sexta-feira, 21 de setembro de 2018

HERMETISMO E GNOSE NA REDE


O termo hermetismo é empregado para descrever a literatura hermética, atribuída ao deus grego Hermes. Essa literatura se caracteriza pela busca de conhecimentos secretos (gnósticos). Hermes é o deus da comunicação, o mensageiro, aquele que viabiliza as trocas de informações. O ciberespaço é, como o espaço sagrado de movimentação de conhecimentos e de informações, um espaço de encruzilhadas. Ele é uma casa para as "comunidades de almas" (13). Assim sendo, nós podemos traçar paralelos entre o ciberespaço e a arte hermética da memória, a criptografia e a cosmologia gnóstica (14).

O hermetismo é, desde o começo, uma técnica mágica de armazenamento e de tratamento de informações. O pensamento mágico é imerso num mundo de informações das mais diversas (nomes rituais, códigos secretos, correspondências astrológicas, signos, imagens) onde o sucesso da busca se realiza na manipulação dessas informações. O conhecimento hermético visa organizar este vasto saber através de uma arte da memória (Frances Yates) que consiste na criação de espaços imaginários, como uma vasta edificação. Essa arte da memória, ou mnemônica, se aproxima da idéia do poeta grego Simonide de Céos (556-469 aC) que pensava a memória como uma casa onde depositaríamos "souvenirs" em cada peça da casa. A recuperação dessas informações se dava por um percurso imaginário na casa imaginária. Podemos pensar a memória como uma arte de percorrer um "espaço imaginário".

A manipulação mágica das informações no hermetismo e no gnosticismo encontra um paralelo com as manipulações de dados nas redes de computadores e nos sistemas de realidade virtual, pois como um espaço hermético, o ciberespaço é um espaço da memória, um espaço imaginário povoado de imagens, de encruzilhadas, um "inner space" (Santo Agostinho)..

A arte medieval da memória, baseada na alegoria, que o poeta catalão Lull chamava de "Arbor Scientae", se estrutura enquanto un conjunto de conhecimentos agrupados em florestas de árvores, sendo a imagem das árvores uma metáfora para o crescimento da natureza e do saber. Da mesma forma, a metáfora da teia (o WEB) que liga todas as informações disponíveis no planeta, serve hoje como imagem para o ciberespaço. As interfaces gráficas são também metáforas e alegorias para a busca de informações. Manipular os ícones revela a essência da manipulação mágica. Dessa forma, a manipulação mágica do mundo, como a manipulação de dados no ciberespaço, se situam na mesma dinâmica.

A batalha atual dos "cypherpunks" (16) pela adoção de sistemas públicos de criptografia de mensagens encontra também um eco na mística da cabala e das criptografias antigas. A criptografia de mensagens era vinculada à valorização do poder não como simplesmente saber ou conhecimento, mas como código secreto, como conhecimento hermético, acessível somente aos iniciados. A quebra dos códigos secretos é a fonte do poder máximo pois o hermetismo é fundado nas técnicas de numerologia a partir das quais nós podemos desvendar mensagens esotéricas. O desenvolvimento da criptografia de massa pelos cypherpunks (assim como o de agentes) faz com que o ciberespaço seja um espaço mágico de circulação de códigos secretos e de anjos ou demônios, que aí circulam em busca de informações. Logo, não é ao acaso que McLuhan dizia que com o advento da eletricidade nós entramos num "tempo de iluminação" (17).

A representação de um espaço mágico, pleno de conexões e de estruturas multi-dimensionais é a forma de estruturação do ciberespaço. Como dizia Aggripa no seu "De Occulta Philosophia", existem três tipos de magia: uma magia natural (manipuladora das forcas da natureza), uma magia matemática (influenciada pela filosofia mística de Pitágoras) e uma magia teológica (relativa à comunicação angélica). Essa comunicação angélica se atualiza hoje com a disseminação de agentes electronicos. Ora, os agentes, programas inteligentes que circulam pelo cyberespaco em busca de informações personalizadas, são assim como elementais bem próximos da "magia teológica" de Aggripa. A gnose (do grego conhecimento, ligado ao conhecimento de Deus) é, mais do que uma transcendência mística, uma busca afinada de informações que, colocadas juntas, trazem à tona conhecimentos revelados a poucos. A gnose é assim uma técnica mágica, uma "technè" (18), como manipulação prática de informações (nomes secretos, códigos, etc.). Podemos assim, ver a gnose e o hermetismo como antecipadores do ciberespaço e da cybercultura.

O ciberespaço é para os tecnopagãos, um espaço mágico por excelência, um espaço imaginário. Eles se interessam pela ficção cientifica, pela realidade virtual e, obviamente, pelos MUDs, espaço imaginário por excelência. Como define um "tecnopagão" "viver on-line faz parte da minha pratica diária (...) é um tipo de experiência eremita, como entrar numa caverna iniciática" (20). Os tecnopagãos criam dessa forma uma rede eclética que mistura espiritualidade, tradições, hermetismo e medicina natural. Eles são herdeiros diretos dos hippies e da onda nova era. Eles incorporam esses valores à cybercultura. Entretanto, eles atualizam o movimento hippie de uma nova maneira. Eles aceitam a tecnologia, perspectiva essa oposta aos hippies (retorno à natureza, refutação do artificial, etc.), não de uma forma simplesmente conformista, mas de uma forma apropriativa. Eles implantam assim um "cyberpsicodelismo", valorizando a utilização comunitária e espiritual das novas técnicas já que essas são as ferramentas mais importantes para atingir os objetivos da Era de Aquário.

O ciberespaço, como espaço mágico por excelência, é visto como potencializador das dimensões lúdicas, eróticas e espirituais do ser humano. Nós podemos dizer que com o advento da cybercultura, estamos diante de uma verdadeira "info-gnose", um rito de passagem em direção à desmaterialização pós-industrial.

André L.M. Lemos é doutor em sociologia pela Sorbonne, professor e pesquisador do Programa de Pòs-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação (FACOM)
Postado por Matheus Dulci às 11:27
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