Comparação de Estratégia e Categorização de Políticas
Geoffrey Till inicia seu clássico livro Seapower (2009) propondo uma categorização de percepção do pensamento estratégico marítimo contemporâneo, de que os conceitos e formulações, que neste ensaio foram separados para compreensão, compõem na verdade segmentos de um mesmo objeto conceitual, cujo objetivo é idêntico, qual seja, a maximização da capacidade de poder marítimo. Não é essencial ao debate acadêmico, a divisão do objeto para sua compreensão, pelo contrário, sua composição veio a facilitar o debate nesta área. No entanto, observase que houve uma aproximação empírica das formulações políticas marítimas, ora de um, ora de outro conceito. No cenário da Guerra Fria, as formulações de EUA e URSS estiveram em seu maior período ligadas a conceitos mahanianos e corbettianos.
Em termos de formulação e aplicação política, tem-se a percepção que a constituição de forças marítimas, aqui analisadas, tenderam, em períodos específicos, a se direcionar a um segmento conceitual específico, pois frequentemente a acomodação de capacidades militares suficientes para atingir diversos objetivos estratégicos simultâneos não é possível, em virtude do alto investimento necessário, por vezes demasiado custoso. O cenário bipolar da Guerra Fria presta-se bem à explicação deste fenômeno da formulação política marítima,
pois contrapõe dois casos, das duas superpotências da época, em momentos econômicos e estratégicos distintos, o que permite a caracterização, categorização e entendimento claro do processo ocorrido.
Assim, argumenta-se que a categorização dos paradigmas conceituais estratégicos, que guiaram as formulações estratégicas à época, e que estabeleceram os precedentes para a formulação contemporânea, são, do ponto de vista político, e em termos empíricos, muito relevantes, da mesma maneira que a categorização dos paradigmas de autonomia e compartilhamento de tarefas (moderno e pós-moderno) de Till.
Do ponto de vista conceitual, o debate acadêmico sobre comando do mar e controle está pacificado em termos, desde a concepção ecclesiana de tipos e níveis de controle por área e tempo. Do ponto de vista político e empírico, este debate é presente e não constitui termos pacíficos de entendimento, justamente pela contradição supracitada. Desta forma, entende-se pertinente a categorização de vertentes conceituais estratégicas, para o estabelecimento de paradigmas que aumentem a compreensão acerca do desenvolvimento marítimo à época.
Existe uma hierarquia de prioridades estratégicas, que se correlacionam com os objetivos políticos-estratégicos marítimos, que por sua vez compõe a formulação de políticas marítimas, e por fim são transferidas à constituição da frota. Neste sentido, podemos colocar em escala os objetos acima e inferir tendências-tipo de ação, ou seja, paradigmas.
Primeiro, em termos de objetivos estratégicos, em geral os países apresentam uma hierarquia de objetivos semelhante, que no caso da estratégia marítima são, de forma ampla, em ordem crescente: proteção do território terrestre e litoral, proteção do território marítimo, proteção da área costeira marginal, projeção de poder em áreas regionais, projeção de poder em outros cenários, supremacia do mar. Em forma conceitual, correlacionam-se os conceitos marítimos: defesa terrestre, de rios e do litoral, controle do mar territorial e linhas de comunicação, controle de mar e linhas de comunicação da área costeira marginal, projeção de controle marítimo e linhas de comunicação no(s) mar(es) regional(ais), controle do mar e linhas de comunicação em águas azuis e em outros mares (cenários) e por fim, comando do mar49.
Comando do Mar aqui se refere à possibilidade de controle absoluto e ação extensiva em qualquer cenário, com ampla liberdade e sem interrupção inimiga (ECCLES, 1972 apud TILL, 1984).
Pode-se correlacionar cada possibilidade estratégica com os tipos e níveis de controle de Eccles, quais sejam: Controle Inimigo Absoluto, Controle Operacional Inimigo, Controle em Disputa, Controle Operacional, e Controle Absoluto.
Assim, ao longo do capítulo, toda a formulação política ligada ao exercício de Controle Absoluto ou Comando do Mar foi correlacionada ao conceito mahaniano, enquanto toda a formulação política vinculada à operacionalização de controle e manutenção de linhas de comunicação, como corbettiana.
Verifica-se, portanto, no cenário de Guerra Fria, uma dicotomia estratégica entre a formulação estratégica mahaniana clássica, voltada à manutenção do Controle Absoluto (Comando do Mar), e a formulação estratégica corbettiana desafiante, voltada a romper o Controle Absoluto instaurado, e possibilitar a defesa, ação pontual, e controle de áreas específicas. Desta forma, o conceito corbettiano não visa enfrentar e derrotar diretamente o Controle do Mar inimigo (como preconizado por Mahan), mas possibilitar sua ação e controle, a despeito do amplo controle do primeiro, desafiando-o, porém não o duelando.
São objetivos estratégicos diversos, definitivamente. Não estão, contudo, relacionados ou restritos a conceitos de defesa e ataque, pois em ambas as formulações estratégicas pode haver posturas, tanto táticas quanto estratégicas, ofensivas e defensivas. São, portanto, posturas estratégicas, delimitadas por capacidades, levadas a cabo com equipamentos específicos, com fins diversos e específicos. Cabe desta forma, sua categorização para ampliação e esclarecimento do debate e implicações embutidas em cada formulação estratégica. Propõe-se a delimitação da nomenclatura,50 de acordo com o objetivo primeiro e aplicação empírica da formulação estratégica. Desta forma, temos dois paradigmas, um deles ligado à supremacia marítima, ao comando do mar, ao apogeu do imperialismo, e à
conceituação mahaniana: o “Paradigma de Primazia Marítima”. O outro ligado ao desafio da hegemonia, ao controle do mar e das linhas de comunicação, e à conceituação corbettiana.
Com o estabelecimento destes paradigmas, permite-se visualizar melhor os desenvolvimentos descritos neste capítulo, e posicioná-los quanto a sua proximidade conceitual aos paradigmas. Neste aspecto, pinçamos especificamente os períodos considerados mais significativos de implementação política estratégica de EUA e URSS, neste período.
( poder-se-ia denominar os paradigmas por sua origem conceitual, Estadunidense (Mahan), e Britânico (Corbett), porém a aplicação áurea do paradigma mahaniano (inclusive descrito por este) foi pelo Império Britânico, da mesma forma que o paradigma corbettiano fora desenvolvido ao seu apogeu na União Soviética, causando confusão, e restringindo seu entendimento. Dunnigan (2003) usa, no entanto, o nome de Doutrina Russa para descrever a formulação estratégica da Guerra Fria).
Por duas razões básicas, primeiro porque tratam-se de períodos significativos de recorte temporal e uniformidade de direcionamento estratégico, e segundo porque dispor todos os direcionamentos estratégicos no espectro confundiria a percepção de que há de forma geral e por um período considerável, direcionamentos políticos marítimos específico pelos países.
Por fim, reafirma-se que ao longo da Guerra Fria é perceptível padrões de formulação e desenvolvimento de políticas marítimas, que dialogam diretamente com conceitos estratégicos específicos, formando paradigmas de formulação política marítima. Estes paradigmas são extremamente válidos para a compreensão das políticas implementadas à época, mas, além disso, prestam-se à tabulação e direcionamento de formulações de políticas marítimas atuais, que se relacionam com os mesmos aspectos e conceitos estratégicos. Dessa forma, verificou-se que no cenário da Guerra Fria, os países analisados, tendo clareza de seus objetivos estratégicos e marítimos, e das suas capacidades financeiras, puderam através destes paradigmas, buscar o desenvolvimento de capacidades militares marítimas mais efetivas e adequadas, de acordo com o paradigma e os objetivos visados.
Tendo-se por base a comparação formulada neste capítulo, torna-se interessante a análise de formulações políticas marítimas atuais, visando verificar a pertinência dos conceitos lançados e paradigmas enunciados. Somente a partir da análise de políticas atuais pode-se concluir se estes paradigmas refletem uma situação especifica de desenvolvimento estratégico da Guerra Fria, ou se podem de fato ser transpostos para o cenário multipolar, do pós-Guerra Fria e da Nova Guerra Fria.
Post-Scriptum
Apesar do tom eufórico e cosmopolita, inaugurados através do CS-21, sua operacionalização destacada a partir da edição do documento Conceito de Operações Navais59 de 2010, que apresenta uma visão mais cética e menos romântica da situação mundial e da operacionalização das missões e tarefas da Marinha dos EUA. Em parte, esta mudança está ligada aos acontecimentos da segunda metade da década: a crise internacional que penalizou sobremedida o país e a crescente percepção de novos atores emergentes e possíveis adversários no sistema internacional. De forma que o NOC 10 reafirma os conceitos inaugurados pelo CS-21, nele estão discriminadas as principais virtudes e ameaças ao controle marítimo estadunidense.
Similar aos demais documentos dos EUA a partir de 2010, como o National Security Strategy (2010b) e o Quadrennial Defense Review Report - QDR (2010c), o NOC 10 tem como foco a manutenção do comando marítimo e do acesso aos teatros navais em todo o globo. A discussão não se direciona à negação do mar dos Estados Unidos, mas à garantia de acesso e operação do país em todo o globo (USA, 2010a, 2010b, 2010c). Dessa forma o documento se detém muito mais a explicação da operacionalização das chamadas “Forças Navais Globalmente Distribuídas, sob medida para Missões, Regionalmente Concentradas”60, ou seja, relaciona-se mais amplamente com a parte de hard power do documento predecessor (CS-21), no que se refere à presença ofensiva, controle do mar, e projeção de poder. Faz-se presente uma listagem para mitigação conceitual referente aos desafios percebidos, quais sejam, de adversários de águas azuis cada vez mais capazes, armas de anti-acesso a cenários, sistemas de armas para negação de área em litorais e tecnologias para interromper capacidades espaciais e cibernéticas (EUA, 2010a).
Em virtude da preocupação do país com as capacidades de anti-acesso e negação de área (A2/AD)61 de países terceiros, o relatório quadrienal QDR prescreveu, em fevereiro de 2010, ações visando manter acesso global em qualquer cenário, como expansão da capacidade de ataque de longo alcance, desenvolvimento de Veiculo Submersível Não-Tripulado, Garantia de Acesso ao Espaço, e em especial a criação de um Conceito Conjunto de Batalha Ar-Mar62.
Apesar de a Marinha enfatizar que se trata de um conceito e não de uma estratégia, e não ser relacionada diretamente à China, é uma medida entendida largamente como uma reação dos EUA às capacidades navais assimétricas da China, tais como, submarinos, mísseis anti-navios, e navios de ataque de pequeno porte, todos estes vistos como projetados para minar as vantagens da marinha estadunidense (TILL, 2012).
A mesma concepção é usada no National Military Strategy63 de 2011, quando da descrição do ambiente estratégico: os denominados “Espaços Globais Comuns” e “Domínios Globalmente Conectados” são espaços (marítimo, aeroespacial e cibernético) onde o acesso assegurado e a liberdade de manobra são desafiados tanto por atores estatais, quanto não-estatais. Neste contexto, o documento afirma que, crescentemente os estados64 vêm desenvolvendo e adquirindo mecanismos e sistemas de negação de acesso e negação de área (especialmente capacidades de submarinos e de mísseis cruzadores), que desafiam a habilidade estadunidense de projetar poder (USA, 2011, EUA 2010b).
O debate em torno dos conceitos de Anti-Acesso e Negação de Área (A2/AD)65 já virou senso comum, especialmente a partir da metade da década de 2000, com sua inclusão e caracterização nos documentos de defesa estadunidenses. Sua definição contemporânea aparece assim descrita no Conceito de Batalha Ar-Mar 66de 2013:
“Anti-Acesso(A2): Ação destinada a retardar o deslocamento de forças aliadas para um cenário ou implicar na operação de forças à distância superior do local de conflito, do que estas normalmente prefeririam. A2 afeta o movimento para o cenário”.
“Negação de Área (AD): Ação destinada a impedir operações aliadas dentro de áreas onde um adversário não pode ou não tenha prevenido acesso. AD afeta a manobra dentro do cenário” (USA, 2013, p.2).
Por vezes, tratado como um novo conceito, A2/AD remonta na verdade ao pensamento estratégico marítimo explicitado no início da seção 2.3. De uma perspectiva histórica a concepção de Negação de Acesso ou de Área está intimamente ligada ao conceito de estabelecimento de Comando e Controle, que em última análise remontam a Mahan e Corbett. A estratégia de negar área ou acesso, encontra seu preceito conceitual na concepção mahaniana de estabelecer Comando do Mar, e negá-lo a seu inimigo. Somando a este conceito a descrição de Corbett, no que diz respeito à ruptura pontual do Comando do Mar, por área e tempo, por uma força assimetricamente menor, temos os meios de implantação de A2/AD. Ou seja, o desafio de uma força menor ao comando de uma força maior, visando não permitir o controle (ou comando) de uma área, transformar o cenário em uma “terra e ninguém” ou “mar de ninguém” (TANGREDI, 2013).
De fato, apesar da concepção teórica não ser nada recente, a percepção de sua aplicação empírica, e seu o desenvolvimento da nova alcunha, vem crescendo desde a Guerra Fria. Ao final da década de 1970 a URSS contava com uma marinha estabelecida visando principalmente a negação do uso do mar próximo ao território soviético e estabelecimento de controle seletivo de áreas e linhas de comunicação (como melhor explorado ao longo do Capítulo 3).
Na década de 1980, para conter o front central europeu em caso de uma guerra entre OTAN e Pacto de Varsóvia, os EUA desenvolveram a Estratégia Marítima67, de 1986 (HATTENFORD; PHIL; SCHWARTZ, 2008), que sinopticamente pregava a operação marítima e ataque aéreo nos flancos europeus, visando a dispersão soviética do front central, aumentando as possibilidades de defesa deste. Em uma análise posterior do documento, no Pentágono, concluiu-se que a Estratégia Marítima de 1986 acarretaria em perdas muito significativas de capacidades para os EUA, especialmente de Porta-Aviões, referidos por críticoscomo alvos fáceis para as capacidades de negação do mar soviéticas. Assim esta avaliação passou a ser conhecida como “Estudo Anti-Marinha”. Pela carga politicamente inadequada do nome conferido, este foi transformado em “AntiAcesso”, e a partir de então o novo termo foi amplamente difundido, especialmente na percepção de riscos a partir de análises das políticas estratégicas estadunidenses do pós-Guerra Fria, que necessitavam pregavam operação no território, a partir de aproximação e acesso marítimo (TANGREDI, 2013).
Desta forma chegamos à concepção moderna de A2/AD, que reflita, na verdade, uma nova roupagem da estratégia assimétrica de negação do mar, adicionando novos fatores, próprios da guerra contemporânea, quais sejam, operação conjunta de ambientes espacial, marítimo, aéreo, terrestre e cibernético, através de capacidades de alta velocidade, em especial de artilharia (principalmente mísseis cruzadores e balísticos), aeronaves, submarinos, sensores de C4ISR68, guerra cibernética, e etc. (USA, 2013). A estratégia de A2/AD é particularmente importante, pois abre caminho para potências menores desafiarem com grande capacidade a projeção de poder e Comando do Mar dos EUA, mediante aplicação de estratégias marítimas específicas, fundeando formulações políticas de acordo Ou seja, as capacidades marítimas estadunidenses estão postas de tal forma
a garantirem não só a proteção territorial dos EUA, mas especialmente voltadas a
projetar poder em todo o mundo, e garantir liberdade de acesso em todos os cenários.
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