terça-feira, 23 de outubro de 2018

FIO ARACNÍDEO


------ Considere por um instante (eu disse à Julia) esses milhares de obras-primas encalhadas sobre tantas prateleiras do mundo como destroços de uma cultura arruinada: é uma quantidade incalculável que ninguém lê; túmulos de signos luminosos, murados para sempre no silêncio da indiferença... é uma honra para mim o papel que assumi, de reciclá-los (: se tudo já foi escrito, para que recomeçar (?), para que buscar novas idéias (?), basta recortar, fundir, transubstanciar, numa palavra, servir-se (.) ------, de fato, na minha suíte, naquela tarde, não havia a menor pressa e podia-se pensar no quiséssemos: minha obra-prima já estava concluída, e a vagina de Julia já estava casada com meu falo para sempre, desde o passado, ainda que nossos corpos tenham seguido caminhos tão diferentes.  De manhã, no dia seguinte, estávamos frente a frente na cama, agindo como se fôssemos independentes, como se meu pau e sua xota existissem apenas para fazer água. A noite tinha sido agitada , e agora, dormindo profundamente,  ela nem ligava para as sacudidas que eu lhe dava; eu estava com uma daquelas ereções estúpidas e insensíveis como a do remendo literario da véspera. Com a ponta dos dedos, eu movia Julia à vontade: devo dar uma esguichada dentro dela e deixá-la (?), ela está abrindo e fechando como uma flor. A flor diz: fique ái, meu garotão! A flor fala como  uma esponja bêbada. A flor diz: quero acalentar esse pedaço de carne até acordar. Permaneci imóvel, mal respirando, enquanto ela ficava cada vez mais perto de gozar. Segundos antes de gozar, ela pararia repentinamente, fodendo lentamente meu pau um pouco mais, subindo e descendo, siriricando por uns instantes. Com os dentes cerrados, Julia passou a fazer uns ruídos incríveis, seguidos por sons faisanescos tão soberbos que eu não sabia dizer como tinha conseguido viver sem eles até então. Enquanto eu obedecia, estudei todos os ângulos de sua expressão de clímax, tentando registrar seu pico transitório em minha mente. O corpo dela perdendo nome e endereço, querendo cortar o meu pau e conservá-lo dentro dela para sempre, como um canguru. Julia não era apenas aquele corpo deitado de bunda para o céu, o vítima indefesa de uma cobra no meio do mato. Jato de gotas brancas num gramado verdejante. Essas adoráveis pombinhas, que é como ela as via, estão lhe dizendo, à sua maneira arrulhante, a criatura graciosa e dadivosa que ela é; a massa branca é apenas bolo de anjo: se ela virasse um pouco mais os olhos enquanto está abençoando as pombinhas de Deus, veria a si mesma apenas como uma rapariga desavergonhada oferecendo a parte traseiro do seu corpo a um homem nu, como uma égua no campo. Mas ela não quer pensar nessa rapariga, especialmente numa postura tão equina; quer conservar a grama verdejante e a sombrinha rosa aberta. Julia conversava com muita elegância, agora, como se estivesse toda de branco, com os sinos da igreja tangendo: estamos em nosso cantinho privado do universo, uma criatura com aparência de noviça recitando os Salmos no Sol. Meu pau ficou agora macio e plumoso, tão cálido de amor, um pedaço de sangue embrulhado em veludo. O Sol brilha fortemente lá fora e (como é bom: estár aqui aquecendo suas frias partes traseiras: as pombas gotejantes no meio de suas pernas, asas roçando levemente o arco de mármore (de um lado, se o vórtice cessou, de outro, um movimento perdura, marcado mais insistentemente por uma dupla pancada que ainda não, ou jamais, alcança sua própria noção, e da qual um roçagar do momento, tal como deveria verificar-se, preenche de novo confusamente o vórtice ou sua cessação: ------ Não vou te perguntar nada, K (Julia disse) porque você poderia mentir na minha frente, como já fez muitas vezes antes, mas poderei te dizer se estou certa ou errada na próxima vez que te encontrar: você ainda ama sua ex-mulher (?) não responda(.) -, ela riu na minha cara. - Qual delas (?), a irmã de uma delas é uma beleza (eu rolava a cabeça de um lado para o outro. ------ Como ela se chama (?) -, perguntou Julia. ------ Fernanda (.) a primeira vez que vi ela de biquini quase gozei dentro da piscina do meu sogro, em Varginha (.)-----, respondi, relapso, como se a queda total do momento , que foi a única pancada nas portas do túmulo após a ejaculação, não abafasse a visitante e sua sombra de perguntas: a mais ou menos dez centímetros de sua vala aberta eu observava meu dedo indicador, que se misturava ao seu nervo cor-de-rosa -olhando-a de --- não, gradual pressão daquilo que não se percebia, embora não explicasse a evasão certa num intervalo... que tipo de ternura, ó criança (eu me perguntava mais tarde: que palavras inesperadamente sábias ou amistosas, que bater de asas voltariam a alcançar meu coração escondido daquele anjo, distante da minha selva, da minha raça, do meu céu (?), não foi difícil que meditando no hálito que havia roçado por ela, eu baixasse meus braços (alguma dúvida última: de passagem, agitando minha próprias asas; mas a fricção familiar e contínua de uma idade superior me tornava terrivelmente pensativo, com as mãos nos bolsos da calça jeans, chutando distraidamente alguma pedrinha pela Avenida Oceânica... rimo aonde (?) a que solidões iniciáticas (?), das quais mais de um gênio foi cioso de recolher toda a poeira secular em seu sepulcro, para mirar em si mesmo aquele nojo pela literatura, que cada dia se repetia com mais força em mim, e para que nenhuma suspeita remontasse ao fio aracnídeo; para que a derradeira sombra se mirasse em meu próprio ser e reconhecesse na turba de minhas aspirações a estrela nacarada de uma nebulosa ciência oculta.  Voltei a pensar em Nietzsche: ''Talvez se pudesse chegar a escrever algo verdadeiro quando essa repugnância pelos literatos e suas palavras moles chegasse a um grau irresistível; repugnância de verdade, dessas que podem provocar um jato de vômito com apenas ver um desses coquetéis de artistas que falam do amor e da morte enquanto disputam o resultado do prêmio Jabuti. Schopenhauer falava da Beleza com um ardor melancólico --- porque, em última análise (?) Porquê vê nela uma ponte na qual se chega mais longe... ela é, para ele, a redenção da ''vontade'' por instantes ------ ela seduz à redenção para sempre... ele a louva, em especial, como redentora do ''foco da vontade'', da sexualidade , como aderido ao dharma passivo do Buda. QUE SANTO ESQUISITO(!) ------ Alguém te contradiz, Arthur Schopenhauer... e temo que seja a natureza (.) Para que (afinal) existe beleza no som, na cor, no cheiro e no movimento rítmico da natureza (?) O que dissemina a Beleza (?) Felizmente, o divino Platão também te contradiz, sustenta outra tese: a de que todo Beleza incita à procriação (de que isso é justamente o ''proprium'' de seu efeito, do que há de mais sensual ao que há de mais espiritual.

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