domingo, 30 de setembro de 2018

RHODES

Diante de Rhodes, torno a ruminar o tema da evasão, tema que o homem moderno, premido pela dura realidade político-social, procura abjurar; e que subsiste. Viajava na companhia de Daiana, não só para eludir dúvidas constringentes da vida pessoal, nacional ou universal, mas para buscar uma antena de transmissão para o mundo; e uma nova leitura de ambientes diversos, talvez. Eu começava a ''ensaiar'' cedo e a última noite havia sido quente e produtiva: me levantei disposto e desci para tomar café ; ela veio logo depois e me encheu de bons conselhos sobre meu teatro pessoal omni-abarcante e a atitude correta diante da vida. Meu telefone tocou exatamente no meio de sua explanação mais importante, e a voz de Schindler anunciou quantias assombrosas, que me fizeram voltar a pensar em Thelma Farber, uma cadela irracional e hostil, que eu conhecera em seu escritório. A única vez que tentei sentar-me ao seu lado, ela prontamente mudou-se para dois assentos adiante. ------ Tudo isto por semana para não fazer nada ? -----, indaguei, a voz rouca. --- Tudo bem (disse-me Schindler, satisfeito) Queremos você feliz. Esta é a idéia. ---, eu começava a odiar meu próprio teatro pessoal, os sentimentos expandidos de maneira desagradavelmente teatral, com muitos gestos já gastos, e as mesmas garras afiadas e falsas lágrimas e súplicas. ------ Mas não estou fazendo nada (questionei-o) Vou ficar doido. Me dê algo para escrever. ----- , não adiantou. ----- Você está indo bem. Preciso de você em caso de emergência, não para fazer o que qualquer um pode fazer. Tenho que ter um cérebro de apoio, alguém com talento real. Vá ao banco e divirta-se. ----- Mas deixe-me pelo menos escrever um Western para vocês, uma tele-novela, um ------ Não, ainda não. Faça o que está fazendo e deixe o resto comigo. ----, naquela altura da encenação, no meu script agora eu devia passar por Thelma F. sem nem ao menos olhá-la e entrar num escritório escuro. Devia ser brilhante no papel e mais nada: aprimorar frases labirínticas e desencavar jóias intelectuais e artísticas para que todos vissem como eu era gigantesco. Claro que a magia fabulosa de Rhodes também era uma ''joy for ever'', naquele momento, mas, atento transmissor, não conseguia parar de misturar meu drama intelectual ao da Grécia clássica, em prejuízo da atual: pobre, mutilada, saqueada através dos séculos, e nos últimos tempos a oscilar sob a pressão do exército, do calote, dos imigrantes ou do euro e do dólar; continuava a linhagem dos Atridas. ------- Eis a nossa Grécia reversível, caída no chão, coluna feita em fragmentos, sol de poeira, levando consigo o segredo que em vão tentáramos desvendar (.) ---, disse à Daiana; seu cabelo estava positivamente despendendo luz e eu os fixei num visão por um instante: uma beleza de Van der Weyden, às vezes de Mortimer Snerd, outras vezes parecendo uma garota de Ziegfeld. Eu ficava amplamente excitado com o roçar leve e macio dos seus joelhos quando ela andava depressa. Quando o rosto dela, com seu fino nariz arrebitado, estava maquiado, seus olhos, mais escuros e móveis em virtude do cosmético, revelavam duas coisas: que ela possuía um coração sincero, e que possuía dinamismo perceptivo até mesmo em situações de alta complexidade intelectual. Naquele momento, eu pensava no ser humano em conflito com a paisagem, o problema interno em frente aos arabescos de luz. Nas camadas de suas diversas estruturas, Rhodes conservava vestígios numerosos de glória e miséria. Grega, latina, dominada por invasores turcos, italianos, Rhodes acha-se linearmente ligada à civilização católica pela permanência aqui, durante séculos, dos Cavaleiros de São João, ordem religiosa e militar criada em Jerusalém, que entrosando-se no comércio pôde também organizar sua frota. Na época medieval os Cavaleiros dividiam-se em sete grupos ou ''línguas'': Provença, Auvergne, França, Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha. E entre os grãos-mestres da Ordem, contava-se um antepassado de Villiers de L´Isle Adam. Este escritor da minha reverência foi candidato perpétuo ao trono de Jerusalém, que na verdade sempre ocupou, embora a grande distância: de Paris. Nos dias de grande calor, Daiana punha-se de biquini sobre um colchonete de ginástica e então apareciam saudáveis tendões, braços rijos, panturrilhas e coxas laboriosas, e óculos escuros. E quando o conjunto era visto por trás, o órgão que eu adorava num contexto diverso, pequeno, fino, intrincado, carnívoro, rico em deliciosas dificuldades de acesso, salientava-se no biquini como um limbo primitivo. Depois de exercitar-se o sol, banhava-se e sentava-se com as belas pernas metidas num manto azul tomando martíni e desejando roubar meu cigarro. Amplos espaços nos recebiam em Rhodes , após as onze da manhã. A magnífica perspectiva da Rue des Chevaliers reportava-nos à pequena ONU medieval, que resumia diversas linguagens. No pátio de antigos palácios depositavam-se enormes pedras redondas, empregadas em outros tempos nos combates contra o turco vizinho; objetos referentes a espaço e tempo; invocavam-nos na sua rude geometria enquanto descobríamos o branco das mesquitas. Grupos ornamentais de buganvílias nos perseguiam por toda parte com sua excessiva familiaridade. Mas desde que conhecera a ikebana, nunca mais pude suportá-las em comícios, desordenadas, despenteadas, de camisola o dia inteiro, como Daiana com TPM. Dum recanto do jardim próximo despontavam duas neoninfas movendo as ancas. Não leram certamente Homero, mas poderiam (com certeza) figurar em seu Livro. Que grande texto formavam as duas!

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