quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Identidade, oposição e pragmatismo: uma teoria política do voto

J. A. Guilhon Albuquerque

Professor do Departamento de Ciência Política e coordenador do Programa de Pós-Doutorado em Relações Internacionais da USP

 
A construção de uma tipologia do eleitorado tem por objeto definir tipos de comportamento eleitoral. Ela consiste na definição de um conjunto de variáveis capazes de identificar tipos diferentes de eleitores com comportamentos eleitorais distintos, de modo que, com base nessa tipologia, seja possível predizer o voto futuro desses grupos.

A referência mais usual para tipologias dessa natureza está na literatura norte-americana1. A predição do voto do eleitorado norte-americano baseia-se essencialmente em três tipos de variáveis, a saber, atitudes políticas, tais como a identificação partidária e as orientações de tipo liberal ou conservador; pertinência cultural, como a filiação religiosa e a origem étnica; e as variáveis demográficas, como idade, sexo, nível de renda e grau de instrução. As correlações entre essas variáveis foram estabelecidas há muito e sofrem constantes correções que aumentam o poder preditivo das tipologias daí resultantes, em que a identificação partidária desempenha, sem dúvida, o papel determinante.

No Brasil, as pesquisas acadêmicas têm trabalhado com conjuntos complexos de variáveis que, além das dimensões apontadas no que se refere à literatura norte-americana, incluem participação e informação política, opiniões sobre as instituições e a classe política, atitudes com relação às instituições e ao regime, etc. Não temos conhecimento, entretanto, de qualquer tentativa de construção de tipologia do eleitorado no sentido estrito aqui mencionado.

Por outro lado, as pesquisas acadêmicas de comportamento eleitoral já realizadas não podem ser consideradas pesquisas nacionais no sentido estrito, já que não se basearam em surveys com amostras estratificadas por região, Estado e município. As pesquisas dos Institutos de opinião, algumas das quais podem ser aceitas, com restrições, como sendo baseadas em amostras probabilísticas da população nacional, padecem de outra ordem de limitações.

Com efeito, essas pesquisas tendem a empregar exclusivamente, como variáveis explicativas, as dimensões demográficas e ecológicas. Além do mais, as análises geralmente divulgadas restringem-se à associação de variáveis duas a duas, sempre uma variável explicativa e uma variável de comportamento eleitoral. São praticamente inexistentes as análises e projeções que incluam associações das variáveis explicativas ou das variáveis "dependentes" entre si. Tampouco tenho conhecimento de análises ou projeções das associações entre as variáveis demográficas ou ecológicas e as variáveis de comportamento eleitoral, com o emprego de variáveis de controle, o que reduz enormemente, quando não anula, o poder preditivo das projeções feitas.

Nessas análises, baseadas nos dados de surveys nacionais dos institutos de pesquisa de opinião, prevalecem, portanto, o que se poderia chamar de tipologias de uma só variável: "o voto do interior" por oposição ao das capitais e regiões metropolitanas, o "voto jovem" por oposição ao dos adultos e idosos, o "voto das classes D e E" por oposição às demais, e assim por diante.

A tipologia que pretendemos construir apresenta, com relação a esses estudos, pelo menos dois aspectos inovadores. Em primeiro lugar, trata-se de definir uma tipologia do eleitorado no sentido estrito: a combinação de um conjunto de variáveis que defina um número determinado de tipos, isto é, grupos coletivamente exaustivos e mutuamente excludentes de eleitores, cujos comportamentos de escolha eleitoral sejam significativamente distintos uns dos outros do ponto de vista teórico, e passíveis de ser empiricamente discriminados entre si.

Em segundo lugar, trata-se de conferir prioridade teórica e peso empírico preponderante às variáveis de comportamento político. Isto significa que, ao invés de priorizarmos as variáveis demográficas e contextuais para explicar o comportamento eleitoral, daremos prioridade às variáveis de comportamento político. Isto equivale a evitar a redução do comportamento eleitoral a dimensões não-políticas, explicando e predizendo o comportamento eleitoral a partir do comportamento político prévio.

O ponto de partida para este projeto foi a crítica à tipologia tradicional do eleitorado americano - em termos de Liberais, Conservadores e Independentes - feita por Ornstein, Kohut e McCarthy2 no estudo realizado para a Times-Mirror, com vistas às eleições presidenciais de 1988. Nesse estudo, baseado em surueys conduzidos pela Gallup Organization, a tipologia resultou da combinação de nove dimensões (basic values and personal orientations)- . fé religiosa, alienação e pressão financeira (orientações pessoais); e tolerância, justiça social, anti-comunismo militante, atitudes para com o governo, excepcionalismo americano e atitudes para com o big business americano (valores básicos).

Confrontando as dimensões daquele estudo com as variáveis presentes no questionário Cedec/Data-Folha e na literatura brasileira, e levando em conta minhas próprias hipóteses teóricas, particularmente no que diz respeito às dimensões do voto3, cheguei a uma lista de 10 dimensões. Essas dimensões compreendem um total de 22 variáveis.

1. ENVOLVIMENTO/NÃO-ENVOLVIMENTO COM AS INSTITUIÇÕES - Minha hipótese é que o baixo ou nenhum envolvimento com as instituições políticas está associado ao desinteresse e à desinformação sobre o processo eleitoral e ao voto nulo ou em branco e ao voto "cacareco". Também está associado à inclinação por candidatos que se apresentam como anti-sistema ou como outsiders e a movimentos "contra tudo e contra todos".

2.  PARTICIPAÇÃO - Minha hipótese é que uma alta participação é independente da maioria das dimensões do comportamento eleitoral e permite, numa tipologia, qualificar as orientações resultantes de outras dimensões. A hipótese mais geral, neste caso, é que, quanto maior a participação, mais forte será o efeito dessas variáveis.

3.  ORIENTAÇÃO DO VOTO - Esta dimensão compreende dois grupos de questões: o primeiro diz respeito diretamente à razão do voto e da inclinação partidária, interpretadas em termos das categorias de Identidade, Oposição e Totalidade, propostas por Touraine para interpretar as orientações da ação coletiva4.

Neste caso, trata-se das razões do voto no segundo turno das últimas eleições presidenciais, e da razão da preferência partidária.

4.  IDENTIDADE PARTIDÁRIA - Trata-se de um indicador bastante eficiente de identidade partidária, uma vez que a resposta foi espontânea e única a pergunta: "Qual o partido político de sua preferência?" A identificação partidária deve, portanto, ser entendida no seu sentido mais estrito, e o fato de que a amostra revele cerca de metade dos entrevistados com identidade partidária é inesperado em face da literatura sobre a questão5.

5.  ORIENTAÇÃO IDEOLÓGICA - Nesta dimensão inclui-se a auto-definição e a definição do partido de preferência numa escala de direita- esquerda com sete posições.

6. JUSTIÇA SOCIAL/DESEMPENHO INDIVIDUAL Agrupamos aqui um conjunto de indicadores que dizem respeito à expectativa de proteção social e, particularmente, estatal, por oposição à confiança no desempenho individual.

Minha hipótese é que a experiência de migração, de afluência, de sucesso na competição determine orientações políticas que levem ao voto em candidatos ou partidos identificados com propostas empresariais ou de restrição às políticas sociais de caráter assistencial.

7.  TOLERÂNCIA/RIGIDEZ - São duas questões distintas que pretendem avaliar a tolerância à diferença, à dissidência e a eventual quebra de normas, tanto pessoais quanto sociais.

Minha hipótese é que em ambos os casos a tolerância ou a rigidez levará à identificação com determinados candidatos e, sobretudo, à rejeição de outros.

8.  AUTORITARISMO - Além da clássica oposição à democracia, juntam-se aqui indicadores de atitudes com relação ao governo militar e de preferência por um partido único.

9.  OTIMISMO/PESSIMISMO - Temos, aqui, uma escala de auto-avaliação do sucesso pessoal. São duas questões em que o entrevistado se coloca por referência ao seu próprio ideal de sucesso no presente e no futuro (o máximo que poderá atingir). Minha hipótese é que o contraste entre as duas avaliações determina diferentes orientações eleitorais.

10.  ALIENAÇÃO - Trata-se aqui do sentimento de alienação política, medido por indicadores da percepção de ser influenciado ou de influenciar a política, questões mantidas apenas na primeira e segunda ondas de entrevistas.

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O QUE DETERMINA O VOTO?

Portanto, o problema é simples. Quanto à solução, agora é que ela começa a complicar: como escolher de antemão essas características que eu preciso observar na parcela da população estudada, para comprovar que elas determinam a escolha eleitoral? Podemos observar a fase da lua no momento do survey ou a cor dos olhos do eleitor, seu sexo, idade, maneiras à mesa, enfim, tudo! Quais as características pertinentes?

O que estou sugerindo é que o problema técnico é simples, mas a solução é extremamente difícil, porque depende de uma teoria do comportamento eleitoral. As pessoas experientes se guiam por um punhado de idéias adquiridas a respeito dos eleitores. Uns dizem que as pessoas votam por gratidão, outros, que se vota em quem vai ganhar; para uns, a maioria vota no governo, para outros vota para protestar; uns afirmam que o povo vota com o bolso, outros que vota com a barriga.

Os estudiosos do comportamento eleitoral se guiam por um punhado de conclusões empíricas bem estabelecidas. Uns dirão que os mais velhos votam conservadoramente e, os mais jovens, ao contrário; que os mais instruídos são mais liberais, e os mais ignorantes são autoritários; que os pobres querem mudanças, e os ricos querem voltar ao passado. Tomada isoladamente cada uma dessas previsões é rigorosamente correta, mas que fazer dos jovens pobres, dos ricos jovens e instruídos e dos velhos pobres e ignorantes?

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UMA TEORIA DO VOTO

Não bastam, portanto, nem a experiência dos políticos, nem as generalizações baseadas em correlações demográficas, é preciso uma teoria do voto para indicar quais são as características que eu preciso procurar na amostra - isto é, na parcela da população estudada no survey - que sejam diretamente associadas ao ato de votar e não, características fáceis de observar, mas ligadas ao voto de modo muito indireto.

Por exemplo: a riqueza está ligada à instrução que, por sua vez, geralmente leva a uma abertura mental para idéias, o que provavelmente está. ligado a uma visão liberal do mundo e, portanto, leva o rico a votar, em determinadas circunstâncias, em candidatos progressistas. Isto parece bastar para que o nível de renda se torne uma das variáveis mais universalmente aceitas para prever o comportamento eleitoral, mas baseia-se num equívoco. No exemplo acima, não é a característica sócio-econômica que determina o voto "progressista ", mas uma certa atitude mental ou comportamento social, que geralmente estão associados a um modo de vida; o qual é mais comum entre pessoas de um certo nível de instrução; o que, por sua vez, no caso de sociedades como a nossa, depende do nível de renda.

Portanto, pode-se dizer que o voto é determinado por características sócio-econômicas como nível de renda, grau de instrução, idade, sexo, local de moradia, região geográfica, mas desde que ocorram todas essas condições estabelecendo a ligação entre, digamos nível de renda, e o comportamento social ou atitude mental que de fato determina que o eleitor vote assim ou assado. Desgraçadamente, idade, sexo, local de moradia e, em menor medida, grau de instrução e nível de renda, são facílimos de observar em um survey, mas extremamente difíceis de interpretar com rigor, enquanto o comportamento eleitoral propriamente dito - tal tipo de atitude que fará escolher tal tipo de candidato - seria facílimo de interpretar se se soubesse qual é e como observá-lo por meio de surveys.

A construção de uma tipologia de comportamento eleitoral visa precisamente dar uma resposta simples para um problema simples: se basta saber como as pessoas votam para prever quem irá vencer ou perder as eleições, por que não tentar, por meio de um survey, que autoriza predições probabilísticas com margem de erro conhecida, descobrir como e por que as pessoas votam, em vez de se ater a constatar que idade têm, quanto ganham e onde moram?

A tipologia do eleitorado, cujo primeiro esboço está sendo apresentado aqui, parte de uma descoberta bem simples, mas essencial: sabendo como votam determinados tipos de eleitor, será possível explicar por que eles escolhem determinados tipos de candidatos.

No exemplo mais simples, baseado no survey USP/Cedec/Data- Folha de março de 1990, podemos considerar três tipos de eleitor. Os que votaram em função da expectativa de desempenho do candidato praticamente consagraram, no primeiro turno, Fernando Collor (58,9%), em detrimento de todos os demais (Brizola 9,4%, Lula 18,3%, Covas 6,2% e, curiosamente, Maluf 7,2%).

Os que votaram em função de sua identificação com o candidato, dividiram-se entre Collor (37,2%) e Lula (30,2%), mas foram muito importantes para o candidato petista, pois representaram 62,7% do seu eleitorado, e apenas 43,6% dos que declararam ter votado em Collor.

Quanto aos que escolheram seu candidato por oposição aos demais, dividiram-se entre Brizola, Covas e Maluf. De fato,. eles representaram pouco mais de 10% dos eleitorados de Collor e Lula, mas constituíram uma proporção até três vezes maior dos que votaram nos outros três (respectivamente 24,7%, 32,5% e 30,0%).

No segundo turno, o perfil do eleitorado de Collor se manteve e, o de Lula, foi reforçado. Com isso, Collor praticamente dividiu com Lula a tendência do voto por identificação e por oposição, mas arrebanhou sozinho o voto por expectativa de realizações (80,3%), o que explica, desse ponto de vista, seu sucesso.



TIPOLOGIA: TROCANDO EM MIÚDOS

O primeiro passo para a construção de uma tipologia do eleitorado consiste na definição do comportamento mais próximo do ato de votar. É o que chamaremos de orientação ou estratégia do voto. Incluímos nesta categoria dois conjuntos de indicadores: um referente à razão da escolha do candidato e, o outro, referente à razão da preferência partidária.

As questões referentes à escolha do candidato e do partido foram pré-codificadas de modo a reproduzir as três orientações da ação social de acordo com A. Touraine: Identidade, Oposição e Totalidade6. Os entrevistados foram perguntados se teriam votado, no segundo turno das eleições presidenciais, principalmente porque: o candidato escolhido "prometeu realizar as melhorias (de) que o Brasil precisa; porque ele combate os inimigos do Brasil; porque ele era o candidato que melhor representa pessoas como você; ou porque queria derrotar outro candidato ".

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AÇÃO ESTRATÉGICA

O pressuposto dessas categorias é que as pessoas votam por identificação, por oposição ou por expectativa de desempenho.Isto equivale a entender o voto como uma ação racional estratégica. Que quer dizer isso? Uma ação racional estratégica contém três elementos: um ator, o objeto de sua ação e um obstáculo entre ator e objeto. Ela é estratégica porque o ator tem que medir seu objetivo não só à sua capacidade ou interesse em atingi-lo, mas também à oposição posta pelo obstáculo ou adversário. E é racional porque o ator precisa comparar o beneficio de possuir o objeto ao custo da transposição do obstáculo.

No voto por identificação, o eleitor valoriza sobretudo o ator e sua ação, em detrimento dos obstáculos existentes e da realização do objetivo. Eu voto em alguém como eu e que, portanto, pensa como eu penso, quer o que eu quero e vai agir como eu agiria. Pode ser alguém que encarne as minhas expectativas ou, ao contrário, as minhas carências; o meu sucesso ou, ao contrário, o meu fracasso. Em suma, o eleitor vota em alguém de sua profissão, de sua região, de seu partido. Essa identificação pode, portanto, ser material e imediata, ou espiritual e mediada por idéias ou instituições.

Temos, nessa categoria, o voto corporativo, o voto regional mas, também, um dos sustentáculos do voto partidário e do voto ideológico. Isto significa que se trata apenas de uma das dimensões do voto, que deve ser combinada com outras para que se possa estabelecer uma tipologia válida empiricamente.

No voto por oposição, a dimensão estratégica está mais presente, e o eleitor valoriza mais a remoção do obstáculo, ou a derrota do adversário, do que a questão de saber quem realiza a ação, ou a própria concretização do objetivo. Eu voto em quem tem os mesmos adversários que eu. Trata-se de uma identificação indireta, mediada pelo outro, e que tem um conteúdo pragmático: já que não posso obter o que quero, trato de evitar o que eu não quero. Do ponto de vista psicológico o voto por oposição ou voto negativo envolve mecanismos mais complexos do que a identificação e, do ponto de vista político, representa a passagem de mecanismos puramente psicológicos para mecanismos institucionais. Ou, para manter as categorias de Montesquieu, a passagem da paixão para a virtude.

No voto por expectativa de desempenho, o eleitor valoriza mais os resultados do que a questão de saber quem os produziu ou quais eram e como foram removidos os obstáculos porventura existentes. Eu voto em quem irá realizar o que eu espero, fazer o que eu preciso. Aqui, pouco me importa em quem eu voto, como na escolha por oposição mas, diferentemente desta, não basta saber quem não se elege, e sim o que será feito. É o que podemos chamar de voto pragmático.

Essas três categorias não são excludentes. Na prática elas se combinam, mas há sempre predominância de uma sobre as demais. Assim, pode haver uma identificação negativa ou pragmática, isto é, posso me identificar com o candidato que mais se opõe aos meus adversários, ou com aquele que mais tem chances de se eleger e trazer os benefícios que espero.

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