segunda-feira, 27 de agosto de 2018
O Mundo como Imagem
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Em “O Tempo da Imagem de Mundo”, Heidegger descreve a metafísica
como “refl exão (Besinnung) sobre a essência do ente e uma decisão sobre
a essência da verdade” (Heidegger 3, p. 75). O uso dos termos ‘refl exão’
e ‘decisão’ revela que o fi lósofo pensa a metafísica historicamente, como
algo que se cria e se transforma no tempo, e não atemporalmente como
fundamento universal e eterno. Para Heidegger, a metafísica “funda uma
época, na medida em que [...] lhe dá o fundamento de sua fi gura essencial”
(Heidegger 3, p. 75). Seu interesse é examinar a metafísica moderna. Para
tanto, explora uma de suas aparições essenciais: a ciência moderna. Ciência
esta que, em termos gerais, se converteu em investigação ensejada pelos
conceitos de projeto, rigor, procedimento e empreendimento. O ponto
cardeal para Heidegger permanece, no entanto, a busca pela essência do ser
e o conceito da verdade que fundamentam não só a ciência moderna mas
toda a modernidade. Com o propósito de melhor entender tal fundamento,
cumpre, de início, que distingamos à la Heidegger a ontologia moderna de
suas correspondentes medieval e clássica.
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A ontologia medieval reduz o ente a ens creatum. Todos os entes são, em
última instância, criaturas divinas. Deus é a causa ulterior de todos os entes
e a cada um corresponde uma posição na hierarquia da criação. O homem,
decerto, ocupa um alto posto nesse ordenamento divino; porém, assim como
os demais entes, é subordinado a uma causa maior e não pode escapar de sua
condição menor de criatura.
Já a interpretação clássica grega dos entes pode ser entendida nos termos
de uma “metafísica da presença”. Diz Heidegger, “o ente é o que desabrocha
e o que se abre, aquilo que, como o que-está-presente, surge ao homem
que-está-presente [...]” (Heidegger 3, p. 90). Nesse sentido, cabe ao homem
apreender aquilo que já está presente, aquilo que já é e a que ele deve se abrir.
O homem do mundo grego é olhado pelo ente, levado por ele, atormentado
por suas oposições e marcado por suas discrepâncias. Em suma, “o homem
grego é enquanto aquele que apreende o ente” (Heidegger 3, p. 91).
O que há de novo na ontologia moderna? Que interpretação a modernidade
confere ao ente, distanciando-o da ens creatum medieval e do que-está-presente
grego? Na época moderna, o ente já não é mais presença e tampouco criatura,
o ente se torna objetividade do representar. A metafísica cartesiana foi, segundo
Heiddeger, a fundadora dessa reinterpretação ontológica, foi a precursora do
pensamento que identifi ca a verdade dos entes à certeza da representação. O
fundamento do ser do ente é, na modernidade, o representar do homem,
ou seja, o próprio homem. Aquilo que “reúne tudo sobre si”, que subjaz a
tudo, o Subjectum, o sujeito, é agora o homem. É de exclusividade moderna a
associação homem-sujeito, tanto que o vocábulo grego para o Subjectum latino,
ὑποκείμενον, jamais se referiu ao homem ou ao eu.
Qual é, no entanto, o solo metafísico desse processo tão caracteristicamente
moderno? Qual é a essência da modernidade? A metafísica moderna,
fundadora da modernidade, é a transformação do mundo em imagem.
Para examinar com o devido detalhe o que signifi ca considerar o mundo
como imagem, faz-se necessário defi nir a expressão alemã: “Über etwas im Bilde
sein”. Literalmente, pode-se traduzi-la como: “Estar, sobre algo, na imagem”.
Ela equivale, porém, a “conhecer algo”, “estar a par de algo”. Conservando a
trad. literal e o signifi cado real da expressão, pode-se compreender efetivamente
a que Heidegger se refere quando defi ne o mundo como imagem. A imagem
sempre se dá no sujeito e o conhecimento é sempre referente a algum objeto.
No entanto, ao se identifi car ambos, sugere-se uma indissociabilidade entre o
que conhece e o que se conhece. É por isso que o ente, na metafísica moderna, se
coloca diante do homem como sistema, preparado para o seu conhecimento.
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“O ente na totalidade”, afi rma Heidegger, “é agora tomado de tal modo que
apenas e só é algo que é, na medida em que é posto pelo homem representadorprodutor”
(Heidegger 3, p. 89). Prosseguindo: “O ser do ente é procurado e
encontrado na representabilidade (Vorgestelltheit) do ente” (Heidegger 3, p.
90). Afi rmar que a metafísica moderna põe o mundo como imagem é dizer
que na modernidade todo o ente encontra no sujeito o seu fundamento de
ser. Somente é ente o que é representado. E ao “representar” o homem coloca
o presente diante de si e o relaciona forçosamente a si como âmbito atribuidor
de medida. Desta feita, o homem se coloca como a própria cena em que o ente
se apresenta. O homem assume uma posição diante do ente que não assumira
em épocas anteriores. Trata-se de uma posição referencial, a partir da qual tudo
que é colocado diante do homem é ao mesmo tempo colocado para ele. Logo, o
mesmo processo que objetiva o mundo em algo disponível ao homem também
faz surgir o mesmo homem como sujeito. Ambos os movimentos, embora à
primeira vista paradoxais, culminam na consideração de que ensinamentos do
mundo são cada vez mais ensinamentos do homem, antropologia. Com efeito, é
a partir da modernidade que se passa a falar de mundividências, ou seja, posições
essencialmente humanas que compreendem de uma ou outra maneira o mundo
e suas relações. Mais do que o termo mundividência sugere, o mundo passa, na
modernidade, a ter que se relacionar e encontrar o seu signifi cado em como é
vivido (erlebt) pelo h
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que a técnica moderna não é um desabrigar que leva algo à aparição; a técnica
moderna, pelo contrário, é um desabrigar de “potenciais que podem ser
utilizados, transformados, armazenados e distribuídos” (Angehrn 1, p. 271).
Logo, em sua versão moderna, a técnica se opõe à ποίησις, pois não se trata
mais, seguindo a defi nição platônica, de trazer o não-presente à presença5
.
A técnica moderna é exploração de recursos, é um desafi o à natureza. O
já citado comentador Francisco Rüdiger entende ambas as técnicas como
processos de revelação, porém as distingue quanto ao princípio. A técnica
clássica, diz o comentador, é revelação que “promana de um apelo poético”
(Rüdiger 4, p. 136), ao passo que a moderna é um “processo de revelação
baseado no cálculo do ente” (Rüdiger 6, p. 136).
Compreendemos as diferenças essenciais entre as acepções heideggerianas
de técnica clássica ou artesanal e de técnica moderna. Como, porém, podemos
explicar a transição de uma à outra? Qual é o processo que fundamenta o
surgimento e o estabelecimento da técnica moderna? Tanto a técnica dos
gregos como a técnica moderna, repetimos, são modos de desabrigar.
Desabrigar, defi ne Heidegger, é um surgir “em que algo oculto chega ao
desocultamento” (Heidegger 2, p. 11). Os gregos dão ao desabrigar o nome
de ἀλήϑεια, os romanos lhe atribuem a palavra veritas e nós o chamamos
de verdade (Wahrheit). Logo, não obstante os diferentes princípios regentes,
ambas as técnicas permanecem no registro comum da verdade. Sendo assim,
não poderíamos ir um passo além e procurar o fundamento dessa transição da
técnica em uma eventual mudança do conceito de verdade? Não estaria essa
mudança por trás da conversão da técnica do produzir em técnica do desafi ar?
O Heidegger de “O Tempo da Imagem de Mundo” escreve que a metafísica
é a decisão sobre a essência da verdade e que, portanto, funda uma época
(Heidegger 3, p. 75). A metafísica que funda a modernidade é a metafísica do
mundo convertido em imagem. Qual a essência de verdade decidida por essa
metafísica? Inaugurada por Descartes, a metafísica da modernidade é aquela
em que a verdade se converte em certeza da representação (Gewissheit des
Vorstellens). A esta corresponde, necessariamente, a transformação da essência
dos entes em objetividade. É a objetividade, efetivada pelo representar,
que garante a certeza do homem moderno e calculador. Objetividade e
subjetividade se reforçam. A conversão do mundo em imagem nada mais
é do que o posicionamento da totalidade dos entes diante do sujeito. Diz
Heidegger: “o ente na totalidade é agora tomado de tal modo que apenas
e só é algo que é, na medida em que é posto pelo homem representadorcalculador”
(Heidegger 3, p. 89). O pôr (stellen) evidencia a nova relação
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entre homem e mundo que se confi gura na modernidade. O mundo se
torna imagem porque é posto para o homem. Da mesma maneira, no desafi ar
que rege a técnica moderna o homem põe a natureza como recurso, como
algo passível de encomenda, como algo a ser explorado por ele. O mundo
convertido em imagem e a natureza desafi ada pela técnica já não aparecem
como resultado de um desocultamento que traz à presença. Tanto o mundo
como a natureza perdem o seu estatuto de presença, de ente em si (an sich
Seiende), para serem postos à subjetividade apenas na medida em que possam
ser apreendidos, calculados e disponibilizados a ela. Na modernidade, mundo
se reduz a imagem, natureza se reduz a recurso.
Contudo, subjetividade e objetividade não são conceitos sufi cientes para
esgotar todo o processo de instauração da técnica moderna. Certamente nos
ajudam a fundamentar os passos iniciais de seu estabelecimento, mas não abarcam
todo o seu desdobramento. Recapitulemos a seguinte afi rmação de Heidegger:
“Aquilo que está no sentido de recurso não está mais colocado diante de nós como
um objeto” (Heidegger 2, p. 16). Nota-se aqui que o ente, tal como interpelado
pela técnica moderna, perde até mesmo seu estatuto de objeto para ser reduzido
a recurso. O avião que está na pista pode ser considerado como um objeto,
mas, desabrigado pela técnica, revela-se como recurso à disposição da indústria
do transporte. Analogamente, a simples referência ao sujeito tampouco pode
satisfatoriamente explicar o desafi ar empreendido na técnica moderna. Embora
o homem, ao desafi ar a natureza, a ponha como recurso, ele não o faz de maneira
autônoma. Conforme já exposto, o homem é desafi ado a desafi ar pela armação,
que é a essência da técnica moderna. À primeira vista, o homem moderno se
vê como senhor do planeta e, por conseguinte, senhor da técnica. Aqui reside
o perigo da armação. Diz Heidegger, “o homem está tão decididamente preso à
comitiva do desafi ar da armação, que não a assume como uma responsabilidade,
não mais dá conta de ser ele mesmo alguém solicitado...” (Heidegger 2, p. 27).
A armação, como destino, envia o homem ao modo desafi ador do desabrigar e
assim o afasta de qualquer outro modo de desabrigar.
Se, por um lado, a metafísica da imagem de mundo é capaz de lançar luz
ao início do processo de transição entre técnica clássica e técnica moderna, por
outro lado, não pode explicar sufi cientemente todo o movimento. O desabrigar
da τέχνη ocorre no registro em que mundo e homem são, respectivamente, ente
que-está-presente e aquele que apreende o ente. Na modernidade, mundo e homem
se convertem em objeto e sujeito. O ente se reduz àquilo que pode ser assegurado
pelo sujeito, em objetividade. O homem sujeito “torna-se centro de referência
do ente enquanto tal” (Heidegger 3, p. 88), diz Heidegger. Com o advento da
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técnica moderna, ou melhor, com o imperar da armação, a relação homemmundo
retratada nos termos de uma oposição sujeito-objeto parece ser abalada. A
armação dá indícios de uma nova etapa metafísica. O ente visto pela técnica nada é
além de recurso, o homem da técnica é somente aquele queencomenda recursos. Sob
o domínio da armação, tanto homem como mundo são desafi ados; em última
análise, ambos se reduzem a recurso. Segundo o comentador Emil Angehrn, o
perigo que a técnica representa liga a perda objetiva da verdade do mundo com
a auto-perda do homem (Angehrn 1, p. 272). Homem e mundo convergem em
um mesmo conceito vazio de entidade, ambos convergem em recurso.
Notas
1
Outra trad. possível e mais comumente usada do título alemão “Die Frage nach
der Technik” é “A Questão da Técnica”. No entanto, entendemos que esta versão não
refl ete o sentido indicado pela preposição ‘nach’, que introduz a noção de ‘perseguir
um objetivo’, sentido que é reforçado pelo autor na primeira página do texto: “O
perguntar constrói num caminho” (Heidegger 3, p. 5).
2
Heidegger insinuará que a técnica descrita anteriormente pode ser atribuída ao pensamento
grego e à técnica manual. Por questões didáticas, iremos nos referir a ela como “técnica clássica”.
3
No âmbito da técnica moderna, “bestellen” pode ser traduzido no seu sentido
atualmente mais usual: “encomendar”.
4
Outra trad. controversa é a do vocábulo alemão “Bestand”. A trad. inglesa adota
“stock” (estoque), ao passo que a trad. de Marco Aurélio Werle (cf. Cadernos de Trad.
2, Depto. de Filosofi a — USP, 1997) utiliza “subsistência”. Preferimos “recurso” por
atender a duas acepções: a de algo que está disponível e a de algo que é mobilizado
para um determinado fi m. 5
Platão. Symposion, 205b.
Referências Bibliográfi cas
1. ANGEHRN, E. “Kritik de Metaphysik und der Technik”. In: Heidegger Handbuch.
Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2003.
2. HEIDEGGER, M. “Die Frage nach der Technik”. In: Die Technik und die Kehre.
10.ed. Stuttgart: Klett-Cotta, 2002.
3. _______________. “Die Zeit des Weltbildes”. In: Holzwege. 8.ed. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 2003.
4. ________________. Ensaios e Conferências. 3.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.
5. _______________. Was ist Metaphysik. 16.ed. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 2007.
6. RÜDIGER, F. Martin Heidegger e a questão da técnica. Porto Alegre: Editora
Sulina, 2006.
7. SLOTERDIJK, P. Regeln für den Menschenpark. Frankfurt an Main: Suhrkamp
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