segunda-feira, 8 de outubro de 2018

A visão tecnológica de mundo de Martin Heidegger


Filosofia da Tecnologia – Breve introdução à tradição transcendentalista (Parte 01)

A visão tecnológica de mundo de Martin Heidegger

Por Breno Perdigão

Martin Heidegger (1889-1976) nasceu em Messkirch, na Alemanha, em 26 de setembro e veio a óbito no dia 26 de maio, aos 86 anos. Ele estava entre os pensadores mais importantes do século XX e apesar de não ser listado como um filósofo da tecnologia, sua importância para a ciência, tecnologia e ética foi de grande valor para o desenvolvimento posterior deste campo e, segundo o professor Mark Blitz [1], sua análise tornou-se um texto básico para aqueles preocupados com o poder e o domínio da tecnologia contemporânea. Direta e indiretamente, o pensamento de Heidegger influenciou diversos pensadores e ativistas que, em nome do meio ambiente, se opuseram à crescente industrialização e mecanização.



Dentre suas muitas contribuições, podemos fazer menção de três ideias fundamentais da visão tecnológica de mundo de Heidegger que nos auxiliarão na formulação de uma resposta clara para a questão: o que é tecnologia de acordo com Heidegger? Para este notável pensador, a tecnologia era a chave para entender nosso tempo atual. Em seu livro “Die Frage nach der Technik”, apresentado nas primeiras versões da década de 1940 e publicado em 1954 (tradução inglesa, The Question about Technology, 1977), ele apresenta três respostas principais para essa questão que serão abordadas nesta breve introdução.



A Tecnologia “não é um instrumento”

Vamos iniciar olhando para a primeira afirmação de Heidegger, qual seja, “a tecnologia não é um instrumento”. Para ele, ver as tecnologias como apenas um instrumento neutro já é uma maneira bastante tecnológica de olhar o mundo. Em última análise, a tecnologia não é um instrumento, mas é uma maneira de entender o mundo.



O fato de vermos as coisas como um instrumento neutro, ou de forma instrumental revela uma maneira bastante tecnológica de olhar o mundo, ou seja, já pensamos em termos de exercer poder sobre a natureza. A tecnologia não pode ser considerada um instrumento, mas uma maneira de entender o mundo. Uma boa maneira de compreender essa diferença é olharmos o exemplo clássico que Heidegger fornece sobre a geração de energia.



Enquanto um moinho de vento depende sempre da existência de vento para o seu funcionamento, não forçando o mesmo a se mostrar como fornecedor de energia, uma hidrelétrica barra o curso das águas e põe o rio à disposição da criação de eletricidade, forçando-o a funcionar como um fornecedor de energia. Construímos hidrelétricas porque interpretamos o rio como algo tecnológico, algo como uma matéria-prima pronta para manipulação. [1]



Neste primeiro ponto, Heidegger apresenta a essência da tecnologia como a maneira pela qual as coisas se apresentam no mundo contemporâneo, ou seja, como uma “reserva permanente” a ser manipulada ou rearranjada conforme aprouver o homem. [2] O ser humano passa a se aproximar de todas as coisas ao considerar cada uma delas um “recurso” à disposição do próprio homem. Este fato se estende até o ponto em que os próprios seres humanos são vistos como recursos a serem manipulados.



Esse desafio ocorre no sentido de que a energia oculta na natureza é desbloqueada, o que é desbloqueado é transformado, o que é transformado é armazenado, o que é armazenado, por sua vez, é distribuído, e o que é distribuído é reajustado. Desbloquear, transformar, armazenar, distribuir e reajustar são sempre maneiras de se revelar. [3]



E o que Heidegger quer dizer quando diz que a tecnologia é “uma maneira de revelar”? De acordo com professor Peter-Paul Verbeek, ao entrar em uma relação particular com a realidade, a mesma é “revelada” de uma maneira específica. E é exatamente neste ponto que entra a tecnologia, já que ela é a maneira de revelar que caracteriza nosso tempo. A tecnologia incorpora uma maneira particular de revelar o mundo: revelação em que os humanos assumem o poder sobre a realidade. “Enquanto os antigos gregos vivenciavam a “criação” de algo como “ajudando a criar algo” – como Heidegger explica ao analisar textos e palavras clássicas -, a tecnologia moderna é antes um “forçar-se a ser”. A tecnologia revela o mundo como matéria-prima disponível para produção e manipulação. ” [2]



A Tecnologia “não é uma atividade humana”

Este segundo ponto do pensamento de Martin Heidegger pode soar um pouco intrigante devido ao fato de que nos parece óbvio que todos os sistemas e dispositivos tecnológicos em nosso mundo são o resultado de ações humanas. A tecnologia “não é uma atividade humana”, mas se desenvolve além do controle humano. [3] É necessário recordarmos que, como vimos, a tecnologia é uma maneira de entender o mundo e, desta forma, Heidegger defende que nós não decidimos como entendemos este mundo ao nosso redor. Vivemos em uma era específica, onde existem “estruturas de interpretação que não escolhemos”.  Heidegger nos permite pensar em como a tecnologia nos ajuda a interpretar o mundo.



Val Dusek, autor de importantes livros no campo da filosofia da tecnologia, defende que, para Heidegger, “a tecnologia moderna define a época presente da humanidade exatamente como a religião definia a orientação para o mundo da Idade Média” e, a partir disto, como vimos anteriormente, “toda a natureza torna-se uma ‘reserva de prontidão [ou reserva permanente]’, uma fonte de recursos, em particular uma fonte de energia. ” [4]



Segundo Heidegger, existe algo de errado com a moderna cultura tecnológica em que vivemos hoje, em que a realidade só pode estar presente como matéria-prima (como uma “reserva permanente”). Este estado de coisas não foi provocado pelos humanos, antes, nossa compreensão do mundo – ou do “ser”, do que significa “ser” – se desenvolve através dos tempos. “O homem não controla esse evento, mas em vez disso é controlado por ele” [5]. Em nossa atual conjuntura, o “ser” tem o caráter de uma “estrutura” tecnológica, da qual os humanos abordam o mundo de maneira dominante e controladora. “O mundo dos artefatos modernos sempre está preso a, ou em disposição de manipular, consumir ou descartar. ” [6]



A Tecnologia é “o maior perigo”

A terceira alegação de Heidegger é que a tecnologia é “o maior perigo”, conduzindo-nos a ver o mundo através apenas do pensamento tecnológico. Ela não é simplesmente perigosa, mas é considerada o maior perigo primeiramente porque podemos ver a nós mesmos, e nossos semelhantes, como matéria-prima a ser manipulada. A partir disso, deixamos de ver o homem como imagem e semelhança de Deus. Perceba que já estamos falando de “recursos humanos”.



Mas o mais importante, segundo a visão de Heidegger, é a constatação de que não há escapatória diante da vontade tecnológica de poder e controle. O próprio ato de querermos avançar para uma nova interpretação do ser é uma operação ou interação tecnológica. Nas palavras de Verbeek, “manipularíamos nossa manipulação, exercendo poder sobre nossa maneira de exercer o poder. ” [2]. Isto apenas nos leva a confirmar a interpretação tecnológica do ser nos parâmetros heideggerianos. A única saída deste dilema, para Heidegger é “a vontade de não querer”. “Precisamos abrir a possibilidade de confiar em tecnologias sem nos escravizar e vê-las como manifestações de uma compreensão do ser.”



“Toda tentativa de desenvolver uma nova compreensão do mundo é uma forma de exercer poder sobre a morte sobre a posição do mundo. Por isso, tentamos superar a vontade de poder, exercendo poder sobre a vontade de poder. Toda tentativa de sair dele nos joga de volta para ela. Toda tentativa de superar a vontade de poder só mostra quão profunda é essa vontade de poder. Não há escapatória. Não há escapatória. A única saída, diz Heidegger, pode ser uma atitude do que você chamaria de liberdade, dizendo sim e não ao mesmo tempo. ” [2]



Diante da incapacidade humana de poder “influir sobre esta engrenagem do curso inevitável das coisas”, em uma entrevista concedida à revista alemã Der Spiegel em 23 de setembro de 1966, Heidegger pronuncia a famosa frase “Já só um deus nos pode ainda salvar”. O trabalho não busca simplesmente o desenvolvimento de uma nova tecnologia para solucionar os problemas dos projetos de engenharia, mas vê o problema como metafísico.



Por fim, o fragmento a seguir apresenta a análise de Heidegger sobre o que é a tecnologia e como ela está posicionada em nosso mundo:



“Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentaremos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfizercemos-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem liberdade, atados a ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos apaixonadamente. Mas, de modo mais triste, estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro, pois essa representação, à qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica. ” [3]



Referências

[1] Mitcham, Carl, organizador. Encyclopedia of science, technology, and ethics. Macmillan Reference USA, 2005.

[2] Verbeek, Peter-Paul. The technological view of the world of Martin Heidegger. 2017. Aula ministrada no Curso Philosophy of Technology and Design da Universidade Técnica de Delft.

[3] Heidegger, Martin. “The question concerning technology (W. Lovitt, Trans.) The question concerning technology: and other essas.” (1977).

[4] Dusek, Val. Filosofia da tecnologia. Loyola, 2009.

[5] Verkerk, Maarten J. et al. Filosofia da Tecnologia: Uma Introdução. 1. ed. Viçosa, Minas Gerais: Ultimato, 2018.

[6] Mitcham, Carl, e Manuel Medina. ¿Qué es la filosofía de la tecnología? Anthropos : Universidad del País Vasco, 1989.

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