domingo, 2 de setembro de 2018

Ler Dostoiévski permite compreender melhor as emoções dos outros



Estudo da New School for Social Research de Nueva York mostra que mesmo períodos curtos de leitura fortalecem a inteligência emocional que nos permite compreender melhor as outras pessoas, especialmente quando se lê os grandes autores que exploram os abismos da natureza humana.
Os grandes escritores e escritoras tem a fama de entender com assombrosa claridade as contradições mais íntimas da natureza humana. Não são poucas as obras e os autores que nos desvelam e detalham situações que ocasionalmente consideraríamos inexplicáveis, sobretudo quando estas sucedem com nós mesmos: os zelos, o desengano amoroso, a felicidade buscada, a paixão desenfreada, etc.. O interessante é que entender ou apenas tentar entender estas circunstâncias resulta num melhor e mais depurado conhecimento de nós mesmos e também dos outros. Se entendemos nossos dilemas é possível que sejamos mais compreensivos com os dilemas dos outros.

Há poucos dias a prestigiosa revista acadêmica Science publicou os resultados de um estudo ( los resultados de un estudio ) no qual investigadores da New School for Social Research de Nueva York se questionaram pelo efeito que a leitura de ficção tem sobre atitudes como a nossa empatia, nossa percepção do entorno social e nossa chamada ''inteligência emocional''.

Cabe ressaltar que a investigação opôs á literatura de ficção (alta literatura) á outras classificações como ficção-popular (best-sellers) ou os textos de âmbito anglo-saxão que se conhecem como ''não-ficção''. De acordo Emanuele Castano y David Comer Kidd, os investigadores responsáveis, isto se deve ao fato de que a ficção literária estimula a imaginação, deixando aberta a porta para que os leitores façam suas próprias inferências sobre as particularidades de cada personagem, a sutileza e a complexidade de suas emoções. Enfim, a riqueza humana da qual toda grande literatura é feita.
No estudo participaram pessoas entre 18 e 75 anos, que receberam 2 ou 3 dólares para ler durante alguns minutos obras de Don DeLillo ou Wendell Berry ou, por outro lado, um best-seller de Gillian Flynn ou um conto de ficção-científica de Robert Heinlein. Depois disto, os voluntários responderam um questionário desenhado para avaliar sua capacidade de decodificar as emoções dos outros ou predizer as expectativas de uma outra pessoa em determinadas situações. Uma prova, por exemplo, consistiu em olhar 36 fotografías de olhos de pessoas e eleger quatro adjetivos que caracterizassem cada um desses olhares.

Os resultados obtidos mostraram que os leitores de ficção (contos, romances, etc) puderam identificar melhor as emoções dos outros, principalmente nos casos em que acharam particularmente agradável aquilo que tinham lido.

David Comer Kidd justifica o contraste entre literatura e outras leituras em razão da abertura que caracteriza a primeira. Enquanto na literatura de best-sellers o autor ''tem o controle e o leitor desempenha um papel mais passivo'', na grande literatura de ficção, como na de Dostoiéviski, ''NÃO HÁ UMA ÚNICA VOZ GERAL DO AUTOR: CADA PERSONAGEM APRESENTA UMA VERSÃO DIFERENTE DA REALIDADE QUE NÃO SÃO NECESSARIAMENTE CONVERGENTES. O LEITOR SE VÊ OBRIGADO A PARTICIPAR ATIVAMENTE DESTA DIALÉTICA, DA MESMA FORMA COMO FAZ COM OS PERSONAGENS DE SUA VIDA REAL''.

 Pela sua vida e pela sua escrita, muitas vezes imbricadas, levou até às últimas consequências a velha dicotomia moral bem/mal, daí o choque (fisiológico e não simplesmente estético) que provoca nos seus leitores. Não se sai intacto da sua obra, tornamo-nos outros depois de o ler, se formos verdadeiros leitores, isto é, se entrarmos genuinamente na história que ele conta.[1] Se assim for, múltiplas personagens excepcionais, extremas na bondade ou na maldade, às vezes nas duas, percorrerão a vida connosco (o Príncipe Míchkin, Aliocha Karamazov, Raskólnikov, Stavróguina, Dolgorouki, Valkorskii, Ivan Karamazov...). Dostoiévski reuniu um conjunto de personagens ambiciosas e sentimentais, ateias e crentes, revolucionárias e conservadoras, místicas e materialistas... trazendo-as para o século xx, o mais diabólico, irrisório e vertiginoso de todos os séculos. Apesar de magnéticas, nunca se apanha nelas um traço caricatural, parecem todas enraizadas na vida real, amando, odiando, sofrendo, devendo, trabalhando, equivocando-se, transbordando de filosofia ou reduzindo-se a um senso comum elementar... Suficientemente complexas para se desviarem de um possível pastiche heróico, vivem numa dispersão vital que as mostra torturadas pelas contradições, dúvidas, angústia, quimeras... São, numa palavra, personagens humanas, demasiado humanas.
Para o que nos interessa aqui, na ressaca do fracasso literário pós Gente Pobre, sem acreditarmos numa simples relação de causa-efeito, Dostoiévski começa a frequentar um grupo de jovens intelectuais contestatários, impregnados de socialismo progressista (o círculo socialista de Petrachevski de São Petersburgo, na verdade bastante heteróclito, com liberais, anarquistas e socialistas), desenvolvimento rizomático do sopro revolucionário que varreu a Europa em 1848. Mas a 23 de Abril de 1949, a polícia prende-os, incluído Fiódor. No seguimento de um julgamento obscuro, vê-se condenado à morte e em 22 de Dezembro do mesmo ano é levado com alguns camaradas para o local da execução. Na verdade, a sentença era um simulacro, depois da encenação perfeita (leitura da condenação falsa, saco de tecido na cabeça, subida para o cadafalso...) acreditou realmente que ia morrer, mas no derradeiro instante ouve dizer que a pena (fictícia) tinha sido comutada, pelo “misericordioso” imperador Nicolau I, em prisão com trabalhos forçados num campo da Sibéria (onde permaneceu quatro anos, activando uma força espiritual sem ressentimentos). Este inimaginável suplício psicológico será retratado pela voz do Príncipe Míchkin no O Idiota (mais no sentido de ingénuo do que de ignorante, uma simplicidade que abre para a mensagem evangélica).[5] O grande biógrafo dostoievskiano Joseph Frank (a quem devo parte destas informações) vê no livro, o mais autobiográfico de todos, a reprodução e imortalização do momento trágico que ele viveu no simulacro de execução.

Este acontecimento, em pleno Inverno russo (estação do trágico frio glaciar), renovado mais tarde, mutatis mutandis, pela morte da esposa do do irmão amado em 1864, “regenerou as suas convicções”. Escreve ao irmão defendendo que a vida é sagrada, que cada minuto contém uma “felicidade eterna”, dispondo-se a “renascer sob uma nova fórmula”. Envolve-o um vitalismo religioso, uma paixão pela vida viva, dom e dádiva de Deus, a vida prova a existência de Deus em cada indivíduo (conversão de Dostoiévski). A confrontação directa, inevitável, com a morte destaca, com uma luz que alucina, a positividade da vida. Pede então uma nova oportunidade, jurando que “transformará cada minuto num século de vida”, como diz em O Idiota. E foi isso que escolheu, o simulacro de execução fê-lo renascer para uma nova relação com a vida, amando o mundo, dando graças por poder olhar para ele, cheirá-lo, tocá-lo, numa espécie de vertigem imanente suportada pela magnificência do transcendente.[6] A ausência de sentido, niilismo que inspirará Nietzsche, alojada na falta de reconhecimento, será substituída pela simplicidade luminosa, entregando-se à totalidade como uma criança fascinada com a existência.

A pergunta que muitos fazem é sobre a importância do simulacro da execução na vida e obra de Dostoiévski, teria ele sido o mesmo sem essa deriva mortífera? Sabemos pelo menos que o Dostoiévski socialista e revolucionário se esvaneceu nesse dia, dando lugar ao Dostoiévski crente, russófilo[7] e conservador. Em vez da revolução política, propõe uma solução teológica na aceitação do sofrimento e no valor intrínseco da redenção (estoicismo cristão, uma ascese atípica). Sabemos também que sem essa experiência O Idiota, Os Irmãos Karamazov (morre pouco depois da sua publicação, em Janeiro de 1881) e Os Demónios não teriam provavelmente sido escritos.
(.)

Fiódor Dostoievski foi então enviado a uma prisão na Sibéria, para uma pequena cidade chamada Omsk, lindinha, que fez parte de meu roteiro em terras russas. Lá ficou por 4 anos. Após Omsk foi para o Cazaquistão, pertencente então ao Império Russo, onde serviu o exército. Passou uns anos em São Petersburgo e depois fez sua primeira viagem pela Europa, onde adquiriu o vício pelo jogo, assim como seu personagem em O Jogador.

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