quinta-feira, 4 de outubro de 2018
Algumas considerações sobre o discurso carnavalizado
Por um debate carnavalizado (!)
Algumas considerações sobre o discurso carnavalizado
A ironia como estratégia comunicativa e argumentativa / Irony
as a Communicative and Argumentative Strategy
Ida Lucia Machado
Analisar alguns enunciados de Charles Aznavour, artista francês – compositor, poeta, cantor, dançarino e também ator – poderá parecer estranho para os puristas. Sentimo-nos na obrigação de explicar a razão pela qual seu livro – qualificado duplamente como document e mémoires em sua capa - nos atraiu. São três as razões.
A primeira diz respeito ao conceito de literatura carnavalizada vindo de Bakhtin e amplamente explicado em seu livro L’Oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance. Neste livro, o autor explica que não é o carnaval em si que se constitui como fato literário: são as misturas de registros discursivos, o não-respeito por certas regras estabelecidas, a insolência em dizer baixinho, ou em alto e bom tom, verdades que seria preferível esconder. Sabe-se que para que a frágil harmonia social seja conservada é melhor que certas coisas não sejam ditas, que certos fatos sejam dissimulados. A literatura carnavalizada, aquela que permite a inclusão da ironia e da paródia em seu âmago, irá inevitavelmente romper esse equilíbrio, essa harmonia ou fazê-lo ao menos estremecer um pouco.
Bakhtin faz uma leitura da obra de Rabelais como ninguém no mundo havia até então realizado. Ele considera o modo de escrever do autor francês como ligado à polifonia e ao dialogismo, representados por uma obra aberta, pois atravessada de significados outros que os das palavras impressas, uma obra repleta de “vozes”, como diz Bakhtin, ou de “discursos” como diríamos hoje: o discurso jurídico, o discurso religioso, o discurso dos marginais, o discurso dos poderosos, etc., todos se encontrando e se afrontando... O discurso refinado dos literatos, por exemplo, é confrontado com o discurso grosseiro (repleto de palavrões) do povo rude. Bakhtin mostra a grande metáfora do homem renascentista face aos novos mundos que estavam sendo descobertos, face aos próprios mistérios da vida: nascer, viver, morrer, ser enterrado, voltar sob a forma de uma plantinha ou de qualquer outra coisa... Para tanto, ele traça um vertiginoso círculo, que parte da cabeça (que seria a parte “nobre” do homem) e vai até suas partes “menos nobres”, ou seja, os órgãos que comandam as necessidades vitais do ser humano e que parecem ultrapassar o próprio corpo: nariz, seios, barriga, nádegas, órgãos genitais, etc. Desse modo, o homem que come, bebe, vomita, evacua, urina faz com que seu corpo se volte para a terra em um movimento circular. E depois ele renasce: a espécie humana continua o ciclo entre a vida e a morte.
E o Carnaval nisso tudo? Ora, no final da Idade Média e durante o Renascimento, o carnaval desempenhou um papel simbólico e fundamental na vida das pessoas. O povo, em geral, vivia muito pouco na época, por causa das guerras, fome, doenças. A morte não era vista com tanto terror como a vemos agora. Ela fazia parte da vida. A morte na Idade Média era algo corriqueiro. Em Paris, em séculos passados, o povo ia para a Place des Grèves para assistir o “espetáculo” do enforcamento dos condenados. Tudo isso pode parecer bárbaro, mas o pensamento da Idade Média e do Renascimento francês face ao mistério da vida e da morte era bem outro que o nosso.
Mas, voltemos ao carnaval, que representava um papel simbólico na vida das pessoas. Um dos estudiosos de Bakhtin afirma o seguinte:
O principio carnavalesco abole as hierarquias e cria outra vida, livre das regras e restrições convencionais. Durante o carnaval, tudo o que é marginalizado é excluído, o insano, o escandaloso, o aleatório se apropria do centro, numa explosão libertadora. O princípio corpóreo material – fome, sede, defecação, copulação – torna-se uma força positivamente corrosiva, e o riso festivo celebra uma vitória simbólica contra a morte, sobre tudo o que é considerado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe (STAM, 1992, p.43).
Na reflexão que Stam propõe a partir da obra de Bakhtin, deve-se notar que o homem só é ele mesmo ao abandonar os dogmas que o impedem de ser livre e entre eles tudo o que lhe foi imposto pela lei, pela religião, por todas as instituições sacrossantas da vida em sociedade. Nesse caso, é natural que Bakhtin considere Rabelais como umaespécie de rebelde ou de subversivo no sentido positivo da palavra. Com sua escrita tão peculiar Rabelais transpõe para a literatura o espírito do carnaval, que nada mais é, segundo Bakhtin: “[...] a própria vida... transformada de acordo com um determinado modelo de ludismo, de brincadeira” (BAKHTIN, apud STAM, p.43).
Enfim, o carnaval é o lugar por excelência para as improvisações, para as trocas linguageiras e para as réplicas. Os discursos ali gerados ao penetrar em uma obra séria, onde impera um tipo de linguagem tido como oficial, desviarão tal obra - no bom sentido!- de seus objetivos ou fins primeiros ou então reduzirão a importância destes. A nosso ver, os discursos não-sérios que a ironia pode causar são carnavalescos já que são detentores do poder de significar não significando... São discursos onde é estabelecido um jogo com as palavras, capazes de subverter ou até de transgredir normas estabelecidas na vida em sociedade.
Não é que a ironia seja destituída do riso, mesmo se este for mais para perverso que para jovial. O riso irônico é profundamente ambivalente, pois ele reúne em si a morte e a ressurreição. É um riso ligado a uma visão do mundo. O que nos fascina na obra de Bakhtin (1970b) é a profunda ligação que ele estabelece entre o social e a História.
Sabemos que existem várias teorias de análise de discursos e todas são válidas. Mas, para nós, aquela que mais conta, pois nos permite abordar todo o sistema transgressivo ligado ao uso do fenômeno irônico, é uma teoria onde houve o toque mágico do Mestre russo: estamos aqui nos referindo à leitura que fazemos da teoria semiolinguística de Patrick Charaudeau.
Melhor explicando: Bakhtin viu no riso transgressivo do carnaval uma ponte que levava a uma literatura carnavalizada; nós vemos nessa festa ou no que ela representa outra ponte que nos permite escolher a teoria analítico-discursiva acima citada e transgredir alegremente alguns de seus conceitos, ou dar mais ênfase a uns que a outros, enfim, buscar, a partir dessa teoria, novas soluções para os enigmas que os usos linguageiros parecem multiplicar com a passagem do tempo. E assim, podemos dizer Bakhtiniana, São Paulo, Número 9 (1): 108-128, Jan./Jul. 2014. que a pesquisa de Bakhtin sobre o carnaval e sobre a palavra carnavalizada ao assumir uma grande dimensão antropológica combina com o nosso olhar analítico-discursivo.
(...)
Por estratégia comunicativa, dito de forma bem simplificada, compreendemos a vasta rede de estratégias que são colocadas em prática nos usos linguageiros e nos diferentes discursos, para fazer passar ideias que têm como objetivo modificar os julgamentos de alguém sobre alguma coisa ou pelo menos mostrar a este alguém que o locutor tem restrições a propósito do alvo da ironia. Mas, talvez por certa elegância de espírito, tal sujeito-comunicativo prefere dizer isso de modo não muito evidente. No âmbito de sua construção irônica, ao examinar alguns excertos escolhidos aleatoriamente para o artigo, notamos alguns procedimentos que se repetem. Para começar, todos os excertos são polifônicos. A voz de um “locutor”, como diria Ducrot (1984, p.193), sustenta o enunciado como um todo, mas nele deixa entrar outras opiniões discordantes da sua. No entanto, esse embate de vozes não é incoerente, pois a ironia deixa sempre pistas mais ou menos evidentes, que revelam seu uso, ao menos para grande parte dos leitores.
Abrimos aqui um parêntese para melhor explicar a presença de Ducrot neste artigo. Segundo suas próprias palavras, Ducrot (1984, p.171) se inspirou em Bakhtin para fazer uma “releitura”9
de sua teoria da polifonia. Como Bakhtin havia aplicado a teoria em textos, ele, Ducrot, a diversificaria de certo modo, ao aplicá-la em enunciados.
Em nossa opinião, o ponto chave de tal “releitura” estaria na divisão que o linguista (1984, p.199-200) fez entre “locutor” e “enunciador” (ou “enunciadores”). Resumindo bem e seguindo o que diz Machado (1991, p.17-18), para Ducrot o “locutor” seria a entidade responsável pelo enunciado como um todo; o “enunciador”, por sua vez, seria a entidade colocada em cena pelo locutor, uma espécie de corresponsável do enunciado em questão. Haveria assim uma distribuição de papéis no enunciado polifônico: uns apresentariam, mas não assumiriam o que apresentam, outros assumiriam, mas não seriam os “donos” oficiais do enunciado. Cabe lembrar ainda que, embora Ducrot reconheça a existência de um sujeito-empírico, produtor do enunciado, prefere não analisá-lo no âmbito de sua pragmática linguística. Ora, no entanto, tal sujeito será considerado por outros, como o linguista e analista do discurso Charaudeau e isso desde a divulgação de sua teoria semiolinguística em 1983. Fechamos aqui o parêntese, não sem lembrar, no entanto, que mesmo achando importante a proposta do estudo da polifonia no seio do enunciado, não adotaremos a nomenclatura proposta por Ducrot, preferindo a ela o termo “vozes” de Bakhtin, já que este é mais amplo e evitará possíveis confusões terminológicas.
Examinemos a seguir os excertos do livro de Aznavour. Eles fazem parte ou estão ligados a sua narrativa de vida e, assim, neles o sujeito-narrador é uma figura importante. Como já mencionado, em nossas análises iremos nos referir a ele como sujeito-narrador ou sujeito-irônico, já que ambos se alternam ou se completam, na tentativa de mostrar que esses sujeitos do mundo de papel são diferentes do sujeito- comunicante que assina o livro, Charles Aznavour, ser do mundo real, sujeito empírico, com sua música, vida, família, amigos, dificuldades e sucessos.
Comecemos. Eis o excerto (i):
[...] iniciei seriamente este trabalho, lembrando o que um dia Harold Robbins, escritor americano que publica e vende muito me dissera: “O público ama as histórias de sucesso, sobretudo se nelas houver muita briga e se os começos de carreira forem difíceis” (AZNAVOUR, 2003, p.12)10 .
O sujeito-narrador afirma que começou seu trabalho de escritura da forma mais séria possível. Mas, logo em seguida, ele chama para este mesmo enunciado outra voz, a do escritor Harold Robbins que, colocada entre aspas, diz algo que entra em contradição com a veracidade de seu trabalho: a voz de Robbins lhe dá uma receita pronta e acabada para garantir o sucesso de seu livro. Ora, o movimento (sério) de escrita da narrativa de vida de Aznavour é assim desvirtuado pela inclusão (não-séria) dessa receita, que é de uma simplicidade bem banal: o público ama livros onde são expostos sentimentos primários. O sujeito-irônico parece desafiar o leitor: “E eu? Vocês acham que farei isso ou não?”
Examinemos agora o caso do excerto (ii): “Sempre nos pedem: conte-nos sua vida, suas tristezas, seu sucesso, seus encontros e, sobretudo, suas aventuras amorosas.
E por que não o modo como agimos na cama?” (AZNAVOUR, 2003, p.7)11 A transgressão comandada pelo sujeito-irônico entra em ação no final do excerto, com uma pergunta direta e ligeiramente agressiva endereçada a todos aqueles que pedem a Aznavour, sujeito-empírico, detalhes picantes sobre sua vida: jornalistas, editores...
Notamos em (ii) uma divisão entre a voz do sujeito-narrador (sério) e a do sujeitoirônico.
O primeiro não esconde sua desconfiança face aos assédios jornalísticos e editoriais. Ele duvida da seriedade das vozes e intenções desses terceiros. Em outras palavras, digamos que, em (ii) há dois tipos de vozes: o primeiro formado por uma voz que mantém um discurso sério, no sentido de não-irônico; o segundo formado pela pergunta que o sujeito-irônico propõe, de modo provocador aos caçadores de notícias sensacionalistas. Ora, esta pergunta, em seu estado bruto, poderia ser imaginada como algo do gênero: “Por que vocês não pedem logo para eu contar minhas façanhas sexuais?” Há assim um desencontro entre o primeiro tipo de voz e o segundo. E desse desencontro surge a ironia.
Esta mesma crítica aos “modismos” em matéria de edição e mais ainda, crítica à vida cotidiana, revela-se também no excerto (iii):
Agora, a moda é bio: o que a gente come, bebe, produz deve ser bio. Resolvi assim me sacrificar a esta tendência produzindo minha bio sob a forma de lembranças [...] como as bios estão em moda, vários editores, e mesmo alguns famosos, disseram que estariam interessados em publicar minha vida. Eu então resolvi meditar sobre a questão. Não é que eu seja lento, mas levei quinze anos pensando nisso antes de me decidir (AZNAVOUR, 2003, p.11).
Em (iii) um endiabrado sujeito-irônico zomba do que chama “moda bio”: tudo o que se come, se bebe... e se lê hoje, deve ser “bio"! Ele amalgama propositalmente um gênero escrito (bio-grafias) com um modo moderno de se encarar o mundo: ser “bio” é algo In, como diriam as revistas femininas... Novamente o eco de outras vozes se faz sentir no enunciado, visto como um todo. A voz que o sustenta se manifesta no final dele, mas ela é também irônica: “Então resolvi meditar sobre a questão. Não é que eu seja lento, mas levei quinze anos pensando nisso antes de me decidir” e aponta para o fato de que o sujeito-empírico ou sujeito-comunicante Charles Aznavour pouco liga para o fato de ter ou não uma biografia ou uma história de vida publicada: quem conhece o artista sabe que ele sempre teve um ritmo mais agitado que lento de agir.
Mas como conter este sujeito-irônico que ri da própria obra que está redigindo? É o que notamos no excerto (iv):
No entanto, vivi uma vida que merece talvez, notem bem, eu digo «talvez», ser contada. Quais serão as reações dos que me lerem? Tendo já atingido a idade onde a gente já não cultiva mais tantas ilusões, ainda assim eu pergunto: o estilo, a maneira de escrever vale mais que o que a gente tem para dizer? Será necessário, como disseram sobre minha voz, conter minha pena? Ah, no ponto em que estou tanto faz, que diabos! Então, era uma vez, duas vezes, três vezes, eram muitas vezes um rapaz que tinha o nome impronunciável de Charles Aznavourian. (p.13)14
O excerto acima tenta minimizar a aparente recusa do ator de se submeter ao exercício de escrita que consiste em narrar sua vida. Ele espelha uma luta interna entre o sujeito-comunicante, sujeito-empírico e o sujeito-narrador. Mas isso é feito de modo jocoso pelo procedimento da autoderrisão que aparece no segundo “talvez”, colocado entre aspas na narrativa original .
Continuemos a análise deste excerto: nele notamos que diferentes vozes (BAKHTINE, 1970a, p.267) são convocadas: o sujeito-narrador se dirige ao leitor com seu “notem bem” e também a um terceiro, que chamaremos de voz crítica, eco distante de um dos muitos fracassos da carreira de cantor de Aznavour. Além disso, tal narrador deixa entrar no enunciado outra voz irônica e transgressiva que parece mais ligada a do sujeito-empírico que as outras e que, em discurso direto, desafia todas ao exclamar, em um quase desabafo: “Ah, no ponto em que estou tanto faz, que diabos!”
Este excerto, rico em diferentes vozes, acaba pelo pied de nez que o sujeitonarrador da narrativa de vida de Charles Aznavour volta a dar a tal gênero ao afirmar: “Então, era uma vez, duas vezes, três vezes, eram muitas vezes um rapaz que tinha o nome impronunciável de Aznavourian”.
As vozes que constituem (iv) são reveladoras dos conflitos daquele que escreve, e também de sua insolência face ao mundo. Esta insolência foi - é preciso convir - uma das armas que levou Charles Aznavour ao sucesso. Sua ausência de medo, seu desejo de provocar o outro, ou seja, um poder transgressivo assumido pelo seu lado positivo.
Quanto à aparição do “era uma vez” ela envia o leitor para um efeito de gênero, no caso, o do conto de fadas. Segundo Charaudeau:
Todas as formas de pastiches, paródias, plágios, etc., utilizam procedimentos que permitem conservar [...] as funções discursivas do texto-base para produzir um efeito de semelhança. [...] Mas, pode acontecer que este efeito apareça por não-conformidade, isto é, pelo deslocamento das normas de descrição impostas por certos gêneros (1992, p.698)16 .Seguindo este raciocínio notamos que o “era uma vez” do sujeito-narrador do excerto em pauta por si só já é um índice de ironia, pois transgride as normas de um gênero como a narrativa de vida. E a transgressão é ampliada com a repetição e parodização do segmento: “era uma vez”. Os efeitos de gênero, no caso história de fadas, são alvo de uma paródia irônica: e se o livro que se prepara for também uma paródia irônica de uma vida? Eis uma questão sobre a qual o sujeito-narrador volta, repetidas vezes, ao longo de sua narrativa de vida. No fundo, o fato de mergulhar em um passado já remoto, faz com que alguma ficção seja criada pelo memorialista, ainda que sua intenção primeira seja a de contar a verdade do sujeito empírico que assina o livro.
Mas como contar a verdade pura de uma vida, ao buscá-la em um passado já longínquo? Aos fatos realmente vividos se sobrepõem fatalmente outros remanejados/reajustados ou mesmo... imaginados.
O grande especialista francês em biografias e autobiografias Philippe Lejeune (2013, p.393) tem suas ideias sobre a presença da ficção em gêneros deste tipo e afirma:
“Gosto da autobiografia, gosto da ficção, mas não aprecio a mistura destas”.
Nesse ponto, uma análise discursiva como a semiolinguística (CHARAUDEAU, 1983, 1992, 2008), que admite a existência de “efeitos de ficção” misturados à realidade dos fatos que compõem uma narrativa poderia resolver a questão: uma escrita que se pretende autobiográfica e que mergulha em um passado chiaro-oscuro, pelo passar do tempo, acaba por utilizar muitos e muitos “efeitos de ficção”.
No âmbito de polifonia bakhtiniana o uso de um efeito de ficção como o supracitado do excerto (iv) pode ser visto, acreditamos, como um apelo à entrada de outras vozes, que vivem e falam em outros mundos ou em outros gêneros discursivos que o da narrativa de vida. Seja como for, tal uso revela uma estratégia argumentativa de captação do leitor.
E não é o narrador da história de vida de Aznavour que irá nos contradizer, pois o excerto seguinte, o de número (v) deixa bem clara a sua intenção: ele não irá se projetar em um futuro, pois o seu já está gasto, devido a sua idade. Só lhe resta então procurar inspiração mergulhando em seu passado. Vejamos:
Os jovens sonham com seu futuro; como o meu já está bem gasto, procuro a inspiração mergulhando no meu passado – eu deveria dizer nosso passado, pois o passado nunca é completamente pessoal, pelo contrário, o passado é coletivo, sobretudo no caso de uma família armênia (AZNAVOUR, 2003, p.15)18 .
Chamou-nos a atenção, neste excerto, a presença do termo “inspiração” que até bem pouco tempo atrás era atrelado apenas às obras de ficção... Se há alguma ironia no excerto ela estaria em apenas um segmento do texto, ou seja: “Os jovens sonham com seu futuro; como o meu já está bem gasto, procuro a inspiração mergulhando no meu passado”. Notamos aí uma doce ironia que sorri ternamente diante da inevitável passagem do tempo.
Porém, no mesmo enunciado uma mudança é operada no outro segmento do texto, a partir de: “- eu deveria dizer nosso passado [...]” até seu final. Uma outra voz menos terna faz uma alusão ao “passado coletivo”: ela endurece ou entristece o enunciado como um todo, ao lembrar o holocausto armênio, ainda que de forma discreta.
Como tocamos nesse passado trágico, continuemos a falar dele mais um pouco, sempre dentro do regime da ironia. No excerto seguinte, (vi), ela assume cores trágicas:
[...] este mundo em que o novo governo “Jovem-Turco” esperava tanto era vê-los todos [os armênios] desaparecer. Eliminados, aniquilados, adeus, ou melhor, ao diabo com estes armênios, e vamos lá, em busca da solução final! Oh! Que frase bonita! (AZNAVOUR,
2003, p.17)
Aqui o sujeito-narrador, em poucas linhas, conta o calvário de seus antepassados armênios. À primeira vista poderíamos pensar que pelo menos a primeira parte de seu enunciado seria sério (sem ironia). Entretanto, as aspas em torno de “Jovem-Turco” são reveladoras: eis mais um caso de menção irônica. Tal governo foi admitido pelos turcos, de um modo ou de outro e é geralmente citado sem as aspas; aqui, quem não o assume é o sujeito-irônico.
Note-se que o sintagma “Jovem-Turco” não designa apenas uma pessoa, mas todos os elementos revolucionários de um partido que deu origem a esse governo, na segunda década do século XX. Discursivamente falando, trata-se de uma entidade. E de repente, tal entidade toma corpo e começa a falar, ocupando quase todo o espaço do enunciado. E ela clama pela eliminação total dos ascendentes de Aznavour. No entanto, a voz do sujeito-irônico volta para enfrentar essa voz do poder, fechando o enunciado com uma antífrase irônica: “Oh! Que frase bonita!”. O que nos remete a Proudhon, citado no início deste artigo: “Ironia, verdadeira liberdade”.
Ainda no excerto (vi). No âmbito dos procedimentos que desencadeiam a ironia, observamos que o sujeito-narrador misturou deliberadamente outras vozes ou fragmentos de vozes com a sua para melhor argumentar contra o absurdo da situação que o poder provoca e suas consequências nefastas contra todo um povo. A ironia assim vista busca chocar o leitor e influenciá-lo ou ao menos despertar sua consciência para o fato de que houve um genocídio de armênios em 1916: a estratégia está justamente no fato de que um acontecimento atroz da História é transmitido sob o tom de galhofa.
A insolência do sujeito-empírico Aznavour convoca vozes irônicas, vindas de cantos diversos para ajudá-lo a contar sua história. E como Narciso ama sua imagem, o sujeito-narrador do livro busca alguém com quem o sujeito-empírico em sua juventude possa se identificar. E aí surge, no excerto (vii) uma conhecida personagem literária francesa. Vejamos: “Como Rastignac, não pude me impedir de dizer com um tom de triunfo: „Agora é entre nós três e você, América!‟” (op.cit., p.201)20 .
O Narciso do jovem Aznavour é nada mais nada menos que a personagem Rastignac, de Balzac. Dupla ironia! O sujeito-irônico ao zombar do ambicioso Rastignac zomba também do eu-jovem de Charles e de suas pretensões. Assistimos assim a um encontro insólito de dois sujeitos do “mundo de papel”, Rastignac e Charles, com a diferença de que o segundo é bem real. O final do excerto em pauta “[...] Agora é entre nós três e você, América” surge como uma paródia irônica do famoso A nous deux Paris, desafio da personagem balzaquiana, lançado no final do romance Le père Goriot.
Rastignac estava sozinho ao lançar o desafio a Paris; o jovem Charles havia deixado Paris com dois amigos para buscar a glória na América, ao lançar seu desafio. As vozes do sujeito-narrador da história de vida de Aznavour e a do sujeito-narrador de Balzac se entrelaçam e deste entrelaçar surge a ironia.
Nesse sentido, como desprezar a presença da ficção em nossas vidas e mais ainda em todas as histórias de vida? São esses efeitos ficcionais que colorem a narrativa e atraem leitores. E a ironia, no caso em pauta, conduz os enunciados narrados a uma argumentação: o livro Les temps des avants lhes conta a verdade sobre Charles Aznavour, mas qual é a verdade de uma vida? Curiosa argumentação sem dúvida, que conduz mais que à argumentação propriamente lógica (não é o caso aqui!) a uma espécie de argumentação pela sedução da palavra e que visa a levar o leitor a uma reflexão sobre a vida em si. E como falamos em reflexões...
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