Mirella Guidotti i (UNESP)
Resumo:
O presente artigo investiga a concepção filosófica do Romantismo de Jena enquanto atividade infinita. Através desta análise reflexiva aborda-se então o modo, a forma de expressão por excelência romântica: o fragmento, forma consciente dos limites da apresentação do todo. Não se trata, assim, de um aspecto meramente formal que visa o inacabamento, mas algo congênito: o fragmento constitui a visão romântica de totalidade; a totalidade se manifesta como um fragmento.
Só o incompleto pode ser concebido – pode levar-nos mais adiante.
O completo é apenas fruído [...]
queremos conceber a natureza,
então temos de pô-la como incompleta,
para assim chegar a um termo alternativo desconhecido /
Toda determinação é relativa"
Novalis.
Nos Fragmentos logológicos, Novalis alude à necessidade de um fundamento seguro para o pensamento: "Saber puro, incondicionado, - saber independente da experiência foi desde sempre o alvo dos esforços da raz~o fil[osofante]" (NOVALIS, 1988, p. 117). Na mesma linha, diz Hardenberg nos Philosophische Studien:
Filosofar deve ser um tipo único de pensamento. O que eu faço quando filosofo? Eu reflito sobre um fundamento. O fundamento do filosofar é, deste modo, um esforçar-se do pensamento por um fundamento. O fundamento não é, entretanto, uma causa no sentido literal – mas uma constituição – uma conexão com o todo. Toda reflexão deve portanto terminar num fundamento absoluto. (NOVALIS, 1978, p. 180-181).
No trecho acima, Novalis caracteriza a filosofia como o pensar segundo um fundamento. Adiante, contudo, Novalis interpela: e "se este fundamento n~o fosse dado, se contivesse uma impossibilidade"?
Então, e se este fundamento não fosse dado, se contivesse uma impossibilidade – então o impulso para o filosofar seria uma atividade infinita – e sem fim porque seria um eterno impulso para um fundamento absoluto que pode ser satisfeito apenas relativamente – e que nunca seria, por conseguinte, cessada. A atividade livre infinita surge em nós através da livre renunciação do absoluto – o único absoluto possível que pode ser dado a nós e que nós somente encontramos por nossa inabilidade de alcançar e conhecer um absoluto. Este absoluto que nos é dado pode somente ser conhecido negativamente, na medida em que nós agimos e buscamos aquilo que procuramos não pode ser alcançado através da ação. Isto poderia ser chamado um postulado absoluto. Todas as buscas por um princípio simples seriam como uma tentativa de enquadrar um círculo. Movimento perpétuo (NOVALIS, 1978, p. 180-181)
Um pólen é bastante preciso nesta concepç~o: "Nós procuramos por toda parte o incondicionado, (Unbedingte)2 e sempre encontramos apenas coisas" (NOVALIS, 2006, p. 5). Como indicam os verbos sublinhados, mesmo que haja a intenção, o querer encontrar o incondicionado, das Unbedingte, tarefa de toda uma tradição na filosofia, "encontramos apenas coisas", ou seja, não conseguimos sair do mundo dos fenômenos, e encontramos, sempre, a diferença, o plural (die Dinge). No mesmo sentido aponta Schlegel que os "[...] Princípios est~o sempre no plural", "[...] constroem-se uns aos outros; nunca é apenas Um, como presume o pensamento sobre o fundamento" (SCHLEGEL, 1963, p. 105)
A constatação da impossibilidade de fundamento não desemboca, entretanto, em total ausência do conhecimento para os românticos de Jena, mas numa releitura da "tarefa", por assim dizer, da própria filosofia: a caracterização do filosofar como tarefa infinita5. O mundo torna-se "[...] mais e mais infinito" e "[...] nunca h| um fim para a conexão do múltiplo, um estado de inatividade para o Eu pensante – a Idade de ouro deve surgir – porém esta n~o traz o fim das coisas" pois a "[...] meta dos seres humanos n~o é a Idade de ouro" (NOVALIS, 1978, p. 180), diz Novalis. Daí Schlegel dizer que a filosofia é nada mais que a história da filosofia7, isto é, um constante desdobrar-se já que não se parte de um ponto imut|vel. É "atividade infinita", "sem fim", "eterno impulso para um fundamento absoluto", "[...] uma história das tentativas de descobrimento do filosofar" (NOVALIS, 1988, p. 109). No mesmo sentido, Schlegel: "Pode-se somente vir a ser, não ser filosófico. Tão logo se acredita sê-lo, se deixa de o vir a ser" (SCHLEGEL, 1997, p. 55).
A concepção romântica da filosofia concebe, deste modo, o ser como oscilação (NOVALIS, 1978, p.178)8, que pode "[...] apenas ser revelado através do ser e o ser, somente através da atividade" (NOVALIS, 1978, p. 148)9, ou, nos valendo de formulações que podem servir como lema para todas as outras: "Deus é atividade infinita" (NOVALIS, 1978, p. 123)10, "Toda verdade é remota" (NOVALIS, 1984, p. 42)11 Por esta via, a filosofia não tem nada a expor a não ser a sua própria busca, um eterno oscilar (Schweben) entre pensamentos. Pode-se deste modo concordar com Seligmann sobre a concepção romântica da filosofia, a qual
[...] descarta o sistema fechado como o modo de exposição da filosofia: a filosofia não teria nada a expor a não ser a sua própria busca. O seu resultado é ‘indizível’ (Unausprechlich). A filosofia deve também compartilhar da ‘autonomia’ do poético e da sua oposiç~o a um fim (Absicht) determinado: o seu critério n~o é nem "aplicação" (Anwendbarkeit) nem tampouco "comunicabilidade" [...] A filosofia é definida como um eterno ir e vir entre os pensamentos, como um oscilar (Schweben) infinito [...] Desse modo voltamos, portanto, à concepção romântica do saber, como construção, como oscilação, Schweben. À diferença da noção tradicional do panteísmo, nos românticos o todo não é um constructo transcendente, que iria além da somatória das partes, mas resultado do movimento das mesmas (SELIGMANN, 2005, p. 322, 323).
Assim, o que est| tematizado, segundo Seligmann, é justamente esta "[...] impossibilidade de se nomear, ‘conceituar’ e conhecer o Absoluto". A noç~o de fundamento contém uma "impossibilidade" e portanto a tarefa do pensamento "[...] n~o seria nada mais do que essa própria ‘busca’" (SELIGMANN, 2005, p. 328). "Toda prosa sobre o mais alto é ininteligível" (SCHLEGEL, 1963, p. 254)12, como diz Schlegel, ou ainda, com certa comicidade: "H| escritores que bebem o incondicionado como |gua; e livros em que até os c~es se referem ao infinito" (SCHLEGEL, 1997, p. 29).
A tarefa do pensamento não é assim cessada em uma estrutura fixa, mas se caracterizaria por um "movimento perpétuo", "[...] em oposiç~o ao fundamento" (NOVALIS, 1978, p. 147)13 pois toda "[...] coisa, como todo fundamento, é relativo" (NOVALIS, 1978, p. 151)14, como alerta Novalis nos Fichte Studium15. O pensamento se manifesta assim n~o como "claridade", como uma estrutura fechada e livre de contradições, mas de maneira indireta, oblíqua e mesmo paradoxal. Diz Schlegel que "Cada frase, cada livro que n~o se contradiz a si mesmo, é incompleto" (SCHLEGEL, 1963, p. 83)16. Na mesma linha nos interpela Novalis:
Deveria o princípio supremo conter o paradoxo supremo em seu problema? Ser uma proposição, que não deixasse absolutamente nenhuma paz – que sempre atraísse, e repelisse – sempre se tornasse de novo ininteligível, por mais vezes que já se a tivesse entendido? Que incessantemente ativasse nossa atividade – sem jamais cansá-la, sem jamais se tornar costumeira? Segundo antigas tradições místicas, Deus é para os espíritos algo semelhante (NOVALIS, 1988, p. 111).
A própria "moldura" de uma das formas de exposiç~o da obra de arte rom}ntica, ofragmento, se circunscreve dentro de uma concepção em que a obra é uma espécie de vir-a-ser da perfeição – ela é aberta e busca a perfectibilidade, pois só é possível conceber o incompleto, o que permanece aberto. Talvez no mais célebre dos fragmentos de Friedrich Schlegel, sobre a poesia universal progressiva, é dito que o "[...] gênero poético rom}ntico ainda está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada", "Só ele é infinito, assim como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei, que o arbítrio do poeta n~o suporta nenhuma lei sobre si" (SCHLEGEL, 1995, p. 65). A crítica de Schlegel se dirige à teoria clássica da literatura, que parte do modelo intemporal, universal e perfeito do belo, em contraste com a poesia moderna, "progressiva", justamente pelo reconhecimento de sua imperfeição e temporalidade. A mesma ideia é ainda apresentada na noç~o de "projeto" em Schlegel: "Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em devir. Um projeto completo teria de ser ao mesmo tempo inteiramente subjetivo e inteiramente objetivo, um indivíduo indiviso e vivo" (SCHLEGEL, 1997, p. 50)18. Não há, deste modo, mais unidade, mas movimento, diferença. Não há caminho previamente traçado, mas caminho a ser traçado, diálogo infinito. É processo, não estado. Em Novalis, um índice deste eterno caminhar é a metáfora da semente, de uso recorrente: "Amigos, o ch~o est| pobre, precisamos espalhar ricas sementes" para "[...] que nos medrem colheitas apenas módicas" (NOVALIS, 1988, p. 36) e ainda: "Tudo é semente" (NOVALIS, 1988, p. 159).
A noção de sistema, se é possível falar em sistema no Romantismo de Jena, é assim um sistema infinito. A questão não é pois, alcançar o fundamento das coisas, mas abordar o próprio inacabamento, "[...] inacabamento essencial", para falar com Lacoue-Labarthe e Nancy (1978, p. 42)19. Neste sentido, o fragmento não é apenas uma entre outras formas de expressão possíveis, mas a forma de expressão por excelência, necessária, já que é a forma consciente dos limites da apresentação do todo.
O fragmento 77 sugere que o di|logo, as cartas e ‘memórias’ (uma outra forma de monumento) pertencem ao fragmentário; poderemos ver nos capítulos seguintes, como os textos ‘contínuos’ dos rom}nticos, os quais j| referimos no contexto da exposiç~o ‘sistem|tica’, s~o de fato frequentemente apresentados em sua composição em uma linha que é mesmo fragmentária. Isto se deve indubitavelmente, em parte, a um tipo de inaptidão ou incapacidade em praticar uma exposição genuinamente sistemática, no sentido mais ordinário do termo. Mas, acima de tudo, isto testemunha a impossibilidade fundamental de uma tal exposição, quando uma ordem de princípios segundo os quais a ordem da razão revela que está faltando. Tal ordem está faltando aqui, mas é por excesso, por assim dizer, mais do que por falta. A exposição não poderia se desdobrar com base em um princípio ou fundamento, pois o ‘fundamento’ da fragmentação consiste precisamente na totalidade fragmentária em sua organicidade (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 44)
Não se trata, assim, de um aspecto meramente formal que visa o inacabamento, mas algo congênito: a própria possibilidade de totalidade é fragmentária, ou seja, a própriatotalidade da poesia rom}ntica se manifesta como fragmento: "[...] infinitude em ato" (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 45)21, ou aquilo que Schlegel, sobre a noção de
cada "projeto", expressa do seguinte modo: "O essencial é a capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os complementar e em parte executar em si" (SCHLEGEL, 1997, p. 50). O "método" é deste modo a própria instabilidade e flexibilidade, lidos, não obstante, como elemento enriquecedor do pensamento: o fragmento não pressupõe neste sentido um fracasso para se atingir o todo, mas a consciência de que tal tarefa é impossível. Novalis chega a definir como "dogm|tica" o pensamento que admite uma única solução ou resposta22, ao passo que chama de "pensamento genuíno" a forma de pensar que caracteriza a atividade infinita, como revelam os adjetivos "inesgot|vel", "vivificante", "indeterminado" e "propulsor" na seguinte passagem:
Toda figura humana vivifica um germe individual no observador. Através disso essa intuição se torna infinita – Está vinculada com o sentimento de uma força inesgotável – e por isso é tão absolutamente vivificante. Ao observarmos a nós mesmos – vivificamos a nós mesmos.
Sem essa imortalidade visível e sensível – sit vênia verbis – não poderíamos pensar.
Essa perceptível insuficiência da formação corpórea terrestre para tornar-se expressão e órgão do espírito ínsito é o pensamento indeterminado, propulsor, que é a base de todos os pensamentos genuínos – a ocasião para a evolução da inteligência – aquilo que nos necessita à admissão de um mundo inteligível e de uma série infinita de expressões e órgãos de cada espírito, cujo expoente, ou raiz, é sua individualidade (NOVALIS, 1988, p. 93).
Poder-se-ia acrescentar assim que, neste contexto, é o próprio fim da oscilação e da busca, "a descoberta de um sistema", que s~o lidos como fim do conhecimento. A busca constante adquire mesmo um índice valorativo superior ao do conhecimento que presume um fundamento: a impossibilidade de determinar o incondicionado,Unbedingte, o "n~o-coisado", que n~o est| submetido { mutabilidade das coisas, é descrita t~o positivamente a ponto de Hardenberg dizer que
Quanto mais ignorante se é por natureza, tanto mais capacidade para o saber. Cada conhecimento novo faz uma impressão muito mais profunda, mais vívida. Observa-se isso claramente ao ingressar numa ciência. Por isso através do excessivo estudar se perde capacidade. É uma ignorância oposta à primeira ignorância. Aquela é ignorância por deficiência – esta por excedência de conhecimento. Esta última costuma ter os sintomas do ceticismo – É porém um ceticismo spurius – por fraqueza indireta de nossa faculdade de conhecer. Não se está em condições de penetrar a massa e vivificá-la completamente em forma determinada – a força plástica não é suficiente. Assim o espírito de invenção de cabeças jovens, e dos exaltados – assim o afortunado golpe de mão do iniciante, ou do leigo rico de espírito, tornam-se facilmente explicáveis (NOVALIS, 1988, p. 87).
Na mesma linha, diz Schlegel: "Quanto mais j| se sabe, tanto mais ainda se tem de aprender. Não saber, ou antes, saber que não se sabe, aumenta no mesmo grau que o saber" (SCHLEGEL, 1997, p. 95) e ainda, a "[...] esfera da incompreensibilidade e confus~o" é o "[...] mais alto e talvez o último grau da formaç~o do espírito" (SCHLEGEL, 1963, p. 225)
Portanto o fragmento, segundo Márcio Suzuki, ao invés de indicar
[...] sintoma de um fracasso intelectual, é a percepção da fragmentação e do dilaceramento da consciência que poderia ser antes considerada como um dos instantes em que o idealismo alemão se dá conta de seus próprios limites, em que passa a investigar seus próprios pressupostos e a corrigir seus desvios: abdicar da pretensão de estabelecer, pelo viés da teoria, um sistema do saber absoluto, minimizando o alcance especulativo da dialética. No caráter assistemático da reflexão schlegeliana já se evidenciariam os principais elementos deflagradores da ‘crise do idealismo’, cujo desfecho ser| a filosofia da vida do próprio Schlegel e a filosofia positiva do último Schelling. (apud: SCHLEGEL, 1997, p. 12).
O sistema deve ser assim fragment|rio. Diz Schlegel que "Fragmentos", "[...] seriam a verdadeira forma da filosofia universal" (SCHLEGEL, 1997, p. 94). Entendemos j|, ent~o, a espécie de definição no fragmento 206 da Athenäum, no qual Schlegel define o fragmento comparando-o a um porco-espinho, e utiliza palavras como "perfeiç~o" e "acabamento" para caracterizar o fragmento: o "[...] fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho" (SCHLEGEL, 1997, p. 82).
A tensão existente entre acabamento e inacabamento, sistema e fragmento,sintetismo romântico, constitui portanto o fragmento. Sintetismo enquanto afirmação da "[...] unidade de dois contr|rios" (TODOROV, 1996, p. 234) abordados em muitas passagens: diz Novalis que "[...] Através da poesia nasce a suprema simpatia e a coatividade, a mais íntima comunidade de finito e infinito" (NOVALIS, 1988, p. 121), ou, em Schlegel, quando diz que em "[...] todo bom poema é preciso que tudo seja intenç~o e tudo instinto. Por isso ele se torna ideal" (SCHLEGEL, 1994, p. 83). O fragmento também teria de ser, ao mesmo tempo, "[...] inteiramente subjetivo e individual e inteiramente objetivo e como uma parte necess|ria no sistema de todas as ciências" (SCHLEGEL, 1997, p. 58). Esta união de opostos torna-se suprema num conhecido fragmento de Schlegel: "É igualmente mortal para o espírito ter um sistema ou não ter sistema algum. Ele terá portanto de se decidir por uma combinaç~o de ambos" (Idem, 1997, p. 95), concepção esta que responde, por assim dizer, a pergunta retórica de Schlegel: "Deve ent~o a poesia ser pura e simplesmente dividida? Ou permanecer uma e indivisível? Ou alternar entre separação e vínculo?" (SCHLEGEL, 1997, p. 139).
O sintetismo implica assim, como se deixa perceber pelos excertos acima, que não se trata pura e simplesmente de uma estrutura contraditória do ponto de vista lógico – no sentido de uma estrutura excludente, uma estrutura "ou, ou" – mas de complementaridade entre as partes dissonantes, as quais reúnem em si mesmas, "[...] completude e incompletude, ou pode-se dizer de uma maneira mais complexa, ele completa e incompleta a dialética do acabamento e inacabamento" (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 50)24. É mister ressalvar, portanto, que a constituiç~o deste "sistema" – sua completude e totalidade – não podem iludir a ideia essencial a que remete a noção mesma de obra que é o fragmento rom}ntico, haja vista que a fragmentaç~o "[...] constitui a vis~o propriamente rom}ntica de sistema" (LACOUE-LABARTHE, NANCY, 1978, p. 46)25. Diz Schlegel "Minha filosofia é um sistema de fragmentos e uma progress~o de projetos" (SCHLEGEL, 1963, p.
100)26. E ainda: "Eu sou um sistem|tico fragment|rio, um filósofo rom}ntico e um crítico sistem|tico" (SCHLEGEL, 1963, p. 97)
Em Conversa sobre a poesia, obra em que o próprio vínculo do filosófico e poético – como nos Diálogos platônicos – é indicador da mescla de contrários, a mesma questão surge com desfecho semelhante. Após o discurso de Andrea, Épocas da arte poética, opiniões divergentes, porém, como se verá, não excludentes, iniciam um diálogo sobre a importância, ou não, da divisão dos gêneros poéticos. Marcus começa opinando que, embora tenha apreciado a exposiç~o, gostaria que Andrea "[...] tivesse se dedicado ainda mais aos gêneros poéticos" e que da exposiç~o se pudesse depreender "[...] uma teoria mais específica sobre este assunto" (SCHLEGEL, 1994, p. 46-47). Amalia contudo, discordando de Marcus, diz que sempre "[...] tem arrepios" quando abre "[...] um livro em que a fantasia e suas obras s~o classificadas em rótulos", isto é, a valorizaç~o em demasia da classificaç~o e sua inelut|vel fragmentaç~o se convertem para Amalia em "[...] um desvio perigoso, que com demasiada freqüência mata a inclinação para o mais elevado, antes que a meta seja atingida" (SCHLEGEL, 1994, p. 47). Dever-se-ia, assim, "[...] abraçar diretamente o ideal e se entregar à harmonia que encontrará em seu interior, tão logo quiser procurá-la" (Idem, 1994, p. 48). "Por que n~o a poesia totalmente una e indivisível? Nosso amigo não consegue renunciar a seu velho vício; ele precisa sempre apartar e dividir onde só o todo, em divisa força, pode satisfazer e atuar" (SCHLEGEL, 1994, p. 49). A réplica de Marcus é ainda enf|tica: "O essencial são os fins precisos, a discriminação, pelos quais, apenas, a obra de arte é esboçada e se torna perfeita em si mesma", j| que a "[...] fantasia do poeta n~o deve desembocar em uma poesia caoticamente genérica; pelo contrário, cada obra deve ter forma e gênero segundo um caráter inteiramente determinado (SCHLEGEL, 1994, p. 48) e Lothario acrescenta: os "[...] gêneros poéticos s~o, na verdade, a própria poesia" (Idem, 1994, p. 48).
A estrutura deste diálogo se estabelece assim entre duas posições contrárias. Todavia, ao invés de ser conduzida em direção a qualquer espécie de síntese, a questão permanece em aberto: n~o h| como inferir desta conversa qual parte sai "vitoriosa". N~o h| qualquer síntese que permita ao leitor apontar os "vencedores" ou "perdedores", ou ainda um termo
médio entre as posições que finalizassem a contradição inicial. Não há repouso para as opiniões contraditórias, a conversa permanece "insolúvel". Porém, esta insolubilidade é de espécie diferente, singular, pois, se não há aqui desfecho, do mesmo modo não há mútua exclusão. A própria atmosfera desta conversa é sóbria, sem exaltações: são amigos, praticando o sinfilosofar, a filosofia em conjunto: nosFragmentos logológicos diz Novalis: "Genuíno filosofar-em-conjunto é portanto uma expedição em comum em direção a um mundo amado – na qual nos revezamos mutuamente no posto mais avançado, que torna necess|ria a tens~o m|xima contra o elemento resistente, no qual voamos" (NOVALIS, 1988, p. 110) e Schlegel: "Se na comunicaç~o de pensamentos se alterna entre entendimento e não-entendimento absolutos, isso já pode ser chamado de uma amizade filosófica" (SCHLEGEL, 1997, p. 45).
Exemplos concretos de sinfilosofia – caso da revista Athenäum e (por que não?) da própria Conversa sobre a poesia – deveriam, segundo Schlegel, tornar-se universais:
Uma época inteiramente nova das ciências e artes começaria talvez quando sinfilosofia e simpoesia tivessem se tornado tão universais e tão interiores, que já não seria nada raro se algumas naturezas que se complementam reciprocamente constituíssem obras em conjunto. Muitas vezes não se pode evitar o pensamento de que dois espíritos poderiam no fundo pertencer um ao outro, como metades separadas, e só juntos ser tudo o que pudessem ser (SCHLEGEL, 1997, p. 67).
As divergências se deixam assim mostrar, sem que este fato implique extremismo; é uma conversa "[...] que deve apresentar em oposiç~o pontos de vista completamente diferentes, cada qual podendo apontar o espírito infinito da poesia sob uma nova luz" mas na qual todos se esforçam, em contraparte, "[...] {s vezes de um }ngulo, {s vezes de outro, para alcançar âmago da quest~o" (SCHLEGEL, 1994, p. 31).
Ante o exposto, não seria melhor perguntar se a mesma lógica que vige nos fragmentos não está figurada nesta Conversa? Em outros termos: n~o seria a "síntese" deste diálogo o próprio insolúvel? E sua própria unidade representada pela complementaridade das opiniões contrárias, mas não excludentes? E ainda, não seria o próprio "inacabamento" deste diálogo, a apresentação da obra mantida em aberto, única forma de apresentar o irrepresentável, já que, como temos visto, este só se manifesta obliquamente? Neste sentido diz Schlegel que "Uma vez que se tem predileção pelo
Absoluto e não se possa deixar disso, então não resta outra saída, senão se contradizer sempre e vincular extremos opostos (SCHLEGEL, 1997, p. 45), predileção que permanece contudo sempre uma promessa na opinião fraturada dos indivíduos28, fratura não apenas entre as opiniões dos diversos indivíduos, mas mesmo a fratura interna, lembrando que "Cada homem é apenas uma parte de si mesmo" (SCHLEGEL, 1963, p. 115)29. Deste modo,
Ora estamos unidos, porque somos de um único sentido; ora não, porque falta sentido a mim ou a você. Quem está certo, e como podemos nos tornar um? Somente pela formação, que amplia todo sentido singular ao sentido singular infinito; e pela crença nesse sentido ou na religião já somos agora um, antes mesmo de nos tornar um (SCHLEGEL, 1997, p. 154).
A única síntese permitida é assim a união destas opiniões contrárias, em direção ao todo30, lembrando contudo que mesmo este inacabamento é a visão romântica do sistema, como aludido acima. Neste sentido, poder-se-ia apontar que a discussão em torno das épocas da arte poética, o diálogo em torno do acabamento/unidade e do
inacabamento/fragmentação, converte-se em veículo na exposição da dialética do acabamento/inacabamento, tal como apontado por Lacoue-Labarthe e Nancy. Ademais, a própria ideia de "di|logo" indica esta insolubilidade, o confronto entre "dois logos" em que a síntese, ao contrário dos Diálogos platônicos - dialética "irônica" se concordarmos com Deleuze31 a qual é "[...] mais mimo que di|logo", segundo Schlegel (1963, p. 221) pois, a
despeito da estrutura formal, revelam-se mais "monólogos" que "di|logos" –, não implica um repouso entre qualquer das opiniões ou ainda em uma terceira via, mas o tematizado é este próprio jogo, pois é impossível conceber qualquer espécie de síntese dialética. Há sempre (e apenas) diálogo constante, vinculação de opostos, aproximação infinita, unendliche Annährung, como se, ao retirar o véu, houvesse ainda outro e outro e assim indefinidamente.
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