ATIREM NO PIANISTA, 1960
O azar que, ao longo dos 78 minutos que este filme dura, se abate sobre o protagonista, parece ter-se comunicado ao filme do pianista. Vindo após o grande êxito que coroara a primeira longa-metragem de Truffaut - Les 400 coups - , e antes do sucesso idêntico a esse - Jules et Jim, de 1961 - o opus 2 de Truffaut esteve longe de despertar favores. O filme teve uma carreira discreta, como discreto foi o acolhimento feito pela crítica. Exemplo típico o caso português: Tirez sur le pianiste foi ante-estreado duas vezes, com um intervalo de dez anos: em 1965 e em 1975, em Festivais. De nenhuma das vezes o distribuidor (que adquirira, titulara e legendara a cópia) passou da potência ao ato (ou seja, da ante-estréia à estréia) e este filme é a única longa-metragem de Truffaut inédita comercialmente entre nós (embora tantas vezes exibida em sessões especiais como esta e tantas vezes mostrada em reprodução televisiva).
O que pode ter contribuído para este relativo “desfavor” de um filme tão importante? Em primeiro lugar, ele veio contrariar a imagem que se formara do realizador após o “confessionalismo” de Les 400 coups. Sem, de forma alguma, se pretender diminuir esse notável ponto de partida da carreira de Truffaut, pode-se dizer que essa era uma obra que se prestava a ser apreciada por maus motivos: a lágrima fácil que as histórias dos enfants sauvages sempre despertam, a inserção numa tradição do filme francês (em que se viu Vigo revisitado e domesticado), o citado “confessionalismo” (ou se se preferir autobiografismo), a novidade duma abordagem “à flor da pele”, etc.
Tirez sur le pianiste, aparentemente, nada disto tinha. O argumento do filme era um romance policial do legendário escritor norte-americano David Goodis e Truffaut transpôs o décor do livro (o bairro louche de Skid Row, em Filadélfia) para uma Paris só genericamente reconhecível, sem nada do ambiente típico que tanto se insinua na maior parte dos filmes franceses, inclusive nos da Nouvelle Vague (pense-se no quase contemporâneo À bout de souffle, de Godard).
Por outro lado, a narração saltava freqüentemente de um plano a outro (realismo a irrealismo), “desnorteando” quem nela procurasse um fio lógico. Muito se comentou (e denegriu) o flashback (a história de Édouard e Thérésa) que, disse-se, parecia vir dum outro filme. Mas esses “saltos” estão presentes ao longo de toda a obra. Para além das seqüências finais (na casa dos três irmãos) a que adiante me referirei, pense-se, a título de exemplo, no início do filme: um longo travelling que segue um personagem (Chico) fugindo aos seus perseguidores, no estilo dos “filmes negros” americanos (estilo anunciado no genérico, com as cordas do piano). A certa altura, Chico cai. É ajudado a levantar-se por um desconhecido (que nunca mais aparece na história) e, entre os dois, trava-se um diálogo, em face da situação totalmente despropositado, sobre a vida sentimental e conjugal do “intruso”. Depois, cada um segue o seu caminho, Chico retoma a corrida e Truffaut o travelling. Em duas palavras: o espectador é duplamente defraudado: não tem, perante si, a “intriga policial” típica dos filmes americanos, em que Truffaut se inspira (o cinema, aqui, não é action), nem se pode comprazer no psicologismo realista tão caro aos filmes franceses (as personagens são desenraizadas e atuam, como a “história”, aos solavancos).
Precisamente, essas características (acolhidas com tantas reservas) são as que conferem a Tirez sur le pianiste o seu maior poder de atração. Na filmografia de Truffaut, este é o primeiro filme em que o autor tenta combinar as duas “paixões maiores” da sua vida de cinéfilo: o cinema americano, de Hawks, Hitchcock, Preminger ou Fuller com o cinema francês de Renoir e Becker. O que, depois, obras como La mariée était en noir, La sirène du Mississipi ou La chambre verte (para só citar filmes maiores) iriam desenvolver, acha-se aqui configurado pela primeira vez, numa procura de fusão de dois estilos que dão a este filme muito do seu apaixonante experimentalismo.
Num filme em que abundam as citações cinematográficas (para não falar das musicais, literárias e das cinéfilas como no plano com o número dos Cahiers), Truffaut procede como o seu “pianista”: retém tudo o que é bonito (“J’aime tout ce qui est beau”).
Filme construído sobre um sentimento, a timidez (como bem notou Pierre Kast), Tirez sur le pianiste é capaz das maiores audácias formais desde a seqüência do duelo (vinda do M. Lange de Renoir e do Casque d’or de Becker) até ao espantoso tratamento do passeio noturno de Charlie-Édouard (a brincadeira com o nome teria a sua devida posteridade no Pierrot le fou de Godard) com Léna (“parce qu’Elena”).
Citei estes exemplos como alguns dos melhores momentos deste filme. Mas o máximo de intervenção e audácia reserva-nos Truffaut para o fim. Retomando La nuit du carrefour de Renoir, Truffaut (que nunca “explicou” os irmãos) insere-os numdécor mítico que trás subitamente à memória os mais tenebrosos dos contos de Grimm da nossa infância, com a mesma contrapartida de terror e atração. O “realismo” torna-se fantástico, os bandidos transformam-se em ogros e a “carne humana” tem que ser devorada.
É então que surge a seqüência final (a espantosa morte de Léna na neve) em que, retomando o grande cinema lírico de Hollywood (de Griffith a Borzage), Truffaut transforma esta história de sentimentos recalcados num poema de paixões soltas e confere a Marie Dubois, também (veja-se o assombroso plano do escorregar dela na neve) a força mítica que anima essa seqüência.
Ao encontrar-se com os grandes espaços, este filme confinado e rarefeito (visto, tantas vezes, através de vidros embaciados) transpõe as notas do pianista do cabarete das canções drôles cantadas antes para os acordes da grande música também ouvida no filme e que Charlie, para seu mal ou seu bem, não soube sustentar.
João Bénard da Costa
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