Estas três possibilidades de abertura de mundo, a saber, a disposição, a compreensão e o discurso, embora constituintes não são, porém, assumidas de fato pelo homem, de modo que levam novamente a um encobrimento do fenômeno originário do Dasein, levam a uma queda [Verfallen], a uma decadência do dia-a-dia e ao esquecimento da verdadeira essência. Trata-se aqui dos fenômenos do falatório, da curiosidade e da ambigüidade, que levam o Dasein a se perder no ambiente público e impessoal. Dito de outra maneira, se Heidegger de um lado indica a possibilidade segundo a qual o Dasein poderia de fato assumir a sua existência e colocar a questão do ser, nos conceitos de disposição, compreensão e discurso ou interpretação, ele, de outro lado, novamente recua deste momento da abertura para indicar que de fato a tendência de encobrimento no Dasein é demasiadamente forte para que ele se torne livre. Mais uma vez vemos este traço fundamental do encobrimento e da fuga de si mesmo se fazer valer e determinar o ser-no-mundo do ser-aí (1986, p.185, §40). A questão que se põe diante desta recorrência de encobrimento é a seguinte: haverá então uma possibilidade de o ser-aí sair de sua inautenticidade?
Diante de todos estes diversos aspectos existenciais que constituem o Dasein como ser no mundo, se coloca então a questão: qual é o traço constitutivo da existência do Dasein, no qual reside a totalidade do ser da existência do homem? Heidegger responde que este traço totalizante que define a essência do ser-humano se encontra no conceito de angústia, enquanto disposição compreensiva que oferece o solo fenomenológico-hermenêutico para a apreensão explícita da totalidade originária do Dasein. A angústia não é então somente um fenômeno psicológico e ôntico, isto é, que se refere somente a um ente ou a algo dado, e sim sua dimensão é ontológica, pois nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo. Tal como em Kierkegaard, a angústia assume em Heidegger um cunho existencial essencialmente humano. Só o homem se angustia, não o animal, bem como apenas o homem existe e tem uma compreensão do ser. O rochedo é, mas não existe, o anjo é, mas não existe, somente o homem existe. A diferença entre Kierkegaard e Heidegger, porém, reside no fato de que em Kierkegaard a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, do caráter eterno de Deus, ao passo que Heidegger abandona esta perspectiva teológica e pensa a angústia apenas como fenômeno existencial da finitude humana3 .
Nesta direção, a angústia não deve ser tomada como um mero temor [Furcht], embora na obra Ser e tempo o temor também seja um existente fundamental mediante o qual o homem se encontra no mundo (Heidegger, 1989, §30) e implique, por assim dizer um estágio mais suave da angústia. O temor constitui uma disposição anímica [Befindlichkeit] que nos desvia ou nos afasta de algo que tememos e com isso ao mesmo tempo manifesta o todo do mundo, em sua estranheza e assombro, antes mesmo que possamos realizar um ato de conhecimento desse mundo. Há muito mais força de revelação do mundo no temor do que em qualquer outro tipo de acesso ao mundo, por exemplo, na alegria ou na felicidade, os quais são muito transitórios e menos marcantes. O ser-aí, segundo Heidegger, encontra-se primeiramente lançado [geworfen] no mundo em meio a estados de ânimo, nos quais tende a se desviar do mundo enquanto tal, já que tem de suportar o peso de sua existência. "O humor torna manifesto 'como a gente se sente'. Neste 'como a gente se sente' o estar disposto traz o Ser em seu estar-aí" (1986, §29, p.134). Em termos mais precisos, o medo é uma disposição central na nossa existência pelo fato de que manifesta o mundo no ato de fuga do ser-aí de si mesmo. Embora o homem tema por algo que é objetivo no mundo, o endereço último de seu temor não é o objeto fora dele, mas sim ele mesmo: o homem somente teme por algo determinado porque em última instância é ele mesmo afetado e o maior interessado, é como se o medo se voltasse para quem teme e não para o que se teme. O medo volta-se apenas aparentemente para "fora"; na verdade, ele se dirige ao nosso ser íntimo. Três são os elementos existenciais fundamentais que compõem o medo: a) o diante de que [wofür] tememos algo, que assume o caráter da ameaça. Tememos algo que nos ameaça, seja um ente manual ou a co-presença ou ausência dos outros; b) o temer [fürchten] enquanto tal, que abre para nós o mundo; c) o porquê [worum] nós tememos, que se refere ao nosso próprio estar-aí. O temor, por isso, é sempre primeiramente um fenômeno privado, embora também possamos temer por um outro, ao assumirmos o medo do outro, por exemplo, quando este não teme nada. Assim, o temer é também uma forma de estar com os outros, na medida em que tememos por alguém. Por fim, o temor pode ter variações: ele pode ser o que é assustador; pode ser o horror e também a decepção (1986, §30, p.142).
A diferença entre a angústia e o temor reside precisamente no fato de que a angústia é mais ampla que o temor. O temor é direcionado a um ente determinado da nossa existência, ao passo que o objeto da angústia, ao qual ela se dirige, é "completamente indeterminado" (1986, §30, p.186). Na angústia, enquanto disposição fundamental, não sabemos diante de que nos angustiamos; ela começa a se apresentar quando, em meio a nossas ocupações do dia-a-dia, nos sobrevém um certo tédio. Começamos a ficar fartos dos entes que estão ao nosso redor e não encontramos em nenhum ente um apoio para nos tirar deste tédio. Pelo contrário, acreditamos mesmo que temos de procurar sempre mais o contato com os entes e as coisas do mundo, para assim nos ocupar [besorgen], em vez de nos preocupar [fürsorgen], e sair desta estranha indiferença na qual nos joga o mundo. Mas, com isso, sempre afundamos mais na angústia. Nos sentimos meio estranhos na angústia. Em Que é metafísica? (texto de 1929 que explora motivos centrais de Ser e tempo) Heidegger diz: "Por esta angústia não entendemos a assaz freqüente ansiedade que, em última análise, pertence aos fenômenos do temor que com tanta facilidade se mostram" (1989b, p.39). E em Ser e tempo afirma:
O por quê a angústia se angustia não é um modo determinado de ser e uma possibilidade do ser-aí. A ameaça é ela mesma indeterminada, não chegando, portanto, a penetrar como ameaça neste ou naquele poder-ser concreto e de fato. A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo (...). o mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública (1986, §40, p.187).
Isso significa em última instância que o ser-aí se angustia pelo simples estar no mundo (idem, p.186). É a existência enquanto tal que é angustiante, de modo que nesta disposição anímica fundamental todo o mundo se torna para nós sem importância, pois não encontramos sossego em nenhum ente.
Não sendo nenhum objeto determinado, o que angustia o homem é um nada enquanto tal. No texto Que é metafísica?, já mencionado acima, a angústia é designada por Heidegger como a disposição fundamental de nossa existência que "manifesta o nada" (1989b, p.39) e implica o estágio anterior e necessário para que se possa colocar a questão do ser.
Estamos suspensos na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos entes. E por isso que, em última análise, não sou "eu" ou não é " você" que se sente estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. A angústia nos corta a palavra (idem, p.39-40).
Quando somos perguntados sobre o que nos angustia, respondemos meio de modo inconsciente: "não é nada" ou "não é nada e já vai passar". Nos angustiamos, mas não sabemos identificar o objeto de nossa angústia, o que precisamente gera em nós essa angústia. Esse "não é nada", porém, provém de um nada mais originário e fundamental que está na origem de nossa angústia. Esse nada determina a angústia. Mas na angústia não há uma apreensão ou captação do nada, muito menos a angústia, enquanto fenômeno psicológico, gera o nada como se o nada pudesse se mostrar como algo determinado, como um ente que finalmente pudesse ser "diagnosticado". Neste caso, confundir-se-ia o nada com a negação.
O nada não é a negação, mas a origem dela: negamos algo, isso ou aquilo em nossa vida, dizemos não a este ou aquele compromisso, a esta ou aquela solicitação ou pedido, renunciamos a esta ou aquela oferta, etc. porque estamos suspensos no nada fundamental e envolvidos por ele. Ou seja, é somente porque existe o nada que se coloca a negação, no sentido de que a negação é o ato humano de determinação, ou mesmo de resolução do nada. Não é porque negamos que surge o nada, mas o inverso.
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