura.

Estructura de secuencias sueltas

 Su estructura de secuencias sueltas permite distintas lecturas, y por tanto, diversas interpretaciones. Con esta forma de lectura, pretendo representar el caos, el azar de la vida y la relación indiscutible entre lo creado y la mano del artista que lo hace.

TAMBIÉN


Si las páginas de este libro consienten algún verso feliz, perdóneme el lector la descortesía de haberlo usurpado yo, previamente. Nuestras NADAS poco difieren. Es trivial y fortuita la circunstancia de que seas tú el lector de estos ejercicios y yo su redactor. (Jorge Luis Borges)

Perdão repostar esses capítulos. Estou revisando

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Deixemos, Lídia. RICARDO REIS


Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.

Vê como Ceres é a mesma sempre
E como os louros campos intumesce
E os cala prás avenas
Dos agrados de Pã.

Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.

E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã.
Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.

Quer troe Júpiter nos céus toldados.
Quer apedreje com as suas ondas
Netuno as planas praias
E os erguidos rochedos.

Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
Por isso as esqueçamos
Como se não houvessem.

Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
Não nos vale pensarmos
No futuro sabido

Que aos nossos olhos tirará Apolo
E nos porá longe de Ceres e onde
Nenhum Pã cace à flauta
Nenhuma branca ninfa.

Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
De ir imitando os deuses
Até sentir-lhe a calma.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Seguro Assento. RICARDO REIS


Seguro Assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.

Forças cheias de infinito.

domingo, 15 de outubro de 2017

Feliz aquel

Feliz aquele a quem a vida grata
Concedeu que dos deuses se lembrasse
E visse como eles
Estas terrenas coisas onde mora
Um reflexo mortal da imortal vida.
Feliz, que quando a hora tributária
Transpor seu átrio por que a Parca corte
O fio fiado até ao fim,
Gozar poderá o alto prêmio
De errar no Averno grato abrigo
Da convivência.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

No Breve Número

No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso, e breve acabo.
Dado em declive deixo, e invito apresso
O moribundo passo.

Propostas de organização da sociabilidade.




quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Ponho Na Altiva Mente

Ponho na altiva mente o fixo esforço
      Da altura, e à sorte deixo,
      E as suas leis, o verso;

Que, quanto é alto e régio o pensamento,
      Súbita a frase o busca
      E o 'scravo ritmo o serve.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

PENSAMENTO EM DEVIR: a dialética do acabamento/inacabamento no fragmento romântico


Mirella Guidotti i (UNESP) 
 
 
Resumo:
O presente artigo investiga a concepção filosófica do Romantismo de Jena enquanto atividade infinita. Através desta análise reflexiva aborda-se então o modo, a forma de expressão por excelência romântica: o fragmento, forma consciente dos limites da apresentação do todo. Não se trata, assim, de um aspecto meramente formal que visa o inacabamento, mas algo congênito: o fragmento constitui a visão romântica de totalidade; a totalidade se manifesta como um fragmento.
 
Só o incompleto pode ser concebido – pode levar-nos mais adiante.
O completo é apenas fruído [...]
queremos conceber a natureza,
então temos de pô-la como incompleta,
para assim chegar a um termo alternativo desconhecido /
Toda determinação é relativa"
Novalis.
 
Nos Fragmentos logológicos, Novalis alude à necessidade de um fundamento seguro para o pensamento: "Saber puroincondicionado, - saber independente da experiência foi desde sempre o alvo dos esforços da raz~o fil[osofante]" (NOVALIS, 1988, p. 117). Na mesma linha, diz Hardenberg nos Philosophische Studien:

Filosofar deve ser um tipo único de pensamento. O que eu faço quando filosofo? Eu reflito sobre um fundamento. O fundamento do filosofar é, deste modo, um esforçar-se do pensamento por um fundamento. O fundamento não é, entretanto, uma causa no sentido literal – mas uma constituição – uma conexão com o todo. Toda reflexão deve portanto terminar num fundamento absoluto. (NOVALIS, 1978, p. 180-181).

No trecho acima, Novalis caracteriza a filosofia como o pensar segundo um fundamento. Adiante, contudo, Novalis interpela: e "se este fundamento n~o fosse dado, se contivesse uma impossibilidade"?

Então, e se este fundamento não fosse dado, se contivesse uma impossibilidade – então o impulso para o filosofar seria uma atividade infinita – e sem fim porque seria um eterno impulso para um fundamento absoluto que pode ser satisfeito apenas relativamente – e que nunca seria, por conseguinte, cessada. A atividade livre infinita surge em nós através da livre renunciação do absoluto – o único absoluto possível que pode ser dado a nós e que nós somente encontramos por nossa inabilidade de alcançar e conhecer um absoluto. Este absoluto que nos é dado pode somente ser conhecido negativamente, na medida em que nós agimos e buscamos aquilo que procuramos não pode ser alcançado através da ação. Isto poderia ser chamado um postulado absoluto. Todas as buscas por um princípio simples seriam como uma tentativa de enquadrar um círculo. Movimento perpétuo (NOVALIS, 1978, p. 180-181)

Um pólen é bastante preciso nesta concepç~o: "Nós procuramos por toda parte o incondicionado, (Unbedingte)2 e sempre encontramos apenas coisas" (NOVALIS, 2006, p. 5). Como indicam os verbos sublinhados, mesmo que haja a intenção, o querer encontrar o incondicionado, das Unbedingte, tarefa de toda uma tradição na filosofia, "encontramos apenas coisas", ou seja, não conseguimos sair do mundo dos fenômenos, e encontramos, sempre, a diferença, o plural (die Dinge). No mesmo sentido aponta Schlegel que os "[...] Princípios est~o sempre no plural", "[...] constroem-se uns aos outros; nunca é apenas Um, como presume o pensamento sobre o fundamento" (SCHLEGEL, 1963, p. 105)
 
A constatação da impossibilidade de fundamento não desemboca, entretanto, em total ausência do conhecimento para os românticos de Jena, mas numa releitura da "tarefa", por assim dizer, da própria filosofia: a caracterização do filosofar como tarefa infinita5. O mundo torna-se "[...] mais e mais infinito" e "[...] nunca h| um fim para a conexão do múltiplo, um estado de inatividade para o Eu pensante – a Idade de ouro deve surgir – porém esta n~o traz o fim das coisas" pois a "[...] meta dos seres humanos n~o é a Idade de ouro" (NOVALIS, 1978, p. 180), diz Novalis. Daí Schlegel dizer que a filosofia é nada mais que a história da filosofia7, isto é, um constante desdobrar-se já que não se parte de um ponto imut|vel. É "atividade infinita", "sem fim", "eterno impulso para um fundamento absoluto", "[...] uma história das tentativas de descobrimento do filosofar" (NOVALIS, 1988, p. 109). No mesmo sentido, Schlegel: "Pode-se somente vir a ser, não ser filosófico. Tão logo se acredita sê-lo, se deixa de o vir a ser" (SCHLEGEL, 1997, p. 55).

 
A concepção romântica da filosofia concebe, deste modo, o ser como oscilação (NOVALIS, 1978, p.178)8, que pode "[...] apenas ser revelado através do ser e o ser, somente através da atividade" (NOVALIS, 1978, p. 148)9, ou, nos valendo de formulações que podem servir como lema para todas as outras: "Deus é atividade infinita" (NOVALIS, 1978, p. 123)10, "Toda verdade é remota" (NOVALIS, 1984, p. 42)11 Por esta via, a filosofia não tem nada a expor a não ser a sua própria busca, um eterno oscilar (Schweben) entre pensamentos. Pode-se deste modo concordar com Seligmann sobre a concepção romântica da filosofia, a qual


[...] descarta o sistema fechado como o modo de exposição da filosofia: a filosofia não teria nada a expor a não ser a sua própria busca. O seu resultado é ‘indizível’ (Unausprechlich). A filosofia deve também compartilhar da ‘autonomia’ do poético e da sua oposiç~o a um fim (Absicht) determinado: o seu critério n~o é nem "aplicação" (Anwendbarkeit) nem tampouco "comunicabilidade" [...] A filosofia é definida como um eterno ir e vir entre os pensamentos, como um oscilar (Schweben) infinito [...] Desse modo voltamos, portanto, à concepção romântica do saber, como construção, como oscilação, Schweben. À diferença da noção tradicional do panteísmo, nos românticos o todo não é um constructo transcendente, que iria além da somatória das partes, mas resultado do movimento das mesmas (SELIGMANN, 2005, p. 322, 323).

Assim, o que est| tematizado, segundo Seligmann, é justamente esta "[...] impossibilidade de se nomear, ‘conceituar’ e conhecer o Absoluto". A noç~o de fundamento contém uma "impossibilidade" e portanto a tarefa do pensamento "[...] n~o seria nada mais do que essa própria ‘busca’" (SELIGMANN, 2005, p. 328). "Toda prosa sobre o mais alto é ininteligível" (SCHLEGEL, 1963, p. 254)12, como diz Schlegel, ou ainda, com certa comicidade: "H| escritores que bebem o incondicionado como |gua; e livros em que até os c~es se referem ao infinito" (SCHLEGEL, 1997, p. 29). 
 
A tarefa do pensamento não é assim cessada em uma estrutura fixa, mas se caracterizaria por um "movimento perpétuo", "[...] em oposiç~o ao fundamento" (NOVALIS, 1978, p. 147)13 pois toda "[...] coisa, como todo fundamento, é relativo" (NOVALIS, 1978, p. 151)14, como alerta Novalis nos Fichte Studium15. O pensamento se manifesta assim n~o como "claridade", como uma estrutura fechada e livre de contradições, mas de maneira indireta, oblíqua e mesmo paradoxal. Diz Schlegel que "Cada frase, cada livro que n~o se contradiz a si mesmo, é incompleto" (SCHLEGEL, 1963, p. 83)16. Na mesma linha nos interpela Novalis:


Deveria o princípio supremo conter o paradoxo supremo em seu problema? Ser uma proposição, que não deixasse absolutamente nenhuma paz – que sempre atraísse, e repelisse – sempre se tornasse de novo ininteligível, por mais vezes que já se a tivesse entendido? Que incessantemente ativasse nossa atividade – sem jamais cansá-la, sem jamais se tornar costumeira? Segundo antigas tradições místicas, Deus é para os espíritos algo semelhante (NOVALIS, 1988, p. 111).

A própria "moldura" de uma das formas de exposiç~o da obra de arte rom}ntica, ofragmento, se circunscreve dentro de uma concepção em que a obra é uma espécie de vir-a-ser da perfeição – ela é aberta e busca a perfectibilidade, pois só é possível conceber o incompleto, o que permanece aberto. Talvez no mais célebre dos fragmentos de Friedrich Schlegel, sobre a poesia universal progressiva, é dito que o "[...] gênero poético rom}ntico ainda está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada", "Só ele é infinito, assim como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei, que o arbítrio do poeta n~o suporta nenhuma lei sobre si" (SCHLEGEL, 1995, p. 65). A crítica de Schlegel se dirige à teoria clássica da literatura, que parte do modelo intemporal, universal e perfeito do belo, em contraste com a poesia moderna, "progressiva", justamente pelo reconhecimento de sua imperfeição e temporalidade. A mesma ideia é ainda apresentada na noç~o de "projeto" em Schlegel: "Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em devir. Um projeto completo teria de ser ao mesmo tempo inteiramente subjetivo e inteiramente objetivo, um indivíduo indiviso e vivo" (SCHLEGEL, 1997, p. 50)18. Não há, deste modo, mais unidade, mas movimento, diferença. Não há caminho previamente traçado, mas caminho a ser traçado, diálogo infinito. É processo, não estado. Em Novalis, um índice deste eterno caminhar é a metáfora da semente, de uso recorrente: "Amigos, o ch~o est| pobre, precisamos espalhar ricas sementes" para "[...] que nos medrem colheitas apenas módicas" (NOVALIS, 1988, p. 36) e ainda: "Tudo é semente" (NOVALIS, 1988, p. 159).
 
A noção de sistema, se é possível falar em sistema no Romantismo de Jena, é assim um sistema infinito. A questão não é pois, alcançar o fundamento das coisas, mas abordar o próprio inacabamento, "[...] inacabamento essencial", para falar com Lacoue-Labarthe e Nancy (1978, p. 42)19. Neste sentido, o fragmento não é apenas uma entre outras formas de expressão possíveis, mas a forma de expressão por excelência, necessária, já que é a forma consciente dos limites da apresentação do todo.


O fragmento 77 sugere que o di|logo, as cartas e ‘memórias’ (uma outra forma de monumento) pertencem ao fragmentário; poderemos ver nos capítulos seguintes, como os textos ‘contínuos’ dos rom}nticos, os quais j| referimos no contexto da exposiç~o ‘sistem|tica’, s~o de fato frequentemente apresentados em sua composição em uma linha que é mesmo fragmentária. Isto se deve indubitavelmente, em parte, a um tipo de inaptidão ou incapacidade em praticar uma exposição genuinamente sistemática, no sentido mais ordinário do termo. Mas, acima de tudo, isto testemunha a impossibilidade fundamental de uma tal exposição, quando uma ordem de princípios segundo os quais a ordem da razão revela que está faltando. Tal ordem está faltando aqui, mas é por excesso, por assim dizer, mais do que por falta. A exposição não poderia se desdobrar com base em um princípio ou fundamento, pois o ‘fundamento’ da fragmentação consiste precisamente na totalidade fragmentária em sua organicidade (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 44)

Não se trata, assim, de um aspecto meramente formal que visa o inacabamento, mas algo congênito: a própria possibilidade de totalidade é fragmentária, ou seja, a própriatotalidade da poesia rom}ntica se manifesta como fragmento: "[...] infinitude em ato" (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 45)21, ou aquilo que Schlegel, sobre a noção de

 
cada "projeto", expressa do seguinte modo: "O essencial é a capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os complementar e em parte executar em si" (SCHLEGEL, 1997, p. 50). O "método" é deste modo a própria instabilidade e flexibilidade, lidos, não obstante, como elemento enriquecedor do pensamento: o fragmento não pressupõe neste sentido um fracasso para se atingir o todo, mas a consciência de que tal tarefa é impossível. Novalis chega a definir como "dogm|tica" o pensamento que admite uma única solução ou resposta22, ao passo que chama de "pensamento genuíno" a forma de pensar que caracteriza a atividade infinita, como revelam os adjetivos "inesgot|vel", "vivificante", "indeterminado" e "propulsor" na seguinte passagem:


Toda figura humana vivifica um germe individual no observador. Através disso essa intuição se torna infinita – Está vinculada com o sentimento de uma força inesgotável – e por isso é tão absolutamente vivificante. Ao observarmos a nós mesmos – vivificamos a nós mesmos. 
 
Sem essa imortalidade visível e sensível – sit vênia verbis – não poderíamos pensar. 
 
Essa perceptível insuficiência da formação corpórea terrestre para tornar-se expressão e órgão do espírito ínsito é o pensamento indeterminado, propulsor, que é a base de todos os pensamentos genuínos – a ocasião para a evolução da inteligência – aquilo que nos necessita à admissão de um mundo inteligível e de uma série infinita de expressões e órgãos de cada espírito, cujo expoente, ou raiz, é sua individualidade (NOVALIS, 1988, p. 93).

Poder-se-ia acrescentar assim que, neste contexto, é o próprio fim da oscilação e da busca, "a descoberta de um sistema", que s~o lidos como fim do conhecimento. A busca constante adquire mesmo um índice valorativo superior ao do conhecimento que presume um fundamento: a impossibilidade de determinar o incondicionado,Unbedingte, o "n~o-coisado", que n~o est| submetido { mutabilidade das coisas, é descrita t~o positivamente a ponto de Hardenberg dizer que

Quanto mais ignorante se é por natureza, tanto mais capacidade para o saber. Cada conhecimento novo faz uma impressão muito mais profunda, mais vívida. Observa-se isso claramente ao ingressar numa ciência. Por isso através do excessivo estudar se perde capacidade. É uma ignorância oposta à primeira ignorância. Aquela é ignorância por deficiência – esta por excedência de conhecimento. Esta última costuma ter os sintomas do ceticismo – É porém um ceticismo spurius – por fraqueza indireta de nossa faculdade de conhecer. Não se está em condições de penetrar a massa e vivificá-la completamente em forma determinada – a força plástica não é suficiente. Assim o espírito de invenção de cabeças jovens, e dos exaltados – assim o afortunado golpe de mão do iniciante, ou do leigo rico de espírito, tornam-se facilmente explicáveis (NOVALIS, 1988, p. 87).

Na mesma linha, diz Schlegel: "Quanto mais j| se sabe, tanto mais ainda se tem de aprender. Não saber, ou antes, saber que não se sabe, aumenta no mesmo grau que o saber" (SCHLEGEL, 1997, p. 95) e ainda, a "[...] esfera da incompreensibilidade e confus~o" é o "[...] mais alto e talvez o último grau da formaç~o do espírito" (SCHLEGEL, 1963, p. 225)
 
 
Portanto o fragmento, segundo Márcio Suzuki, ao invés de indicar

[...] sintoma de um fracasso intelectual, é a percepção da fragmentação e do dilaceramento da consciência que poderia ser antes considerada como um dos instantes em que o idealismo alemão se dá conta de seus próprios limites, em que passa a investigar seus próprios pressupostos e a corrigir seus desvios: abdicar da pretensão de estabelecer, pelo viés da teoria, um sistema do saber absoluto, minimizando o alcance especulativo da dialética. No caráter assistemático da reflexão schlegeliana já se evidenciariam os principais elementos deflagradores da ‘crise do idealismo’, cujo desfecho ser| a filosofia da vida do próprio Schlegel e a filosofia positiva do último Schelling. (apud: SCHLEGEL, 1997, p. 12).

O sistema deve ser assim fragment|rio. Diz Schlegel que "Fragmentos", "[...] seriam a verdadeira forma da filosofia universal" (SCHLEGEL, 1997, p. 94). Entendemos j|, ent~o, a espécie de definição no fragmento 206 da Athenäum, no qual Schlegel define o fragmento comparando-o a um porco-espinho, e utiliza palavras como "perfeiç~o" e "acabamento" para caracterizar o fragmento: o "[...] fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho" (SCHLEGEL, 1997, p. 82).

 
A tensão existente entre acabamento e inacabamento, sistema e fragmento,sintetismo romântico, constitui portanto o fragmento. Sintetismo enquanto afirmação da "[...] unidade de dois contr|rios" (TODOROV, 1996, p. 234) abordados em muitas passagens: diz Novalis que "[...] Através da poesia nasce a suprema simpatia e a coatividade, a mais íntima comunidade de finito e infinito" (NOVALIS, 1988, p. 121), ou, em Schlegel, quando diz que em "[...] todo bom poema é preciso que tudo seja intenç~o e tudo instinto. Por isso ele se torna ideal" (SCHLEGEL, 1994, p. 83). O fragmento também teria de ser, ao mesmo tempo, "[...] inteiramente subjetivo e individual e inteiramente objetivo e como uma parte necess|ria no sistema de todas as ciências" (SCHLEGEL, 1997, p. 58). Esta união de opostos torna-se suprema num conhecido fragmento de Schlegel: "É igualmente mortal para o espírito ter um sistema ou não ter sistema algum. Ele terá portanto de se decidir por uma combinaç~o de ambos" (Idem, 1997, p. 95), concepção esta que responde, por assim dizer, a pergunta retórica de Schlegel: "Deve ent~o a poesia ser pura e simplesmente dividida? Ou permanecer uma e indivisível? Ou alternar entre separação e vínculo?" (SCHLEGEL, 1997, p. 139).

sintetismo implica assim, como se deixa perceber pelos excertos acima, que não se trata pura e simplesmente de uma estrutura contraditória do ponto de vista lógico – no sentido de uma estrutura excludente, uma estrutura "ou, ou" – mas de complementaridade entre as partes dissonantes, as quais reúnem em si mesmas, "[...] completude e incompletude, ou pode-se dizer de uma maneira mais complexa, ele completa e incompleta a dialética do acabamento e inacabamento" (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 50)24. É mister ressalvar, portanto, que a constituiç~o deste "sistema" – sua completude e totalidade – não podem iludir a ideia essencial a que remete a noção mesma de obra que é o fragmento rom}ntico, haja vista que a fragmentaç~o "[...] constitui a vis~o propriamente rom}ntica de sistema" (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 46)25. Diz Schlegel "Minha filosofia é um sistema de fragmentos e uma progress~o de projetos" (SCHLEGEL, 1963, p.
100)26. E ainda: "Eu sou um sistem|tico fragment|rio, um filósofo rom}ntico e um crítico sistem|tico" (SCHLEGEL, 1963, p. 97)
 
 
Em Conversa sobre a poesia, obra em que o próprio vínculo do filosófico e poético – como nos Diálogos platônicos – é indicador da mescla de contrários, a mesma questão surge com desfecho semelhante. Após o discurso de Andrea, Épocas da arte poética, opiniões divergentes, porém, como se verá, não excludentes, iniciam um diálogo sobre a importância, ou não, da divisão dos gêneros poéticos. Marcus começa opinando que, embora tenha apreciado a exposiç~o, gostaria que Andrea "[...] tivesse se dedicado ainda mais aos gêneros poéticos" e que da exposiç~o se pudesse depreender "[...] uma teoria mais específica sobre este assunto" (SCHLEGEL, 1994, p. 46-47). Amalia contudo, discordando de Marcus, diz que sempre "[...] tem arrepios" quando abre "[...] um livro em que a fantasia e suas obras s~o classificadas em rótulos", isto é, a valorizaç~o em demasia da classificaç~o e sua inelut|vel fragmentaç~o se convertem para Amalia em "[...] um desvio perigoso, que com demasiada freqüência mata a inclinação para o mais elevado, antes que a meta seja atingida" (SCHLEGEL, 1994, p. 47). Dever-se-ia, assim, "[...] abraçar diretamente o ideal e se entregar à harmonia que encontrará em seu interior, tão logo quiser procurá-la" (Idem, 1994, p. 48). "Por que n~o a poesia totalmente una e indivisível? Nosso amigo não consegue renunciar a seu velho vício; ele precisa sempre apartar e dividir onde só o todo, em divisa força, pode satisfazer e atuar" (SCHLEGEL, 1994, p. 49). A réplica de Marcus é ainda enf|tica: "O essencial são os fins precisos, a discriminação, pelos quais, apenas, a obra de arte é esboçada e se torna perfeita em si mesma", j| que a "[...] fantasia do poeta n~o deve desembocar em uma poesia caoticamente genérica; pelo contrário, cada obra deve ter forma e gênero segundo um caráter inteiramente determinado (SCHLEGEL, 1994, p. 48) e Lothario acrescenta: os "[...] gêneros poéticos s~o, na verdade, a própria poesia" (Idem, 1994, p. 48). 
 
A estrutura deste diálogo se estabelece assim entre duas posições contrárias. Todavia, ao invés de ser conduzida em direção a qualquer espécie de síntese, a questão permanece em aberto: n~o h| como inferir desta conversa qual parte sai "vitoriosa". N~o h| qualquer síntese que permita ao leitor apontar os "vencedores" ou "perdedores", ou ainda um termo

 
médio entre as posições que finalizassem a contradição inicial. Não há repouso para as opiniões contraditórias, a conversa permanece "insolúvel". Porém, esta insolubilidade é de espécie diferente, singular, pois, se não há aqui desfecho, do mesmo modo não há mútua exclusão. A própria atmosfera desta conversa é sóbria, sem exaltações: são amigos, praticando o sinfilosofar, a filosofia em conjunto: nosFragmentos logológicos diz Novalis: "Genuíno filosofar-em-conjunto é portanto uma expedição em comum em direção a um mundo amado – na qual nos revezamos mutuamente no posto mais avançado, que torna necess|ria a tens~o m|xima contra o elemento resistente, no qual voamos" (NOVALIS, 1988, p. 110) e Schlegel: "Se na comunicaç~o de pensamentos se alterna entre entendimento e não-entendimento absolutos, isso já pode ser chamado de uma amizade filosófica" (SCHLEGEL, 1997, p. 45).

 
Exemplos concretos de sinfilosofia – caso da revista Athenäum e (por que não?) da própria Conversa sobre a poesia – deveriam, segundo Schlegel, tornar-se universais:

Uma época inteiramente nova das ciências e artes começaria talvez quando sinfilosofia e simpoesia tivessem se tornado tão universais e tão interiores, que já não seria nada raro se algumas naturezas que se complementam reciprocamente constituíssem obras em conjunto. Muitas vezes não se pode evitar o pensamento de que dois espíritos poderiam no fundo pertencer um ao outro, como metades separadas, e só juntos ser tudo o que pudessem ser (SCHLEGEL, 1997, p. 67).

As divergências se deixam assim mostrar, sem que este fato implique extremismo; é uma conversa "[...] que deve apresentar em oposiç~o pontos de vista completamente diferentes, cada qual podendo apontar o espírito infinito da poesia sob uma nova luz" mas na qual todos se esforçam, em contraparte, "[...] {s vezes de um }ngulo, {s vezes de outro, para alcançar âmago da quest~o" (SCHLEGEL, 1994, p. 31). 
 
Ante o exposto, não seria melhor perguntar se a mesma lógica que vige nos fragmentos não está figurada nesta Conversa? Em outros termos: n~o seria a "síntese" deste diálogo o próprio insolúvel? E sua própria unidade representada pela complementaridade das opiniões contrárias, mas não excludentes? E ainda, não seria o próprio "inacabamento" deste diálogo, a apresentação da obra mantida em aberto, única forma de apresentar o irrepresentável, já que, como temos visto, este só se manifesta obliquamente? Neste sentido diz Schlegel que "Uma vez que se tem predileção pelo

Absoluto e não se possa deixar disso, então não resta outra saída, senão se contradizer sempre e vincular extremos opostos (SCHLEGEL, 1997, p. 45), predileção que permanece contudo sempre uma promessa na opinião fraturada dos indivíduos28, fratura não apenas entre as opiniões dos diversos indivíduos, mas mesmo a fratura interna, lembrando que "Cada homem é apenas uma parte de si mesmo" (SCHLEGEL, 1963, p. 115)29. Deste modo,


Ora estamos unidos, porque somos de um único sentido; ora não, porque falta sentido a mim ou a você. Quem está certo, e como podemos nos tornar um? Somente pela formação, que amplia todo sentido singular ao sentido singular infinito; e pela crença nesse sentido ou na religião já somos agora um, antes mesmo de nos tornar um (SCHLEGEL, 1997, p. 154).

A única síntese permitida é assim a união destas opiniões contrárias, em direção ao todo30, lembrando contudo que mesmo este inacabamento é a visão romântica do sistema, como aludido acima. Neste sentido, poder-se-ia apontar que a discussão em torno das épocas da arte poética, o diálogo em torno do acabamento/unidade e do

 
inacabamento/fragmentação, converte-se em veículo na exposição da dialética do acabamento/inacabamento, tal como apontado por Lacoue-Labarthe e Nancy. Ademais, a própria ideia de "di|logo" indica esta insolubilidade, o confronto entre "dois logos" em que a síntese, ao contrário dos Diálogos platônicos - dialética "irônica" se concordarmos com Deleuze31 a qual é "[...] mais mimo que di|logo", segundo Schlegel (1963, p. 221) pois, a

 
despeito da estrutura formal, revelam-se mais "monólogos" que "di|logos" –, não implica um repouso entre qualquer das opiniões ou ainda em uma terceira via, mas o tematizado é este próprio jogo, pois é impossível conceber qualquer espécie de síntese dialética. Há sempre (e apenas) diálogo constante, vinculação de opostos, aproximação infinita, unendliche Annährung, como se, ao retirar o véu, houvesse ainda outro e outro e assim indefinidamente.