quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Concentração de propriedade na mídia e riscos para a democracia

Concentração de propriedade na mídia e riscos para a democracia

Para esse desafio, “a resposta óbvia é centralizar o capital em megaempresas ou estabelecer alianças mais flexíveis (…) que dominam os mercados” (HARVEY, 2003, p. 148).
Os megaconglomerados surgem, então, em resposta à redução das taxas de retorno, como um passo na direção da retomada de poderes monopólicos. Essa explicação é interessante porque permite entender melhor o modo como oligopólios locais ou regionais se relacionam a conglomerados de atuação nacional ou transnacional. Há complementaridades e sinergias, mas também superposições, rivalidades e interesses contraditórios. Isso ajuda a evitar interpretações lineares, sobretudo quanto ao alcance da ação dos conglomerados de mídia na construção de representações sociais homogêneas.
(.)
. A mídia ocupa lugar estratégico na reconfiguração contínua do capitalismo contemporâneo. Os tecnobergs (DREIFUSS, 2003) ampliaram a importância estratégica do discurso das mídias de massa, que ocupa espaço crescente
(.)
Em 1993, Bagdikian projetava em uma dezena o número de grandes empresas de mídia com poder dominante na sociedade. Levantamento mais recente aponta que “a mídia global está nas mãos de duas dezenas de conglomerados, com receitas [anuais] entre US$ 5 bilhões e US$ 35 bilhões. Eles veiculam dois terços das informações e dos conteúdos culturais disponíveis no planeta
[...]. Esse grau de hiperconcentração reproduz o que acontece no comércio internacional, no qual as corporações globais movimentam dois terços das transações” (MORAES, 2003, p. 198-200).
O fenômeno tem causas sistêmicas, relacionadas às tendências inerentes ao capitalismo e a consequências específicas de sua fase atual, caracterizada pela financeirização da riqueza e pela mundialização do capital em escala inédita. Várias pesquisas apontam a concentração como uma tendência relacionada à globalização econômica, à planetarização das políticas e à mundialização  cultural (categorias de DREIFUSS, 1996). Mas, muito antes desses efeitos recentes, derivados da conformação atual do capitalismo no Ocidente, Marx apontava a concentração como uma tendência do sistema, compensada por outras transformações no mercado.
Harvey (2003) analisou, tomando como base o mercado de bens simbólicos, a teoria da concentração do capital elaborada por Marx no volume 3 de O Capital:
A competição, como Marx observou, tende sempre ao monopólio (ou oligopólio), simplesmente porque a sobrevivência do mais apto na guerra de todos contra todos elimina as empresas mais fracas. Quanto mais feroz a competição, mais veloz a tendência ao oligopólio, para não dizer monopólio. Portanto, não é por acidente que a liberalização dos mercados e a celebração da competição nos últimos anos produziram uma incrível centralização de capital (HARVEY, 2003, p. 145).
Tal darwinismo econômico, se interpretado sem matizamento, resultaria na eliminação de toda concorrência, o que está longe de ocorrer. Pequenas empresas e produtores autônomos de conteúdo jornalístico e/ou de entretenimento convivem com os megaconglomerados transnacionais.
Harvey nota que o problema-chave não está na centralização e concentração de capital, mas no  poder monopólico de arbitrar preços e maximizar a taxa de retorno – situação para a qual a monopolização ou oligopolização não conduzem automaticamente3
.
É possível um mercado não-competitivo, formado por muitas pequenas empresas que praticam preços monopólicos:
O poder monopólico da propriedade privada é, pois, tanto o ponto de partida quanto o de chegada de toda atividade capitalista. (…) O problema [para o capitalismo] é manter suficientemente competitivas as relações econômicas, sustentando, ao mesmo tempo, os privilégios monopólicos, individuais e de classe, da propriedade privada, que são o fundamento do capitalismo como sistema político-econômico (HARVEY, 2003, p. 146).
Feitas essas ressalvas, Harvey observa que a globalização reduziu as proteções contra o monopólio anteriormente oferecidas pelo custo elevado do transporte e da comunicação e por barreiras institucionais ao comércio. Com taxas de retorno menores, em função dessas modificações infraestruturais, o capital passou a perseguir a reconstituição de seus poderes monopólicos. Para esse desafio, “a resposta óbvia é centralizar o capital em megaempresas ou estabelecer alianças mais flexíveis (…) que dominam os mercados” (HARVEY, 2003, p. 148).
Os megaconglomerados surgem, então, em resposta à redução das taxas de retorno, como um passo na direção da retomada de poderes monopólicos. Essa explicação é interessante porque permite entender melhor o modo como oligopólios locais ou regionais se relacionam a conglomerados de atuação nacional ou transnacional. Há complementaridades e sinergias, mas também superposições, rivalidades e interesses contraditórios. Isso ajuda a evitar interpretações lineares, sobretudo quanto ao alcance da ação dos conglomerados de mídia na construção de representações sociais homogêneas.
A tendência à concentração de propriedade, inerente ao capitalismo, foi incrementada, no que diz respeito à mídia, pelo conjunto de inovações tecnológicas e de conhecimento que estão transformando a vida no planeta desde os anos 1960. A mídia ocupa lugar estratégico na reconfiguração contínua do capitalismo contemporâneo. Os tecnobergs (DREIFUSS, 2003) ampliaram a importância estratégica do discurso das mídias de massa, que ocupa espaço crescente
“O rendimento monopólico surge porque os atores sociais podem perceber um fluxo ampliado de renda num tempo extenso em virtude de seu controle exclusivo sobre algum item direta ou indiretamente comercializável que é, em alguns aspectos fundamentais, único e não duplicável” (HARVEY, 2003, p. 141). O poder monopólico se firma face a duas situações mais comuns: quando empresas controlam recurso, mercadoria ou lugar de qualidade especial que lhes permite extrair r desde a emergência da modernidade.4 A combinação entre a expectativa de lucros e a de influência alimenta a disposição de players globais para investir na mídia (KARAM, 2004, p. 227; HABERMAS, 2003, cap. VI). Moraes enfatiza as consequências sociais dese domínio sobre a produção de bens simbólicos:
as organizações de mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da globalização, e como agentes econômicos proeminentes nos mercados mundiais, vendendo os próprios produtos e intensificando a visibilidade de seus anunciantes (2003, p. 191).
O autor critica o que considera uma estratégia da mídia global, que preserva espaços para respeitar a autonomia de territórios específicos, sem necessariamente impor conteúdos homogêneos a todos eles. Isso resultaria em “uma concentração de poder sem centralização operacional”:
Todavia, não percamos de vista que essa flexibilidade é relativa, pois filiais e subsidiárias permanecem no raio de eventuais reorientações da matriz. A holding desfaz as estruturas piramidais de comando e articula uma rede corporativa  constituída por elementos complementares, mas mantém ascendência sobre o todo.
Vale-se para isto de mecanismos de controle das metas de produção e lucro viabilizados pela informatização de processos e sistemas (MORAES, 2003, p. 198).
A concentração da propriedade da mídia que surpreendeu nações ocidentais nos anos 1990 era tema amplamente conhecido dos brasileiros. “Quando se trata da radiodifusão e da imprensa, na verdade, nos antecipamos à tendência de concentração da propriedade manifestada pela chamada „globalização‟: a propriedade entre nós sempre foi concentrada e, ademais, segundo parâmetros inexistentes em outros países” (LIMA, 2006, p. 112). Há causas sistêmicas e conjunturais para esse pioneirismo. Entre elas, está a legislação multiforme que regulamenta os serviços de comunicação e a radiodifusão no Brasil, que mantém como letra morta o artigo 220 da Constituição Federal, segundo o qual “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. “O padrão universal de concentração de propriedade e a presença dos global players encontram no Brasil um ambiente historicamente acolhedor. Nossos mass media se estabeleceram oligopolisticamente” (LIMA, 2001, p. 96). Lima aponta duas características que se
4
“Assim, as empresas antes consideradas estritamente jornalísticas adquirem ou se associam a outros ramos da comunicação, como o da telefonia fixa ou celular, o das redes e sub-redes de computadores, o da transmissão de dados ou correio, o do entretenimento. Mais ainda: compram ou associam-se a empresas de fora do setor de comunicação, como o armamentista, o banqueiro e o agropecuário, entre muitos outros” (KARAM, 2004, p. 227). O aprofundamento da convergência digital – a depender da resolução do embate entre os principais players mundiais nos canais por onde circulará a informação (ondas de radiodifusão, telefonia celular ou convencional, cabo ou satélite) – tende a transformar o cenário atual na direção de ainda maior concentração.
combinam à concentração de propriedade no desenho da morfologia da mídia no Brasil: o predomínio da propriedade familiar e as fortes vinculações dos grupos de mídia com as elites políticas.
A economia política da comunicação analisa a morfologia da concentração, e criou uma taxonomia que a classifica como horizontal (quando envolve veículos distintos em uma mesma mídia), vertical (quando um grupo controla uma cadeia produtiva inteira em uma mídia, por meio de várias empresas), cruzada (quando mobiliza veículos de diversas mídias) e de monopólios em cruz. Esta última categoria é utilizada para caracterizar o Grupo RBS. Os monopólios em cruz constituem a “reprodução, em nível local e regional, dos oligopólios da „propriedade cruzada‟” (LIMA, 2001, p. 103). A conformação em cruz é semelhante em quase todos os estados brasileiros, e combina a propriedade de canais de televisão afiliados à Rede Globo com diários dominantes em mercados locais, regionais ou estaduais, emissoras de rádio AM e FM e, mais recentemente, portais de internet. (É essa a configuração do Grupo RBS, que acrescenta a essa estrutura canais de TV a cabo e a promoção permanente de eventos e ações de marketing para públicos segmentados.)
Conglomerados regionais se associam, direta ou indiretamente, aos grupos de ação nacional, e estes a players mundiais, numa cadeia de uniformização. Nas emissoras de sinal aberto do Grupo RBS, 85% do conteúdo transmitido é gerado pela TV Globo.
“Quais as implicações que a propriedade e o controle oligopolísticos do setor de comunicações – na sua dupla lógica econômica e simbólica – e a hegemonia de um único grupo empresarial acarretam para a consolidação democrática no Brasil?”, pergunta Lima (2001, p. 113).5
Vários autores propuseram respostas à questão, o que me permite propor uma síntese das principais consequências dessas configurações. A concentração de propriedade na mídia
a) reduz o acesso do público à informação; como informação é conhecimento e poder,
há também concentração de poder;
b) amplifica o poder de poucos grupos no campo da produção técnica de imagens
aceitas tacitamente como “representações da realidade”6
;
c) amplia a lucratividade e o poder político de um número limitado de empresas, que
com isso podem se beneficiar, de maneira privilegiada, de políticas públicas ou de
governo (como nos processos de privatização);

5 Ele considerava que a questão era “historicamente relegada a segundo plano na ciência política e nas teorias da democracia” (idem, p. 113) – situação que mudou desde então, com a emergência de inúmeros estudos sobre a concentração de propriedade em ambos os campos.
6
“Dado que as mediações são inevitáveis, e que na „sociedade da comunicação generalizada‟ essa mediação se realiza através da mídia, a realidade é a realidade da mídia” (MORETZSOHN, 2007, p. 97).
d) reduz o mercado para a atuação de jornalistas e outros profissionais de mídia,
aviltando-o com salários reduzidos, superexploração da força de trabalho e condições
de produção inadequadas;
e) afeta a autonomia de agentes políticos locais, face a conglomerados de mídia
regionais, nacionais ou internacionais;
f) representa ameaça à liberdade de expressão; e, por fim, numa síntese de todos os
riscos anteriores,
g) representa ameaça à democracia.

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