Segundo Lyotard, há uma variedade de jogos de linguagem, uma heterogeneidade de elementos, cada um veiculando consigo "valências pragmáticas sui generis". Metarrelatos como a "dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza" não oferecem mais condições para se poder dizer sobre a legitimidade da variedade dos jogos de linguagem ou sobre a heterogeneidade de suas valências.
A legitimidade, tanto em matéria de justiça social como dos critérios de verdade, é a da otimização das performances do sistema, através de seus critérios de eficácia. Com a falência do que Lyotard chama de metarrelatos, a legitimidade passa a constituir um problema, pois não pode mais ser obtida pelos critérios de operatividade, na medida em que estes não permitem distinguir o verdadeiro do falso. Assim como a legitimidade também não pode mais ser obtida através da discussão, pois violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem, a invenção se produz sempre no interior não do consenso mas do "dissenso" (16, p. 8).
Para Lyotard, o conhecimento muda de status ao mesmo tempo em que as sociedades entram na era "pós-industrial" e as culturas na era "pós-moderna". Esta ultrapassagem começou no final da década de 50, q uando a Europa terminava a sua reconstrução. Depois de passados quarenta anos, as ciências e as tecnologias ditas de ponta trouxeram para a linguagem "a fonologia e as teorias lingüfsticas", "os problemas da comunicação e da cibernética", "as álgebras modernas e a informática", "os computadores e suas linguagens", "os problemas de tradução das linguagens", "a busca de compatibil idades entre linguagens-máquinas", "a telemática", "a paradoxologia", etc (1 6, p. 11-1 2). Essas novas tecnologias acarretaram também conseqüências ao nível da investigação e da transmissão do conhecimento. No que diz respeito a sua transmissão, o conhecimento só pode ser transmitido em termos de quantidade de informações.
A orientação das pesquisas, por seu lado, subordina-se à condição de tradutibil idade dos resultados em linguagem das máquinas. Tanto os produtores quanto os utilizadores do saber devem encontrar os meios de traduzir estas linguagens. Com a crescente hegemonia da informática, uma certa lógica se impõe sobre o conjunto de prescrições e também sobre os enunciados aceitos como conhecimento. O velho princfpio de que o saber é indissociável e indispensável à formação (Bildung) do esprrito, e mesmo da pessoa, "deixa de ter sentido" (16, p.1 4). O saber será produzido para ser vendido, para ser valorizado em uma nova produção, deixando de ser portanto um fim em si mesmo. Com a informatização da sociedade o status do conhecimento muda: ele deixa de ser orientado com a finalidade de ser "original", "verdadeiro", passando a ser orientado por critérios de eficácia, de "capacidade discriminante".
Em um caprtulo do seu livro, Lyotard retoma a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein.
Sobre os sujeitos dos jogos de linguagem observa que nestes as regras não são legítimas em si mesmas, mas resultantes de um contrato explícito. Uma modificação mínima de uma regra modifica a natureza do jogo. Todo enunciado deve ser considerado como um "lance". I sto significa que todo ato de fala é um ato de combate, no sentido do jogo, e que os atos de linguagem revelam uma "agonrstica gerar'.
O sentido do lance se relaciona com o prazer da invenção que "é o que permite a evolução da linguagem" (16, p. 26). Em um contexto de decomposição dos grandes relatos em conseqüência da dissolução da lei social e com a passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa de átomos individuais lançados no interior de um movimento browniano, os jogos de linguagem representariam o minimum de relação exigida para a reprodutibi lidade social. Esta atomização do social em flexrveis redes de jogos de linguagem pode parecer bem distante de uma realidade moderna permanentemente paralisada, bloqueada por aparatos burocráticos. No uso cotidiano, em uma discussão, no entanto, elas podem encerrar uma maior flexibilidade dos enunciados. A burocratização seria o limite desta tendência (16, p. 26). Cabe observar que a utilização feita por Lyotard do conceito de jogos de linguagem do último Wittgenstein não tem como meta a explicação do funcionamento das relações de comunicação intersubjetivas no interior da própria socialidade, ao contrário, Lyotard coloca-o fora dos contextos institutionais, distante do "grande mundo", e sem qualquer possibil idade ou final idade de mudar as regras deste. No limite, a· aplicação do ' conceito de jogos de linguagem restringe-se ao âmbito do ócio,como uma prazerosa experiência estetizante de um diálogo engenhoso. Como observa A.Honneth, Lyotard "projeta Nietzsche em Wittgenstein" (13, p. 895) .
O g rande relato, seja ele especulativo ou emancipador, perdeu sua credibilidade. O declínio dos relatos é resultado do avanço das técnicas e das tecnologias que ocorreu a partir da Segunda G uerra Mundial e que acentuou a importância dos meios em relação aos fins. Este processo é simultâneo à grande transformação do capitalismo liberal avançado durante os anos 1 930 a 1 960. Esta renovação, segundo Lyotard, "eliminou a alternativa comunista e valorizou odesfrute individual e dos serviços" (16, p. 68) .
Lyotard toma o movimento cultural que vai da diagnose niilista de N ietzsche até o pessimismoestético e literário das vanguardas em Viena na virada do século como a "pré-história da pós-modernidade". N ietzsche mostrou que o niil ismo europeu resultou da auto-aplicação das exigências científicas de verdade a estas próprias exigências. Este processo de deslegitimação Wittgenstein entendeu à sua maneira. A ciência faz seu próprio jogo de linguagem. E la não pode legitimar outros jogos de linguagem. Disto resulta uma conclusão pessimista: "ninguém pode falar todas as línguas, não há metal inguagem universal". Foi este pess imisl]1o que nutriu a geração de intelectuais vienenses na virada do século: artistas como Musil, Kraus, Hofmannsthal , Loos, Schõenberg, Broch, e também fil6sofos como Mach e Wittgenstein ( Nota E; 1 6, p. 68).
IV
A crítica de Lyotard aos relatos de emancipação, e principalmente ao modelo de consenso,é dirigida contra a tradição do idealismo alemão, principalmente à ética da "comunidade da comunicação" defendida por K. O. Apel e J. Habermas. Lyotard expressa seu ceticismo em rela ção à possibilidade de se fundar racionalmente uma ética em uma época de crise de legitimidade dos relatos de emancipação decorrente do desenvolvimento das ciências, pois para ele isto afeta diretamente a idéia da validade intersubjetiva. Mas é possível se contentar com normas morais reguladoras da convivência humana · cuja val idade se restrinja aos pequenos grupos, aos acordos meramente locais, remetendo a relação entre os grupos à destrutiva luta darwinista pela sobrevivência? A situação é paradoxal: nunca a questão de se construir uma éticaracional se mostrou tão sem esperanças e ao mesmo tempo tão imprescindível, dado que a possibi lidade de extermínio catastrófico da espécie não é mais uma mera mitologia terrificante, como em outros tempos, mas uma possibilidade concreta. Esta possibilidade afeta não apenas um limitado grupo de pessoas, mas o "gênero humano" como um todo. No entanto, predomina, no horizonte da modernidade tardia, a idéia generalizada e amplamente difundida - seja através dos meios de comunicação de massa ou nas discussões restritas dos círculos intelectuais - de que são remotas tanto as possibil idades de uma objetividade científica no âmbito das ciências lógico-matemáticas e das ciências empírico-analíticas quanto as possibilidades de uma validade intersubjetiva dos argumentos. E isto porque os juízos de valor não podem ser deduzidos nem dos formalismos das conclusões lógico-matemáticas nem das conclusões indutivas com base em fatos. A idéia da objetividade científica difere da pretensão de val idade das normas e dos juízos de valor no âmbito da subjetividade não vinculante. Walter Benjamin, no aforismo "Posto de gasolina", expressou de modo profético, já na década de vinte, esta situação paradoxal hoje imperante: "A construção da vida, no momento, está muito mais no poder dos fatos que de convicções. E, aliás, de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções" (2, p. 5).
O conceito de "dialética" como decurso histórico objetivamente necessário está em contradição tanto com a idéia moderna da objetividade científica como também com a da livre decisão moral da consciência. Este conceito de realidade "concreta", como realidade em processo, comum a Hegel, Marx e ao tardio Whitehead, segundo Apel, "não está de fato em condições de 'eliminar' a distinção, relevante tánto na prática como na ética, entre o que é agora e o que deve ser" ( 1 , p. 21 1 ). Enquanto filosofia dialética o marxismo não aceita a separação entre ser e dever-ser, entre fatos cognoscíveis cientificamente e normas fixadas subjetivamente. A idéia de que a humanidade só se coloca tarefas para as quais pode encontrar solução e que ela tem diante de si . a tarefa de "superar" a sua pré-história natural, isto é, o particularismo atomizante dos interesses de grupos e classes, representa um aspecto positivo do antagonismo entre o que é e o que deve ser. Ser e dever-ser, fatos do conhecimento e normas subjetivas, no que diz respeito a sua função ideológica, na verdade não se contradizem, mas se complementam.
Segundo Apel, há uma conexão, uma "complementaridade oficial", entre "misticismo" e "subjetivismo existencial", entre "solipsismo transcendental" (Wittgenstein) e "comunicação indireta" (Kierkegaard) ou "iluminação da existência" (Jaspers). Para Apel, "a complementaridade entre objetivismo avalorativo das ciências, de um lado, e subjetivismo existencial dos atos de fé religiosos e das decisões éticas, de outro, são a moderna expressão filosófico-ideológica da separação liberal entre âmbito público e âmbito privado da vida" (1 , p. 214). Isto tem como conseqüência geral que em praticamente todos os âmbitos da vida pública os fundamentos morais da práxis são substituídos por argumentos pragmáticos que podem ser fornecidos pelos especialistas com base em regras científico-tecnológic. as objetiváveis. Apel lembra que Weber descreveu a racionalidade da esfera pública, do comércio e da administração burocrática do estado como um processo indissoCiável. E sta análise e este processo se ampliaram e se generalizaram principalmente com o auxnio da cibernética e com a teoria funcionalista da sociedade como sistema. Nos dias atuais o "pragmatismo instrumentalista" se tornou parte componente da filosofia analítica e do pensamento publicamente ativo. Isto se efetivou não sem acarretar problemas teóricos insolúveis, como, por exemplo, os das dificuldades metodológicas da "ordinary language philosophy" em geral. Já no último Willgenstein estes aparecem fundados no fato de ele não refletir sobre a relação "comunicativo-reflexiva" entre os "jogos de linguagem" e as "formas de vida" por ele descritos, que permanecem entre uma "análise transcendental"e uma "análise quase behaviorista" (1 , p. 226) .
O que escapa à análise de Lyotard é que as flexíveis redes dos jogos de linguagem pluraissão inimagináveis sem pressupor o que Apel chama de uma comunidade da comunicação de indivíduos capazes de ilimitada comunicação e de consensos intersubjetivos. Mesmo o pensador sol itário só pode explicar e controlar a sua argumentação enquanto está em condições, no"colóquio da alma consigo mesma" (Platão) , de interiorizar o diálogo de .uma comunidade da argumentação racional. Isto significa que não se pode seguir uma regra sozinho. Mesmo no âmbito privado, a linguagem, para ser reconhecida como válida, é em princípio pública. Compreender a si mesmo e ao outro significa conceber as condições de possibi lidade e de validade da compreensão do sentido. Para Apel, a afirmação de Willgenstein, contida nas Investigações filosóficas, de que "não é possível que um só homem tenha seguido uma regra uma só vez", parte do pressuposto do jogo lingüístico como condição dos critérios de prova e portanto da validade das "regras" e da "observância de regras" ( 1 , p. 238). Em uma observação marginal, Apel destaca que Willgenstein nada tem a ver com O behaviorismo, porque este substitui a compreensão da ação, que decorre da comunicação, pela observação meramente exterior do comportamento (1 , p. 238-239).
O sentido da comunidade da comunicação tem como pressuposto o reconhecimento de todos os membros com iguais direitos de discussão. Deste ponto de vista, na dimensão pragmá tica do discurso, a "competência comunicativa" (Habermas) é primária em relação à "competência gramatical" (Chomsky) ( 1 , p. 239) . A tese desenvolvida por Habermas da possibil idade de se poder, em princípio, verbalizar todas as ações e todos os gestos expressivos é sugerida pela descoberta de Austin da "manifestação executiva" e da sua generalização e radicalização na história dos "atos lingüísticos" de J. R. Searle ( 1 , p. 239) . Essa comunidade da comunicação se apresenta portanto como possibil idade de comunicação de sentido e de justificaçãodialógica para as operações monológicas das ciências.
A comunidade da comunicação como a priori, conforme os argumentos de Apel, não significaria um retroceder à concepção idealista da "dialética do espírito". Esta comunidade não tem como pressuposto o a priori da "consciência". Ela significa, segundo Apel, "uma comunidade real da comunicação, e quem argumenta se torna ele mesmo membro através do processo de socialização e, em segundo lugar, uma comunidade ideal da comunicação que esteja em condições de em princípio compreender adequadamente os sentidos dos seus argumentos e de julgar definitivamente a sua verdade. O elemento singular e dialético desta situação está portanto em que ele de certo modo pressupõe a comunidade ideal na comunidade real, isto é, como possibil idade real da sociedade real, mesmo que ele saiba que na maior parte dos casos "a comunidade real... está longe de assemelhar-se à comunidade ideal da comunicação" (1 , p.263). Uma contradição no sentido não metafórico que, como tal, deve "ser suportada" (Hegel), e que só pode encontrar uma verdadeira "superação" através da realização da comunidadeideal da comunicação no interior da comunidade real da comunicação. Esta exigência implica que toda argumentação possa ser derivada de dois princípios regulativos fundamentais para a estratégia moral das ações de cada homem; todo agir deve garantir a sobrevivência do gênero humano como sobrevivência da comunidade real da comunicação e ter como questão a realização da comunidade ideal no interior da comunidade real.
Carlos Eduardo Jordão MACHADO"
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