domingo, 2 de setembro de 2018

Um coração sob a uma sotaina - Arthur Rimbaud


Confidências de um seminarista

... Ó, Timotina Labinette! Hoje, vestido com um roupão sagrado, consigo me lembrar da paixão, agora esfriada e dormente sob a sotaina, que, ano passado, fez meu coração bater debaixo de meu manto seminarista!...........................................................................

  1º de Maio, 18....................................................................................................................
...É primavera. O filete da trepadeira do Abbé... está exibindo seus botões no seu vaso de terra; a árvore no pátio tem pequenos rebentos, tenros como as gotas verdes em seus galhos. Outro dia, saindo da sala de estudos, vi na janela do terceiro andar algo como o champignon nasal do sup... Os sapatos de J estão um pouco fedidos, e tenho notado que os pupilos saem freqüentemente para... no pátio. Aqueles mesmos que viviam na sala de estudos, como toupeiras gordas, submersos nos próprios umbigos, estendendo seus rostos vermelhos em direção ao fogão, a respiração espessa e quente, como a das vacas! Agora, ficam por um longo tempo lá fora e, quando voltam, dão risada e fecham deliberadamente a braguilha das calças – não, isso está errado, muito lentamente – com maneirismos e parecem gostar automaticamente daquela operação, que, em si, é muito fútil...

   2 de Maio... O sup... desceu do quarto ontem, e, fechando os olhos, mãos escondidas, tímido e tremendo, arrastou com grande esforço, no pátio, seus chinelos canônicos!...
   Agora, meu coração está batendo, barulhento, no meu peito, e este está batendo contra minha mesa imunda! Ó! Agora, abomino o tempo em que os pupilos eram como ovelhas gordas, suando em suas roupas sujas, e dormiam na atmosfera fedida da sala de estudos, debaixo de lâmpadas a gás, no calor achatado do fogão! Estico meus braços! Suspiro e estico minhas pernas... Sinto essas coisas na minha cabeça, ó! Coisas!...

 ... 4 de Maio.....Então, ontem, não consegui agüentar! Como o Anjo Gabriel, abri as asas de meu coração. A respiração do Espírito Santo inundou meu ser! Peguei minha lira e cantei:

            Chegue perto,
            Grande Maria!
            Querida Mãe
            De doce Jesus!
            Sanctus Christus!
            Ó, Virgem grávida
            Ó, mãe sagrada,
            Ouça nossa oração!

            Ó! Se você soubesse dos eflúvios misteriosos que sacudiram minha alma, enquanto arrancava as pétalas dessa rosa poética! Peguei minha cítara e, como o Salmista, elevei minha voz pura e inocente às regiões celestes! Ó, altitudo altitudinum!...
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   ... 7 de Maio...Ah! Minha poesia fechara suas asas, mas, como Galileu, direi, esmagado pela indignação e sofrimento: E, mesmo assim, movimentam-se! – leia-se: as asas se movimentam! – Fora negligente o bastante para deixar cair a página precedente de confidências... J... pegou, J... o mais feroz dos Jansenistas, o mais rigoroso daqueles fanáticos que apóiam o sup..., e a levou secretamente para seu mestre; mas o monstro, para me submeter aos insultos de todos, mostrou minha poesia para todos seus amigos!
            Ontem, o Sup... me chamou. Fui para seu apartamento. Fiquei em pé, diante dele, firme em minhas convicções: na sua sobrancelha calva, seus últimos cabelos ruivos tremiam, como um raio de luz furtivo; seus olhos, quietos e calmos, emergiam da gordura de seu rosto; seu nariz, como um besouro, era movido pelo seu tique habitual; estava sussurrando um oremus; molhou a ponta de seu dedão, virou algumas páginas e tirou um pequeno pedaço dobrado de papel engordurado...

            Graaaande Maaaaaria!...
            Queeeerida Mãããe!

            Rebaixou minha poesia! Cuspiu no meu nariz! Tocou Brid’oison e José, o tolo, para sujar e enxovalhar essa música virgem; gaguejou e prolongou cada sílaba com uma zombaria de ódio concentrada: e quando chegou à quinta linha,... Virgem grááávida! Parou, distorceu o som nasalizado e explodiu: Virgem grávida! Virgem Grávida! Disse com uma entonação, contraindo seu abdome proeminente, estremecendo, com uma entonação tão assustadora que um rubor modesto cobriu minha sobrancelha. Cai de joelhos e, erguendo meus braços em direção ao teto, gritei: Ó, Pai!...

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            – Sua lira! sua cítara! jovem homem! sua cítara! aqueles eflúvios misteriosos que sacudiram sua alma, queria ter visto isso! Minha jovem alma, percebo que naquela, naquela confissão ímpia, algo mundano, uma depravação perigosa, uma tentação, numa palavra! –
            Ele parou, estremeceu o abdome de alto a baixo, e então solenemente continuou:
            – Jovem homem, você tem fé?...
            – Pai, por que você me pergunta isso? Seus lábios tiram sarro de mim?... Sim, acredito em tudo que minha mãe... A Santa Igreja... diz!
            – Mas... Virgem grávida!... Isso é concepção, jovem homem; isso é concepção!...
            – Pai! Acredito na concepção!
            – Você está certo! Jovem homem! É uma questão...
            ... Ele parou de falar... Então: Jovem J... fez um relatório onde diz que tem notado que você abre suas pernas cada dia mais perceptivelmente, quando está na sala de estudos. Ele afirma que viu você estender suas pernas completamente, debaixo da mesa, à maneira de um jovem homem... desajeitado. Esses são fatos pelos quais não esperamos resposta... Venha aqui, de joelhos; quero te interrogar quietamente; me diga: você abre muito suas pernas na sala de estudos?
            Então, colocou sua mão no meu ombro, e em volta do meu pescoço, e seus olhos brilharam, e ele me fez dizer coisas sobre a abertura das minhas pernas... Olha, prefiro te dizer que foi nojento, por que eu sei o que tais cenas significam!... Então, eles tinham me espiado, tinham caluniado meu coração e a minha modéstia – e eu não tinha nada a dizer a eles: os relatórios, as cartas Anônimas dos pupilos, uns contra os outros, e aqueles para o Sup...., autorizado, e ordenado –, e vim a seu quarto e fui... sob a mão desse homem gordo!... Ó! esse seminário!...

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              10 de Maio – Ó! – meus colegas de sala são terrivelmente perversos e terrivelmente Lascivos! Na sala de estudos, todos esses caras conhecem a estória de meus versos, e toda vez que viro a cabeça, encontro o rosto do ofegante D..., que sussurra pra mim: E sua cítara, sua cítara? e seu diário? Então, o idiota L... continua: E sua lira? e sua cítara? Então, três ou quatro sussurram em coro: Grande Maria... Querida Mãe!
            E eu sou um trouxa: - Jesus, eu não me chuto! – Mas, eu não espio os outros, não escrevo cartas anônimas, e guardo para mim minha poesia sagrada e minha modéstia!....

             12 de Maio... Você não pode adivinhar por que morro de amor?
                                   A flor me diz: olá: o pássaro diz ‘oi’ pra mim:
                                   Olá, é primavera! é o anjo da ternura?
                                   Não consegue adivinhar por que queimo com estase?
                                   Anjo da minha avó, anjo do meu berço,
                                   Não consegue adivinhar que estou me tornando um pássaro,
                                   Que minha lira treme e eu bato minha asa
                                               Como uma andorinha?

            Escrevi esses versos ontem, durante o recreio. Entrei na capela e me fechei num confessionário. Ali, em sonhos e silêncio, minha poesia jovem podia palpitar e voar em direção aos céus do amor. Então, visto que eles vêm dia e noite e me roubam de quaisquer papéis que tenho nos meus bolsos, costurei esses versos na parte de baixo das minhas roupas, que fica mais perto da minha pele, e durante a hora de estudo, puxo, sob as roupas, a poesia sobre meu coração, e o pressiono ali por um bom tempo, enquanto sonho...

            15 de Maio. – Eventos ocorreram um após o outro, desde minha última confidência, e foram eventos muito solenes, eventos que indubitavelmente influenciarão minha vida futura espiritual mútua de uma maneira terrível!
            Thimothina Labinette, eu te venero!
            Thimothina Labinette, eu te venero! Te venero! Me deixe cantar no meu alaúde, como o Salmista no seu Saltério, como te vi, e como meu coração pulou no seu para um amor eterno!
            Quinta-feira foi nosso dia livre. Nós saímos por duas horas. Eu saí. Minha mãe, na sua última carta, havia me dito: “... meu filho, vá passar superficialmente seu tempo livre na casa do monsieur Césarin Labinette, um amigo de seu falecido pai, a quem você deve ser apresentado um dia ou outro antes da sua ordenação...”
            ... Eu me apresentei ao Monsieur Labinette, que me obsequiou enormemente ao me mandar sem uma palavra à sua cozinha. Sua filha, Thimothine, que ficou sozinha comigo, agarrou uma toalha, secou uma tigela grande e redonda, enquanto a segurava contra seu coração, e me disse abruptamente, depois de um silêncio longo: Bem, Monsieur Léonard?...
            Até então, envergonhado de me ver com aquela jovem criatura na solidão daquela cozinha, mantive meus olhos abaixados e invoquei no meu coração o nome sagrado de Maria. Corando, ergui a cabeça, e perante a beleza de minha interlocutora, por pouco pude balbuciar um fraco: Mademoiselle?...
            Thimothina! Você era linda! Se eu fosse um pintor, iria reproduzir na tela seus traços sagrados sob o título: A Virgem com a Tigela! Mas sou apenas um poeta, e minhas palavras só podem te celebrar incompletamente...
            O fogão preto, com seus buracos onde brasas flamejavam como olhos vermelhos, deixava escapar de suas panelas em finos fios de fumaça o cheiro celestial de sopa de repolho com feijão. Na frente, cheirando os vegetais com seu nariz doce e vendo o gato com seus belos olhos cinzas, ó Virgem com a tigela, você esfregava seu vaso! as mechas claras achatadas de seu cabelo modestamente aderiam à sua sobrancelha, tão amarela quanto o sol. De seus olhos, corria até o meio da bochecha uma ruga azulada, exatamente igual a Santa Teresa. Seu nariz, cheio do cheiro de feijão, abria as narinas delicadas. Uma leve penugem, serpenteando acima de seus lábios, contribuía muito à nobre energia de seu rosto. Sobre seu queixo brilhava uma mancha marrom bonita, onde belos e divertidos cabelos estremeciam. O cabelo era sagazmente retido sobre o occipício por prendedores, mas uma mecha curta escapava... Em vão, procurava por seus seios. Você não tem. Você desdenha tais ornamentos mundanos. Seu coração é seus seios!...: quando se virou para bater com seu grande pé o gato amarelo, vi suas omoplatas saltarem e erguerem seu vestido, e fui pungido com amor, enquanto encarava o gracioso giro dos dois arcos realçados de suas costas!...
            Daquele momento em diante te venerei. Venerava, não seu cabelo, não suas omoplatas, não o torcer de seu traseiro. O que amo numa mulher, numa virgem, é a modéstia sagrada. O que me faz pular de amor é modéstia e piedade. Isso que é venerava em você, jovem pastora!...
            Tentei mostrar a ela minha paixão, e de resto, meu coração, meu coração me traiu! Não respondi que um par de palavras intercaladas às suas perguntas. Várias vezes, eu lhe disse Madame, ao invés de Mademoiselle, na minha confusão! Pouco a pouco, aos acentos mágicos de sua voz, me senti sucumbir. Enfim, resolvi me abandonar e deixar tudo; e, a não sei mais que questão ela me fazia, cai na minha cadeira, coloquei uma mão no coração, e com a outra tirei um rosário do bolso e deixei seu crucifixo branco aparecer. Com um olho na Thimothina e outro no céu, respondi dolorosa e tenramente, como um cervo a uma corça:
            – Ó! sim! Mademoiselle... Thimothina!!!
            Miserere! miserere! – Para dentro de meu olho deliciosamente aberto em direção ao teto cai de repente uma gota de salmoura, escorrendo de um presunto, que pairava acima de mim, e quando, vermelho de vergonha, minha paixão se reanimou, abaixei a testa, percebi que tinha na minha mão esquerda, ao invés de um rosário, uma mamadeira marrom; minha mãe tinha me pedido para dar ano passado ao bebê de alguma mãe! Do olho que virei em direção ao teto escorria a salmoura amarga: – mas do olho que te olhava, Thimothina, uma lágrima corria, uma lágrima de amor, de dor!............................
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            Quase uma hora depois, quando Thimothina anunciou a mim uma refeição de feijões e omelete de bacon, respondi numa voz baixa e muito comovido pelos seus charmes:
            – Meu coração está tão cheio, você vê, que arruinou meu estômago! – E eu me sentei à mesa. Ó! Ainda o sinto, seu coração havia respondido ao meu: durante a refeição curta ela não comeu.
            Você não está cheirando algo? ela repetia. Seu pai não entendeu, mas meu coração compreendia: era a Rosa de Davi, a Rosa de Jessé, a Rosa mística das escrituras, era o amor!
            Ela se levantou abruptamente e foi a um canto da cozinha. Mostrando-me a dupla flor de suas nádegas, enterrou os braços numa pilha amorfa de botas e calçados diversos, da qual saltou o grande gato. Jogou tudo aquilo num armário velho e vazio. Então, voltou ao seu lugar e tentou cheirar o ar, ansiosamente. De repente, franziu a sobrancelha e exclamou:
            – O cheiro está aqui ainda!...
            – Sim, algo está fedendo, seu pai respondeu um tanto estupidamente: (Era tão profano, não podia entender!)
            Percebi que tudo isso era meramente os movimentos interiores da paixão de meu corpo virgem! Venerava-a, e amavelmente saboreei o omelete dourado, e minhas mãos batucavam com o garfo, e sob a mesa, meus pés estremeciam deliciosamente dentro dos sapatos!...
            Mas o que foi um lampejo para mim, um símbolo de amor eterno, um diamante de afeição de Thimothina, foi sua adorável gentileza ao me oferecer, quando fui embora, um par de meias brancas, com um sorriso e essas palavras:
            – Gostaria dessas para seus pés, Monsieur Léonard?
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            16 de Maio – Thimothina, Te venero, você e seu pai, você e seu gato: ...

                     
Vas devotionis,
                                    Rosa mystica,
Thimothina  í Turris davidica, ora pro nobis!
Coeli porta,
Stella maris,

            17 de Maio. – Que consequências têm para mim o tumulto do mundo e do salão de estudos? Que me importa aqueles cuja preguiça e langor se debruçam sobre minhas costas? Nesta manhã, toda cabeça, pesada com sono, estava colada à mesa. Roncos, como a explosão da trombeta do Julgamento Final, pesados, lentos roncos se ergueram daquele enorme Getsêmani. Mas eu, estóico, calmo, direito, me elevando sobre todos aqueles mortos como uma palmeira, escutei meu coração batendo cheio de Thimothina, e meus olhos mergulharam dentro do azul do céu, entrevisto pelo vidro superior da janela!...

            – 18 de Maio: Agradeço ao Espírito Santo que inspirou esses versos charmosos. Vou guardar esses versos como relíquias no meu coração; e, quando o céu me permitir ver Thimothina novamente, irei lhes entregar a ela, em troca das meias!...
Eu o chamei de A Brisa:
            Em seu recanto de algodão
            Dorme o zéfiro com hálito doce:
            Em seu ninho de seda e lã
            Dorme o zéfiro com queixo feliz!

            Quando o zéfiro ergue sua asa
            No seu recanto de algodão,
            Quando corre aonde a flor o chamou,
            Seu hálito doce cheira muito bem!

            Ó brisa quintessencial!
            Ó quintessência do amor!
            Quando o orvalho se secou,
            Quão bom cheira durante o dia!

            Jesus! José! Jesus! Maria!
            É como a asa do condor
            Fazendo aquele que reza dormir!
            Nos penetra e nos faz dormir!
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O final é muito pessoal e doce! Vou preservá-lo no tabernáculo da minha alma. Próxima vez que sair, irei lê-lo à minha divina, cheirosa Thimothina.
Deixe-me esperar calma e meditativamente.
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data desconhecida.                                        Vamos esperar!
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16 de Junho! Senhor, que sua vontade seja feita. Não colocarei obstáculos em seu caminho! Se você quer desviar de seu servo o amor de Thimothina, é sem dúvida livre para isso. Mas, Senhor Jesus, você não ama também, e a lança de amor também não te ensinou como a condescender aos sofredores e desgraçados! Reze por mim!
Ó! por um longo tempo esperei pela liberdade das duas horas do dia 15 de junho. Tinha restringido minha alma, dizendo: você será livre naquele dia: 15 de junho, penteei modestamente meu cabelo esparso e, usando uma pomada rosa, de cheiro forte, prensei-o sobre minha sobrancelha, como as mechas de Thimothina. Coloquei pomada nas sobrancelhas, cuidadosamente escovei meu hábito preto, habilmente ajustei certas deficiências nas roupas, e esperançosamente toquei a campainha de Monsieur Césarin Labinette. Ele veio, depois de muito tempo, com seu camauro justamente puxado sobre uma orelha, uma mecha dura e pesadamente empomadada cortando seu rosto como uma cicatriz, uma mão no bolso do roupão coberto com flores amarelas, a outra no fecho... Disse-me “oi” secamente, enrugou o nariz ao olhar rapidamente aos meus sapatos, com seus cadarços pretos, e saiu, guiando-me, as mãos em seus dois bolsos, puxando o roupão a sua frente, como o Abbé ... faz com a sotaina, assim me mostrando os contornos de suas nádegas.
            Segui-o.
            Passou pela cozinha, e atrás dele entrei no salão. Ó! que salão! Afixei-o a minha mente com as tarraxas da memória! O papel de parede tinha flores marrons. Sobre a lareira, um enorme relógio preto com colunas; dois vasos azuis com rosas; nas paredes, uma pintura da batalha de Inkerman; e um desenho de giz de cera, de um amigo de Césarin, representando um moinho com sua roda, que lança adiante um pequeno córrego, semelhante a um cuspe, o desenho que todos os iniciantes na pintura pretejam com seus gizes de cera. Poesia certamente é preferível!...
            No meio do salão, uma mesa com lençol verde, no qual meu coração viu somente Thimothina, mesmo que um amigo de monsieur Césarin estivesse lá também, o antigo sacristão da paróquia de ..., e sua esposa, madame de Riflandouille, e o próprio monsieur Césarin se sentou novamente assim que entrei.
            Peguei uma cadeira acolchoada, e pensei que uma parte de meu corpo iria descansar na tapeçaria indubitavelmente feita por Thimothina. Cumprimentei todos e, colocando meu chapéu preto na mesa, a minha frente, como um baluarte, escutei...
             Não falei: mas meu coração falou! Os cavalheiros continuaram o jogo de cartas que haviam começado. Percebi que rivalizavam entre si na roubalheira, e isso me causou um espanto muito doloroso. – Quando o jogo acabou, essas pessoas sentaram em círculo, em torno da lareira vazia. Eu estava em um dos cantos, quase escondido pelo enorme amigo de Césarin, cuja cadeira me separava de Thimothina. Interiormente, estava feliz pela falta de atenção que me concediam. Relegado a uma posição atrás da cadeira do sacristão honorário, podia deixar aparecer em meu rosto os movimentos de meu coração sem que ninguém percebesse. Entreguei-me sutilmente aos meus sentimentos, e deixei a conversa animar e engajar aquelas três pessoas. Thimothina falava raramente. Lançava olhares amorosos ao seu seminarista, e, não se atrevendo a me encarar, dirigiu os olhos claros em direção aos meus sapatos altamente polidos!... Atrás do sacristão gordo, cedi aos sentimentos de meu coração.
            Comecei a pender na direção da Thimothina e a levantar meus olhos ao céu. Ela havia se virado. Sentei-me direito e, abaixando minha cabeça sobre meu peito, soltei um suspiro. Ela não se mexeu; peguei as contas de rosário de novo. Forcei meus lábios a se moverem e fiz um pequeno sinal da cruz. Ela não viu. Então, perdendo a cabeça e louco de amor, curvei-me a ela, unindo as mãos como na comunhão, e proferindo um longo, doloroso Ah! Miserere! enquanto gesticulava, rezava, caía da cadeira com um baque pesado, e o sacristão gordo se virou, escarnecendo, e Thimothina disse ao seu pai:
            – Olha, monsieur Léonard está no chão!
            Seu pai me zombou! Miserere!
            Estava vermelho de vergonha e fraco de amor. O sacristão me colocou de volta na cadeira acolchoada, e a posicionou adequadamente. Mas fechei os olhos e tentei dormir! Essas pessoas me irritavam. Não adivinhavam o amor que sofria naquelas sombras. Tentei dormir, mas escutei a conversa girar em torno de mim!...
            Abri novamente os olhos, levemente.
Césarin e o sacristão fumavam um charuto fino, com todo maneirismo delicado possível, o que os fazia parecer terrivelmente ridículos; a esposa do sacristão, na ponta da cadeira, o peito oco se inclinando para frente, espalhando atrás as ondas de seu vestido amarelo, que a envolvia até o pescoço, e um único movimento surgindo a sua volta, despetalava deliciosamente uma rosa. Um sorriso apavorante abria sua boca até a metade e revelava, em suas gengivas finas, dois dentes pretos e amarelos como a faiança de um fogão velho. – Mas você, Thimothina, você estava linda com seu colar branco, seus olhos baixos, e suas mechas achatadas.
– É um homem jovem com um futuro: seu presente inaugura um futuro, o sacristão disse ao exalar uma onda de fumaça cinza...
– Ó! Monsieur Léonard trará honra ao clero, nasalizou sua esposa: os dois dentes eram visíveis!
Corei, de modo adequado a um garoto educado. Vi que as cadeiras estavam se distanciando de mim e que eu era o assunto de seus sussurros...
Thimothina ainda olhava meus sapatos... os dois dentes sujos ameaçavam... o sacristão ria ironicamente... Eu ainda mantinha minha cabeça abaixada!...
            – Lamartine está morto... disse Thimothina, de repente.
Querida Thimothina! Foi por seu louvador, por seu pobre poeta Léonard, que você jogou na conversa o nome de Lamartine. Então, ergui a cabeça, senti que somente o pensamento de poesia iria restaurar a virgindade dessas pessoas profanas, senti minhas asas estremecerem, e disse alegremente, com os olhos na Thimothina:
– O autor de Méditations poetiques tinha flores bonitas em sua coroa!
– O cisne da poesia está morto! disse a esposa do sacristão.
– Sim, mas cantou sua música da morte, repliquei ardentemente.
– Mas, disse a esposa do sacristão, Monsieur Léonard é um poeta também! Ano passado, sua mãe me mostrou algumas tentativas de sua musa...
Fui audacioso em dizer: Ó! Madame, não trouxe lira nem cítara, mas...
– Ó! você deve trazer sua cítara outro dia...
– mas, mesmo assim, se não for lhes desagradar, – e puxei um pedaço de papel de meu bolso, - lerei alguns versos para vocês... Dedico-os a mademoiselle Thimothina.
– Sim! sim! jovem homem! muito bem! Recite-os. Vá ao outro lado da sala...
            Eu me recuei... Thimothina olhou para meus sapatos. A esposa do sacristão personificou a Madona. Os dois cavalheiros se inclinaram, um sobre o outro... Corei, tossi, e disse, marcando o ritmo tenramente
         
            Em seu recanto de algodão
            Dorme o zéfiro com hálito doce...
            Em seu ninho de seda e lã   
            Dorme o zéfiro com queixo feliz.

            Todos presentes gargalharam. Os homens se apoiaram, um no outro, fazendo trocadilhos vulgares. Mas o que era especialmente atemorizante era o comportamento da esposa do sacristão que, os olhos levantados aos céus, tocava a mística e sorria com os dentes feios! Thimothina, Thimothina explodia de rir. Esse foi um golpe mortal pra mim: Thimothina se abraçava!... – Um zéfiro doce no algodão, ora, isso é muito agradável!... Père Césarin disse ao fungar o ar... Pensei ver algo, mas as risadas duraram apenas um segundo. Todos tentaram recuperar a seriedade, mesmo que quebrasse ocasionalmente...
– Continue, jovem homem, é muito bom!

            Quando o zéfiro ergue sua asa
            Em seu recanto de algodão...
            Quando corre aonde a flor o chamou,
            Seu hálito doce cheira muito bem!

            Desta vez, uma risada pesada chacoalhou meus ouvintes. Thimothina olhou para meus sapatos. Eu estava quente, meus pés queimavam enquanto ela os fitava, e nadavam em suor; pois, disse a mim mesmo: essas meias que uso a um mês são um presente de seu amor, os olhares que atira aos meus pés são um indício de seu amor. Ela me louva!
            Nesse momento, um leve cheiro parecia se elevar de meus sapatos. Ó! Entendi a risada horrível daquelas pessoas! Compreendi que Thimothina Labinette, fora de lugar naquele grupo perverso, Thimothina não poderia jamais dar livre curso a sua paixão! Reconheci que eu, também, teria que abolir aquele amor doloroso que nascera em meu coração numa tarde de maio, na cozinha dos Labinettes, enquanto assistia o traseiro da Virgem com a tigela se remexendo.
            – Quatro horas, hora de voltar, soou do relógio do salão. Perturbado, queimando de amor, enlouquecido com pesar, peguei meu chapéu, tombando uma cadeira enquanto fugia, passei pelo corredor, murmurando: Venero Thimothina, e corri ao Seminário sem parar...
            As pontas de meu hábito preto batiam atrás de mim, no vento, como pássaros sinistros!...
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            30 de Junho. De agora em diante, deixo à divina musa a tarefa de consolar meu pesar. Um mártir de amor aos dezoito e, na minha aflição, pensando em outro mártir do sexo que cria nosso prazer e felicidade, não tendo mais aquela que amo, amarei a religião! Que Cristo, que Maria me aperte contra seus corações! Sigo-os. Não sou digno para desamarrar os cadarços dos sapatos de Jesus; mas, Ó, meu pesar! e, Ó, minha tortura! Eu também aos dezoito anos e sete meses, carrego uma cruz, uma coroa de espinhos, mas na mão, ao invés de um junco, tenho uma cítara! Que será o bálsamo de minha ferida!...

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– Um ano depois, 1º de Agosto – Hoje colocaram o roupão sagrado em mim. Irei servir a Deus. Terei uma vigariaria e um servo modesto num vilarejo rico. Tenho fé. Cumprirei minha salvação, e sem ser um pródigo, viverei como um bom servo de Deus com seu serviçal. Minha mãe Igreja sagrada me manterá quente em seu seio. Bênçãos sobre ela! bênçãos sobre Deus!
......No que diz respeito àquela paixão cruelmente amada que guardo no fundo do coração, serei capaz de suportá-la com constância. Sem revivê-la de qualquer modo preciso, em alguns momentos a lembrarei: tais coisas são bem doces! – Além do mais, nasci para o amor e a fé. – Um dia talvez, voltando a essa cidade, terei a felicidade de ouvir a confissão de Thimothina?... E, então, tenho uma doce lembrança dela: por um ano não tirei as meias que me deu...
            Ó Deus, usarei essas meias até chegar ao Paraíso abençoado!... 
Postado por Miguel Nascimento às 11:29

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