Ocupar-se com as coisas é participar de modo irrefletido da dinâmica de realização de um mundo. Nos deixamos absorver tão firmemente a essa lida ocupacional que deixamos escapar o aberto do mundo. Em uma conferência muito posterior a Ser e Tempo, intitulada A Questão da Técnica, Heidegger (1953/1997) trata mais especificamente do modo moderno e contemporâneo de acontecimento histórico do mundo. Na "era da técnica", como é denominada, por ele, a época atual, o homem toma todos os entes como recursos para os seus afazeres, como se toda a realidade se reduzisse a mera reserva de energia disponível para sua exploração e consumo (Novaes de Sá & Rodrigues, 2007). A experiência do pensamento se reduz, por sua vez, às operações calculantes que visam à previsão e ao controle dos entes. Heidegger diz que o mundo atual é pobre de pensamento, querendo significar com isso que a presente era da técnica põe sob ameaça a possibilidade mais essencial do homem: a meditação sobre o sentido das coisas, da existência e do mundo. Para que essa possibilidade seja preservada em meio ao nivelamento calculante promovido pela técnica moderna, Heidegger (1966) propõe o exercício de uma disposição do espírito denominada como serenidade (Gelassenheit). Inspirado no místico alemão Mestre Eckhart, o filósofo entende essa disposição como uma equanimidade da alma, uma atitude de suspensão e desapego da vontade. A "serenidade" faz parte do pensamento que medita. Ao contrário do pensamento calculante, que reduz tudo à condição de disponibilidade, o pensamento meditante nos solicita uma atenção livre de qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identificação a um aspecto exclusivo das coisas, preservando em sua abertura compreensiva a diferença irredutível entre as realidades que se apresentam e a dinâmica de realização dessas realidades. Em nossas leituras de Castaneda, não pudemos evitar a evocação do "deixar-ser" da "serenidade" heideggeriana quando nos deparamos com a estranha proposta do "não-fazer" de Don Juan.
Antes de parar o mundo, um dos ensinamentos fundamentais que Don Juan apresenta a Castaneda em Viagem a Ixtlan é o "não-fazer". Segundo ele o guerreiro precisa não fazer a fim de experimentar outras possibilidades de ser de uma coisa ao relacionar-se com ela. Destacamos, a seguir, um trecho da referida obra:
-Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer
-disse ele. ...não havia entendido o que ele queria dizer.
-Aquilo é fazer! - exclamou.
-Como?
-Isso também é fazer.
-De que é que está falando, Don Juan?
-Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você, você e eu, eu. (...)
-Tome aquela pedra por exemplo. Olhar para ela é fazer, mas vê-la é não fazer. Tive de confessar que as palavras dele não estavam fazendo sentido para mim.
-Ah, fazem, sim! - exclamou. - Mas você está convencido do contrário porque isso é você fazendo. É assim que você age em relação a mim e ao mundo...
-O mundo é o mundo porque você conhece o fazer necessário para torná-lo mundo - disse ele. - Se você não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente (Castaneda, 1972/2006, p. 237).
A fim de não-fazer, Castaneda precisava conseguir parar seu diálogo interno, pois só de olhar uma pedra já estamos fazendo-a pedra pelo nosso pensamento. O nosso diálogo interno, a todo instante sustenta um mundo que nos é mais familiar. A questão que trazemos é: que mundo temos nós, ao longo dos últimos tempos, feito? Don Juannos fala que todos nós fomos ensinados a concordar sobre o fazer e que não temos idéia de como esse fazer é poderoso, mas felizmente, o não-fazer é igualmente poderoso.
Quando tentamos co-responder à leitura desses pensadores, buscamos abrir um espaço para pensar em novos modos de estar no mundo. Modos que privilegiem as possibilidades de experiência do mundo enquanto mundo. Pensar já é em si uma prática, pois pensamento é uma forma de desvelar mundo. O termo desvelamento (Unverborgenheit), utilizado por Heidegger para traduzir a palavra grega aletheia, indica que a verdade não é a correspondência adequada a uma realidade em si, mas a própria dinâmica de acontecimento/aparecimento das realidades.
A obra de arte, na concepção de Heidegger, tem uma articulação essencial com essas idéias, na medida em que ser obra é instalar um mundo, e para instalar mundo é preciso deixar em aberto o aberto do mundo. A obra coloca à luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura e transcendência no relacionar-se com elas.
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Parar o mundo e ser obra de arte, falando dessas noções, os dois autores discorrem sobre realidades plásticas, sobre mundos que existem a partir de experiências, sobre formas de ec-xistir e transitar entre mundos, mantendo-se na abertura do ente. Quando Van Gogh pinta os sapatos, ele os traz à presença, e aqui entendemos presença como proximidade, a intensidade própria de sua experiência. A arte não consiste em mera representação de um mundo; da mesma forma quando o guerreiro vê, ele faz uma experiência livre de suas idéias prévias de um mundo simplesmente dado. "Parar o mundo", em Castaneda, e "ser obra de arte", em Heidegger, podem ser relacionados pelo fato de apontarem para uma abertura de possibilidades de sentido para além do mundo que tomamos como dado.
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Trata-se de um horizonte de mistério fundamental do ser homem: horizonte de abertura da própria existência.
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O que se põe em questão nesses pensamentos é a cristalização da experiência cotidiana de mundo como verdade absoluta, e, também, a cristalização dos nossos modos de ser medianos como únicas possibilidades de estar no mundo. O nosso modo de ser mais comum é tão próprio ao nosso existir, quanto o fato de que ele não esgota nossas possibilidades existenciais enquanto ser-no-mundo. Mais do que fazer experiências exóticas de mundos, o que buscamos lembrar, através da ressonância entre esses pensamentos tão distintos, seja através da arte ou por outros caminhos, é a "brecha", a "abertura" que nos permite transitar entre mundos.
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"A questão do sentido deste mesmo é a questão da essência da identidade. A doutrina metafísica apresenta a identidade como um traço fundamental do ser. Mas agora se mostra: ser com o pensar faz parte de uma identidade, cuja essência brota daquele comum-pertencer que designamos Ereignis. A essência da identidade é uma propriedade do Ereignis" (Idem, O Princípio da Identidade, 1989:146).
O trabalho inicial de Heidegger era uma polêmica com Descartes e Kant, tentando reverter a idéia que os dois faziam do que é o ser e as confusões criadas pelas imagens cartesianas e kantianas. O ser é um ente, e isto se dá a partir da compreensão do próprio ser como Sendo. Esta compreensão vem da presença do ser-no-mundo; é a partir desse ser-no-mundo que se abrem as possibilidades de ser no tempo e é mediante essa cotidianidade que o ser se re-vela.
O Sendo é a própria essência do ser, enquanto que o ser-no-mundo é a sua contingência, a identidade está na singularidade do próprio ser. O ser possuído pelo Sendo é capaz de compreender os outros entes como uma totalidade, porém, é através dos outros entes que o ser se vela enquanto ente. É a própria existência que vela o ser, o mundo é uma constituição necessária, mas não determina o ser. É na mundaneidade que o ser enquanto identidade confronta-se com a alteridade de outro ser. Desta divergência converge a unidade do Sendo que é o ser do ente. Todo ser é, assim, sempre alteridade, mesmo que seja na solidão ou no isolamento, pois a pre-sença é sempre compartilhada e estar no mundo é viver em con-vivência.
03. A Linguagem do ser
Para Heidegger, na linguagem de-mora o ser. O Sendo só pode se re-velar através da linguagem, se o pensamos ele ‘é’, pois o pensar aproxima o ser da Clareira (onde sua pre-sença contrapõe-se ao ente). A imagem de uma floresta assemelha-se à existência humana, vários são os caminhos possíveis para se chegar a uma Clareira.
Os gregos falavam do ser com o ser e para o ser, pelo menos até racionalizarem o falar, associando a alétheia à retidão argumentativa da lógica; a alétheia originalmente recolhia a verdade transcendente do Sendo. A lógica prende a verdade ao ente e fala do ente como se do Sendo falasse.
A contemporaneidade enxerga a tudo com os olhos da técnica, o efeito conta mais que o sentido, há uma primazia da razão sobre o ser, que aliena o homem de seu sentido, "esta relação (o pertencer originário da palavra ao ser) permanece oculta sob o domínio da subjetividade que se apresenta como opinião pública" (Idem, Sobre o "Humanismo", 1973:349). A sociedade domina o significado possível de um termo e conduz seu uso a um fim específico, destruindo, assim, a essencialidade ontológica da língua. Os gregos nem ‘filosofia’ usavam para designar o pensar, a dimensão do agir ultrapassa as concepções de um tempo sobre si mesmo, as palavras quando perdem seu poder de ser, tornam-se técnicas, correspondem ao instituído (dicionários, gramáticas, jornais), e não trazem mais ao homem a alteridade instauradora do real.
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A consciência advém do fato da língua permitir identificar o ser como ente ‘ec-sistente’ (ser revelado) e dependente da linguagem. Mas o que entendemos como linguagem não nos leva ao ser, no máximo indica-nos o Caminho da Clareira. "A libertação da linguagem dos grilhões da Gramática e a abertura de um espaço essencial mais originário está reservado como tarefa para o pensar e poetizar"(Ibid., 1973:347), nossa relação com a linguagem deve ultra-subjetivar-se (ir além do sujeito), nada deve comandar a linguagem, pois na Clareira impera o inefável, ante o qual nossa língua e nossa identidade nada são.
Da relação entre o poetar e o pensar, ressurge a atenção com a linguagem que hospeda o Sendo. Quando Parmênides, em seu poema nos deixou a mesmidade do pensar e ser, o elo entre poetar e pensar ainda não havia sido esquecido. O pensamento ainda correspondia ao Sendo, a linguagem que velava re-velava e o mistério, ainda, era aceito no apelo da poesia e do pensamento.
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Pero entonces: ¿es la poesía la obra más peligrosa? En la carta a un amigo, antes de su partida para el último viaje a Francia, escribe Hölderlin: "¡Oh amigo! El mundo está ante mí más claro que otra vez y más serio. Me gusta como va, me gusta, como cuando en verano el viejo padre sagrado, con mano tranquila, sacude la nube rojiza con relámpagos de bendición. Pues entre todo lo que puedo ver de Dios es esta señal la que se ha hecho predilecta. Antes saltaba de júbilo por una nueva verdad, una visión mejor de lo que está sobre nosotros y a nuestro alrededor; ahora temo que me suceda al final lo que al viejo Tántalo, que recibió de los dioses más de lo que podría digerir"
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El poeta está expuesto a los relámpagos de Dios. De eso habla aquella poesía que nosotros reconocemos como la más pura poesía de la esencia de la poesía y que comienza:
Como cuando en día de fiesta, para ver el campo,
sale el labrador, en la mañana. . .
(IV, 151 s.).
Y se dice en la última estrofa:
Es derecho de nosotros, los poetas,
estar en pie ante las tormentas de Dios,
con la cabeza desnuda.
para apresar con nuestras propias manos el rayo de luz del Padre, a él mismo.
Y hacer llegar al pueblo envuelto en cantos
el don celeste...
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