A questão da “ausência de intencionalidade” associada à Língua III encontra franca reverberação também no texto O Dente, a Palma, de Lyotard. Nele, o autor faz uma espécie de projeção de uma cena que, superando o niilismo típico das modalidades representativas e suas estruturas hierárquicas de poder - em meio às quais um dado significante (b) está sempre sendo submetido a um outro dado significado (a) - rompe de vez com toda teleologia, toda sintaxe e todo padrão semiótico, de modo a libertar fluxos de libido e deslocamentos de afetos.
De acordo com a concepção do filósofo francês, o teatro energético instaura um espaço-tempo pleno de descontinuidades, com autonomia e simultaneidade de sons-barulho, palavras, arranjos corporais, imagens que o filósofo reconhece, por exemplo, em co-produções de Cage, Cunningham e Rauschenberg. Neste ambiente em que se abole a composição sígnica, a relação de poder se torna impossível. Assim sendo, não há mais espaço para o predomínio de quem quer que seja - dramaturgo, encenador, coreógrafo, cenógrafo - nem tampouco submissão do signo e do espectador, uma vez que o teatro energético, rompendo com temáticas e assuntos, passa a jogar com vistas à produção de alta intensidade (por excesso ou falta de energia) do que está presente, sem intencionalidade. Nada de A no lugar de B (ou vice-versa), nem A no lugar de X (não há uma incógnita a ser decifrada). Nada de letra ou símbolo. Nada de caráter. O teatro energético escapa a esses arranjos binários e tampouco se dá a ler, antes apenas a sentir - o que em mim sente está pensando.[6]
Ao discorrer – já num outro ensaio - sobre o que caracteriza um tipo de pensamento verdadeiramente imbricado aos afetos humanos, Lyotard declara que tal pensamento não se estabelece através da seleção de dados e da sua articulação, uma vez que “os dados não são dados mas dáveis e a seleção não é uma escolha. Pensar, assim como escrever ou pintar, é quase só receber o que nos chega a partir dos dados” (LYOTARD, 1997, p. 26). Assim sendo, de acordo com o filósofo, tal forma de pensamento requer um tipo de suspensão dos motivos habituais do espírito associados ao habitus, às disposições do corpo, aproximando-se do esvaziamento mobilizado pelo artista-guerreiro japonês ao caligrafar, ou do comediante ao atuar - o que implica a suspensão do espírito ativo e, consequentemente, a interrupção de qualquer processo de direcionamento da matéria.
O que nada tem a ver com a “tabula rasa”, com o que se pretendia (em vão) em Descartes, que o pensamento conhecedor começasse do zero, o que, paradoxalmente, só pode ser um recomeçar do zero. Mas naquilo a que chamamos pensar, o espírito não é por nós “dirigido” mas suspenso. Não lhe fornecemos regras mas ensinamo-lo a acolher. Não desbastamos o terreno para construir com mais luz, entreabrimos uma clareira onde a penumbra do quase dado poderá entrar e modificar o seu contorno. (…) Este pensamento não tem qualquer ligação especial com a combinação estabelecida de símbolos. (…) A dor de pensar não é um sintoma que, vindo de qualquer parte, se instala no espírito em vez de ocupar o seu verdadeiro lugar. É o próprio pensamento em si que, convertido à irresolução, decide tornar-se paciente e querer não querer, querer, exatamente, não querer dizer em vez do que deve ser significado (LYOTARD, 1997, p. 27).
Para Lyotard, este tipo de lançamento no vazio, de evacuação, demandando uma ruptura radical com qualquer atividade identificatória, seletiva ou conquistadora, não pode acontecer sem sofrimento. De acordo com o filósofo, a graça de que falava Kleist – associada à concepção aristotélica do automatismo divino, assim como à ausência de qualidade e, por conseguinte, de potência - não se deixa ser conquistada, “ela chama-se” (LYOTARD, 1997, p. 27). Neste sentido, faz-se necessário promover uma espécie de suspensão que desobstrua o corpo e o espírito como meio de fazer com que eles sejam tocados pela énergéia; o que, para Lyotard, só se estabelece por meio de uma inexorável carga “analogisante” (SIBILIA, 2002, p. 100), que inclui o “sofrimento e o sexo” (Ibidem, p.100), posto que um acontecimento dessa natureza, para além de estar diretamente ligado às circunstâncias materiais da existência humana, implica também uma necessária perda do prazer do adquirido. Não por acaso, ao se referir ao seu teatro energético, o qual escapa aos modelos de significação “conquistáveis”, “adquiríveis”, “agarráveis”, Lyotard, recorrendo a um exemplo de Hans Bellmer, faz remissão direta a um determinado tipo de sensação ligada à dor: Tenho terríveis dores de dente. Cerro o punho, as unhas se cravam na palma da mão. Duas concentrações de energia. Isso quer dizer que o gesto da mão representa, ilustra a dor de dente? O signo é de quê?[7]
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