O indivíduo da civilização tecnicista, caracterizado como consumidor compulsivo, encontra-se axiologicamente distante desse principio ético fundamental, destacando-se principalmente pela dependência crescente da obtenção de momentos de fuga existencial em relação aos seus próprios problemas particulares e mesmo de si mesmo, gerando assim esse escoamento psicológico para a sua inaptidão em obter a auto-realização pessoal. Conforme o parecer de Jurandir Freire Costa, na conjuntura do consumo a capacidade humana de Estar feliz não se resume mais a se sentir sentimentalmente repleto. Agora, é preciso também se sentir corporalmente semelhante aos "vencedores", aos "visíveis", aos astros e estrelas midiáticas (FREIRE COSTA, O Vestígio e a Aura, p. 166)
A felicidade interior evadiu-se na sociedade de consumo, poucos são capazes de vivenciá-la plenamente na existência cotidiana; tanto pior, muitos consideram que o bem-estar efêmero decorrente da fruição dos bens de consumo é a autêntica felicidade, de modo que criam assim uma confusão etiológica entre as duas experiências.
Conforme a perspicaz afirmação de Erich Fromm, "a felicidade do homem moderno consiste na emoção de olhar vitrines e comprar tudo o que lhe é possível, a vista ou a prazo" (FROMM, A arte de amar, p. 3); complementando essa ideia, Bauman afirma: "Como poucas drogas, viver a crédito cria dependência talvez mais ainda que qualquer outra droga e sem dúvida mais que os tranqüilizantes à venda" (BAUMAN, Vida a crédito, p.34). Na sociedade consumista, busca-se preencher a totalidade da vida humana, isto é, tanto em sua acepção concreta e social como em sua perspectiva interior com a promessa sempre renovada de obtenção de gozo existencial através da compra dos gêneros despejados cotidianamente no mercado e magnetizados pela chancela publicitária que "diviniza" tais bens materiais. Abraham Moles, apresentando as características psicológicas do ato consumista, argumenta que O indivíduo quer adquirir, isto é, introduzir em sua esfera pessoal objetos ou atos que pertencem à esfera do outro, ou dos outros, da natureza ou da sociedade. Quer dilatar essa esfera pessoal, que ele denomina de "espaço vital", incorporando-lhe o maior número possível de elementos exteriores a ele (MOLES, O Cartaz, p. 11).
O mecanismo consumista se encontra associado ao processo econômico de contínua oferta, reposição e descarte de produtos, e são as sociedades capitalistas que apresentam de modo mais acabado um grande índice de disposições consumistas entre os seus cidadãos. Conforme exposto por Don Slater,
Para dizer o óbvio, cultura do consumo é cultura capitalista. Historicamente, desenvolve-se como parte desse sistema. Estruturalmente, a cultura do consumo é incompatível com a regulação política do consumo, seja por meio da supressão do mercado, seja por meio de códigos e leis suntuárias tradicionalistas (SLATER, Cultura do consumo e modernidade, p.33-34).
Cabe ainda ressaltar que não se pretende fazer de modo algum uma crítica de bases moralistas aos dispositivos narcotizantes e alienantes do consumismo, dispositivos estes muito bem operados pela publicidade midiática, mas sim apresentar de que maneira ocorre o incentivo artificial ao consumismo desenfreado pelo sistema publicitário e seus tentáculos sociais. Tal como perspicazmente destacado por Adriana Santos,
Cada vez mais, os meios de comunicação, não apenas sinônimos de troca de informação como também de publicidade e propaganda – acenam com maiores quantidades de objetos de desejo para os consumidores, fazendo com que, um dia, o paraíso e o bem-estar prometido por tais produtos possam ser finalmente encontrados (SANTOS, Os meios de comunicação como extensões do mal-estar, p 67).
Portanto, o procedimento crítico a ser adotado neste escrito de modo algum se caracteriza por uma valoração moralizante da conduta humana diante de busca incessante pelo consumo; pelo contrário, trata-se de uma espécie de denúncia consciente dos prejuízos existenciais do consumismo para a vida humana e de que maneira essa disposição nasce de uma carência existencial e é potencializada pelo apelo publicitário.
Nessas condições, concordamos com os apontamentos de Lipovetsky:
Ninguém duvida que, em muitos casos, a febre de compras seja uma compensação, uma maneira de consolar-se das desventuras da existência, de preencher a vacuidade do presente e do futuro (LIPOVETSKY, "Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna", In: Os tempos hipermodernos, p. 79).
Para enriquecimento teórico deste problema crucial da experiência social própria das civilizações tecnocráticas utilizaremos os referenciais intelectuais dos mais diversos pensadores que porventura tenham se apropriado da questão do consumismo em suas obras.
Consumismo e alienação existencial
Parafraseando um perspicaz comentário de Zygmunt Bauman, podemos dizer que, se outrora o questionamento acerca das condições da existência do ser humano consistia em saber se ele trabalhava para viver ou se vivia para trabalhar, nos tempos atuais podemos cogitar se o homem consome para viver ou se vive para consumir (BAUMAN, Globalização, p. 88-89). A disposição consumista própria da sociedade de opulência, que encontra sua legitimação valorativa na publicidade capitalista, favorece uma nova interpretação sobre o primado existencial do ser humano: ao invés do Cogito cartesiano que marca o advento do pensamento filosófico moderno, temos na era contemporânea a sentença "Consumo, logo existo". Conforme salienta Lars Svendsen,
Nossas vidas cotidianas tornaram-se cada vez mais comercializadas, há um número crescente de mercadorias em circulação e cada vez mais tentamos satisfazer nossas necessidades e desejos naturais através do consumo de mercadorias e serviços (SVENDSEN, Moda: uma filosofia, p. 127).
A vida na sociedade regida pela efervescência irrefreável das novidades exige de cada indivíduo uma capacidade mais potente de assimilação de informações publicitárias. Bauman afirma que "o tédio, a ausência ou mesmo interrupção temporária do fluxo perpétuo de novidades excitantes, que atraem a atenção, transforma-se num espetáculo odiado e temido pela sociedade de consumo" (BAUMAN, Vida para consumo, p. 165). Nessas condições, é preciso frustrar continuamente as pessoas para que se possa fazer ressurgir constantemente novos desejos de compras, mantendo-se assim o círculo vicioso que une anarquia interior, ansiedade, frustração psicológica e estímulo para o consumo. Konrad Lorenz salienta que A neofilia é um fenômeno bem-vindo aos grandes produtos que, graças a um doutrinamento das massas, exploram a fundo essa tendência que lhes traz grandes lucros (LORENZ, Os oito pecados mortais do homem civilizado, p. 50).
A cultura dos restaurantes para os sorrisos de melancia.
A busca pelas novidades do consumo apresenta dois problemas cruciais para a situação psicológica do "homem líquido": 1) cria a excitabilidade ansiosa pela aparição daquilo que é "novo" no regime do consumo; 2) estabelece a falsa relação de causalidade entre "novo" e "bom". Ora, aquilo que é novo não é necessariamente dotado de qualidade. Essa distância entre as duas esferas pode gerar decepções de diversos níveis no consumidor, seja a sensação de malogro por constatar que o objeto "novo" não apresenta a eficácia técnica esperada, seja o mal-estar psicológico decorrente da necessidade de se investir em uma miríade de aquisições como forma de se manter a consciência devidamente direcionada para o ato de consumo. Para Gilles Lipovetsky, "a sociedade de consumo criou em grande escala a vontade crônica dos bens mercantis, o vírus da compra, a paixão pelo novo, um modo de vida centrado nos valores materialistas" (LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 36).
Ao apresentar a configuração da assimilação mercadológica daquilo que é "novo", Diana Lima afirma que Produzido e ofertado em ritmo acelerado e incessante, ao invés de resistência, na era moderna, o novo não amedronta. Ao contrário, a novidade provoca mais e mais desejo no consumidor, de modo que ele guarda ou se desfaz daquilo que até então o agradava para se lançar em novas aquisições, sem jamais estar satisfeito (LIMA, Consumo – uma perspectiva antropológica, p. 34).
Essas experiências negativas de insatisfação existencial tendem a criar uma personalidade dependente da elevação constante do índice de consumo para que se venha assim a obter estados fugazes de prazer. Erich Fromm destaca que "a atitude inerente ao consumismo é a de engolir o mundo todo. O consumidor é a eterna criança de peito berrando pela mamadeira." (FROMM, Ter ou Ser?, p. 45). O ato de comprar compulsivamente seria uma espécie de novo ópio do povo; tal processo se revela um método prático de se compensar a extenuação de um nível de trabalho fragmentado e incapaz de fornecer o esperado sentimento de realização pessoal, atrelado ao despertar das inúmeras ansiedades decorrentes da mobilidade social, da infelicidade da solidão mesmo na vivência coletiva dos grandes centros urbanos e o tédio de uma vida desprovida de sentido criativo.
Para Baudrillard, "o consumo, pelo fato de possuir um sentido, é uma atividade de manipulação sistemática de signos" (BAUDRILLARD, O sistema dos objetos, p. 206). Cabe destacar que são nas constituições existenciais mais fragilizadas e decadentes do ponto de vista vital, problemas estes ocasionados pela ausência de aspirações superiores na existência e pela crônica insatisfação pessoal acerca do mundo circundantes, que ocorrem as maiores erupções afetivas que instigam a fruição desenfreada dos gêneros de consumo. Lipovetsky afirma que Com sua profusão luxuriante de produtos, imagens e serviços, com o hedonismo ao qual induz, com seu ambiente eufórico de tentação e proximidade, a sociedade de consumo revela claramente a amplidão da estratégia da sedução (LIPOVETSKY, A Era do Vazio, p. 2)
O próprio luxo, considerado sinônimo de sofisticação pela sociedade abastada, que legitima ideologicamente aquilo que é de bom gosto ou kitsch, nada mais seria que sintoma de decadência psicofisiológica, segundo a perspicaz colocação de Nietzsche:
A Igreja e a moral dizem: "o vício e o luxo levam uma estirpe ou um povo à ruína". Minha razão restaurada diz: se um povo se arruína, degenera fisiologicamente, seguem-se daí o vício e o luxo (ou seja, a necessidade de estímulos cada vez mais fortes e mais freqüentes, como sabe toda natureza esgotada) (NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, "Os quatro grandes erros".
Aproveitando a precedente citação nietzschiana, poderíamos reformular essa questão da seguinte maneira: "a perspectiva moralista afirma que o consumismo degrada existencialmente o ser humano; a perspectiva crítica afirma que o indivíduo em estado de declínio existencial se torna consumista como forma de promover o seu preenchimento psicológico a partir da aquisição de bens materiais". Don Slater destaca que O consumismo explora simultaneamente a crise de identidade em massa ao declarar que seus bens são soluções para os problemas de identidade e, nesse processo, intensifica a crise, oferecendo valores e forma de ser cada vez mais plurais. A cultura do consumo vive e alimenta-se das deficiências culturais da modernidade (SLATER, Cultura do consumo e modernidade p. 88).
O processo de degenerescência existencial de um indivíduo e de uma sociedade, motivadas na civilização tecnicista pela dificuldade humana em se adaptar a uma nova ordem de mundo por ele mesmo criada em seu ímpeto de dominação total da natureza, está vinculado ao grande fluxo contínuo de criação das novas tendências da moda; tais dispositivos nada mais são do que mecanismos especuladores da paixão humana pela pretensa possibilidade de obtenção de distinção social, que em verdade escamoteia a homogeneidade coletiva. Georg Simmel salienta que a mudança da moda mostra a medida do embotamento da sensibilidade; quanto mais nervosa for uma época, tanto mais depressa se alteram as suas modas, porque a necessidade de estímulos diferenciadores, um dos sustentáculos essenciais de toda a moda, caminha de braço dado com o esgotamento das energias nervosas (SIMMEL, Filosofia da Moda, p. 30)
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