Vemos sem dificuldade o que se perdeu nesse turbilhão de acontecimentos e conjecturas. Em todo caso, o mar de inquietude não deixa de ser plausível, já que o resultado das eleições americanas não só foi assimilado como algo imprevisto (ignorando completamente minhas advertências durante meses a fio) , mas também, segundo especialistas em política externa, como algo arriscado e contagioso. Quem quiser, agora, fazer um estudo sobre a moral de ocasião liberal, abre para si um imenso campo de trabalho na mídia americana e européia. Segundo nossos amigos, agora ''Todos os tipos de paixão política precisam ser repensados URGENTEMENTE ''. Deus nos ajude a abafar alguns risos irônicos: todas as razões, objeções e juízos de valor descartáveis precisam vir à luz sucessivamente para alimentar nossa desconfiança sobre a falta de julgamento dos eleitores americanos e o colorido que ele deu ao mundo ao refletir o ''humour'' da época e ameaçar a Europa com seu contágio . O risco político cumpriu sua promessa, e iniciou a escritura de uma ''história do castigo'' político mundial. Ao mesmo tempo algo foi ganho com isso: mais facilidade para recolocarmos ''em causa '' o processo de despersonalização total do mapa político americano. Ao transformar o anti-intelectualismo em arma política eficaz, uma identidade cultural provisória pôde ser reivindicada pelos republicanos durante as eleições, e até mesmo o fato de Donald Trump ser o candidato presidencial passou a sugerir que o papel dos Estados Unidos na ordem mundial passaria por um ''choque de gestão'' . Um terremoto não apenas nos poderes econômicos e militares, mas nos valores que representa, proeza ainda mais difícil, em se tratando de instituições democráticas tão sólidas. Uma multiplicação dos pontos de vista subjetivos substituiu a uniformidade de opiniões durante a transição Algumas explosões de micro-diferenças individuais ocuparam o lugar da apreensão generalizada de que, longe de tornar a América ''Grande de novo'', o novo Presidente poderia ''Esfacelar o mundo'', no rastro do vazio deixado pela ortodoxia da política monetária e alguns fenômenos produzidos pelo twitter. Bricolage geopolítica virtual ''à la carte'' . Em todo caso, a moral de ocasião liberal não é patenteada pelos Democratas e todo mundo faz uso dela, aqui e ali. A moda política é um self-service onde representantes eleitos muitas vezes se confeccionam um universo de apologias e analogias mais ou menos sob medida, feito de empréstimos variados, de reações a isto e aquilo. Mas seria melhor que alguns censores não se afundassem num verbalismo radical-xique incompreensível para o povo americano antes da hora. Tudo o que os americanos até agora consideraram como suas ''condições para a existência feliz'' , e toda a razão e superstição contidas nisso ----- tudo isso foi certamente pesquisado como um subproduto do neuro-marketing político, durante as eleições presidenciais, tanto por um , quanto por outro lado, e só a observação do impulso político alcançado de acordo com a moral de ocasião, neste ou naquele momento, já daria bastante trabalho para os mais laboriosos observadores, entre os quais nos incluímos. Nem toda uma geração de eruditos trabalhando juntos dia e noite, de forma planejada, seria capaz de esgotar o material psíquico secretado pela confusão de climas morais e políticos do mundo, a partir da América. Até agora, a Rússia se limitou a construir uma singela torre de observação ciclópica , que na sua oficina forjam os raios usados por Zeus.
K.M.
Post Scriptum
Zonas de fronteiras psíquicas.
Meu incomparável conhecimento da caricatura antiga abriu-me bastante cedo na vida o caminho para a obra de Toulouse-Lautrec, de Heartfield e George Grosz. Minha paixão por Daumier levou-me diretamente à Slevogt,cuja visão de D. Quixote me pareceu a única à altura de Daumier. Alguns estudos de cerâmica que realizei na adolescência deram-me uma autoridade incomparável para apoiar o aspecto visual da minha literatura na obra de Emil Pottner . E foi (sem dúvida) o colecionador que havia em mim que ensinou ao teórico a apreender muita coisa a que meu próprio tempo me barrava o acesso. O colecionador que entrou clandestinamente por zonas de fronteiras psíquicas ---- o retrato deformado ,ou mesmo a representação pornográfica, esse impulso subterrâneo tão poderoso em mim -----nas quais uma série de chavões da história da arte tradicional mais cedo ou mais tarde fazem fracassar. Praticamente desde as primeiras linhas que escrevi, não é possível encontrar aqueles conceitos que haviam servido à burguesia ocidental para desenvolver sua concepção de arte: nem a bela aparência, nem a harmonia, nem a unidade do diverso. Encontramos aqui a mesma auto-afirmação excludente do colecionador, em sua WUNDERKAMMER , decidido a afastar-se tanto do classicismo quanto do sofrível sentido de humor da arte popular. E isto é algo que evidencia-se, inclusive , de forma até drástica e brusca , na minha forma de relacionar-me com a Antiguidade. A nova forma da beleza que meus diversos tipos de registro anunciam nos seus resultados finais é ''infinitamente maior que a da Antiguidade'' , pois se esta era apenas manifestação suprema da ''forma animal'' , a nova beleza que emerge da minha concepção de arte será preenchida cm um grandioso conteúdo intelectual e anímico. Até mesmo aquela escala de valores tão refinada, que na época de Winckelman e Goethe determinara uma certa relação com a obra de arte , perde completamente sua influência aqui .Quando os ''disiecta membra '' a que o idealismo chama '' representação histórica '' , por um lado , e ''homenagem celebratória'' , por outro, se transformam em um só, ainda assim as exigências da minha poesia anunciam a superação também disso. Um feito poético cujo objeto não está constituído por um novelo de pura facticidade , como nas derrapagens filosóficas do concretismo , mas por um conjunto determinado de fios que representam a inter-penetração de dois planos em um só : do arquétipo imemorial e eterno no presente informativo mais vertiginoso.
K.M.
Post Scriptum
Sabemos que a pintura em madeira mais antiga punha o homem a morar em espaços pouco maiores que guaritas . Os pintores do s começos do Renascimento foram os primeiros a pintarem espaços interiores em que as figuras representadas têm ''espaço de ação''. Foi exatamente isto que tornou a invenção da perspectiva por Ucello tão impressionante para os contemporâneos e para ele próprio . A pintura, que a partir de então passou a oferecer suas criações mais do que nunca aos homens no lugar em que viviam (em vez de, como antes , as fazer para lugares de oração), deu-lhes novos modelos de habitação, e não se cansou, desde então, de erguer diante deles perspectivas de grandes moradias . O Renascimento tardio, muito mais sóbrio na representação do interior propriamente dito,continuou a seguir essa tendência.
Em '' Die Klassiche Kunst. Eine Einfuhrung in die italienische Renaissance '' , Heinrich Wolfflin diz que ''O Cinquecento tem uma sensibilidade particularmente desenvolvida para a relação entre o homem e a obra arquitetônica, para a ressonância de um belo espaço '', e que ''é quase impossível conceber a existência humana sem o enquadramento e a fundamentação arquitetônicas''.
K.M.
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