LINGUAGEM UTILIZADA PELA MÍDIA PARA ''PROJETAR O MUNDO'' É UM ''OBJETIVISMO DE SEGUNDA ORDEM.
Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu -Habitus, reflexivity and neo-objectivism in Pierre Bourdieu's theory of practice -Habitus, réflexivité et néo-objectivisme dans la théorie de la pratique de Pierre Bourdieu
Gabriel Peters
Compreendido como uma manifestação particular do modo de conhecimento social objetivista, o estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, segundo a perspectiva bourdieusiana, compartilha com outras manifestações desse tipo de abordagem (por exemplo, o estrutural-funcionalismo durkheimiano ou certa teleologia histórica marxista) o sensato reconhecimento da existência de padrões de conduta e sistemas de relações que se reproduzem independentemente da intencionalidade e da consciência de quaisquer dos atores individuais que compõem uma dada formação societária. A ruptura teórica com as concepções subjetivas que organizam a experiência de senso comum dos agentes é saudada por Bourdieu como um passo epistêmico necessário: a) à persecução investigativa das condições sociogenéticas de possibilidade de tal conhecimento e experiência do mundo social como horizonte tácito e imediatamente familiar da conduta individual, tal como retratado nas descrições fenomenológicas da "atitude natural" (Husserl); b) à análise das coações estruturais e dos efeitos sociais emergentes das práticas individuais que escapam à consciência e à vontade dos atores. A postura exterior e distanciada do método objetivista de observação científico-social, visando à superação de toda a sorte de limitações sócio-históricas que incidem sobre as notiones vulgares experiencialmente ancoradas que integram a visão de mundo de qualquer agente particular posicionado no universo social, busca decodificar "a partir de cima", por assim dizer, "a partitura não escrita de acordo com a qual as ações dos agentes, cada um dos quais acredita estar improvisando sua própria melodia, estão organizadas" (Bourdieu, 1983b, p. 70).
''...existem, no próprio mundo social e não apenas nos sistemas simbólicos - linguagem, mito, etc. - , estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, as quais são capazes de orientar ou coagir suas práticas e representações. Por construtivismo, quero dizer que há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ação que são constitutivos daquilo que chamo de habitus e, de outro, das estruturas sociais, em particular do que chamo de campos e grupos...'' (Bourdieu)
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Como instrumento heurístico de orientação à pesquisa de universos sócio-históricos diversificados, a teoria da prática de Bourdieu está ANCORADA na tese da existência de uma inter-relação causal entre as matrizes socialmente adquiridas de produção da conduta individual (habitus), de um lado, e as propriedades estruturais dos contextos de socialização, atuação e experiência dos agentes (campos), de outro.
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Segundo Bourdieu, é na relação dialética entre habitus e campo - mas em uma dialética que começa sempre pelo campo - que se encontra o princípio da gênese das práticas sociais que articulam inextricavelmente os polos da ação e da estrutura, ou do "sentido subjetivo" e das "relações objetivas", para utilizarmos as clássicas expressões de Weber e Marx respectivamente. Na maior parte das situações empíricas pesquisadas por Bourdieu, essa relação manifesta-se sob uma roupagem de "cumplicidade ontológica", permitindo compreender como a conduta social pode se ajustar objetivamente a determinados fins sem que estes tenham sido explícita e conscientemente visados pelos atores. O ajuste dar-se-ia por meio da operação tácita ou "pré-reflexiva" de um habitus socialmente estruturado (inculcado a partir de uma trajetória experiencial percorrida ao longo de uma ou mais posições em uma estrutura objetiva de relações) e estruturante (pois tende a reproduzir as estruturas que o constituíram quando mobilizado recursivamente nas ações dos indivíduos). É ao enfatizar esse aspecto dinâmico da vida social que ele concebe, como foi visto, sua perspectiva teórica como um estruturalismo genético ou construtivista, centrado na relação entre as estruturas sociais objetivas distribuídas no espaço social (campos) e as estruturas subjetivas de orientação prática (habitus) que as atualizam ou as transformam no fluxo das contínuas lutas históricas3 entre os diversos agentes do mundo societário.
Como instrumento heurístico de orientação à pesquisa de universos sócio-históricos diversificados, a teoria da prática de Bourdieu está ANCORADA na tese da existência de uma inter-relação causal entre as matrizes socialmente adquiridas de produção da conduta individual (habitus), de um lado, e as propriedades estruturais dos contextos de socialização, atuação e experiência dos agentes (campos), de outro.
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Segundo Bourdieu, é na relação dialética entre habitus e campo - mas em uma dialética que começa sempre pelo campo - que se encontra o princípio da gênese das práticas sociais que articulam inextricavelmente os polos da ação e da estrutura, ou do "sentido subjetivo" e das "relações objetivas", para utilizarmos as clássicas expressões de Weber e Marx respectivamente. Na maior parte das situações empíricas pesquisadas por Bourdieu, essa relação manifesta-se sob uma roupagem de "cumplicidade ontológica", permitindo compreender como a conduta social pode se ajustar objetivamente a determinados fins sem que estes tenham sido explícita e conscientemente visados pelos atores. O ajuste dar-se-ia por meio da operação tácita ou "pré-reflexiva" de um habitus socialmente estruturado (inculcado a partir de uma trajetória experiencial percorrida ao longo de uma ou mais posições em uma estrutura objetiva de relações) e estruturante (pois tende a reproduzir as estruturas que o constituíram quando mobilizado recursivamente nas ações dos indivíduos). É ao enfatizar esse aspecto dinâmico da vida social que ele concebe, como foi visto, sua perspectiva teórica como um estruturalismo genético ou construtivista, centrado na relação entre as estruturas sociais objetivas distribuídas no espaço social (campos) e as estruturas subjetivas de orientação prática (habitus) que as atualizam ou as transformam no fluxo das contínuas lutas históricas3 entre os diversos agentes do mundo societário.
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Além da tendência (como tal, historicamente reversível) à reprodução de práticas sociais e relações de poder, a circularidade do habitus permite compreender sua existência como mediação causal entre o individual e o social, como princípio gerador, socialmente gerado, de práticas e representações, "estrutura estruturada predisposta a funcionar como estrutura estruturante" das mesmas estruturas que o estruturaram (Bourdieu, 1983b, p. 61). Esta historicidade circular explica também a relação de tácita familiaridade (o mundo social como taken for granted, na expressão de Schutz) que os atores experienciam na sua realidade cotidiana, experiência "dóxica" (Husserl) de familiaridade que as abordagens fenomenológicas tematizam e descrevem com acurácia, negligenciando, entretanto, a análise de suas condições sócio-históricas de possibilidade, isto é, "a coincidência entre as estruturas objetivas e as estruturas internalizadas que provê a ilusão da compreensão imediata" (Bourdieu, 1990b, p. 26; ver também Ortiz, 1983, e Miceli, 2001). Nesse sentido, a realidade social não é percebida por Bourdieu apenas como exterioridade (à maneira de Durkheim) ou interioridade (à maneira da sociologia fenomenológica de Schutz), mas simultaneamente como exterioridade objetiva e interioridade subjetiva, ou ainda - se quisermos dinamizar e dialetizar este retrato, prestando de quebra uma homenagem aos famosos (ou infames) malabarismos verbais do mestre francês - como exterioridade objetiva subjetivamente interiorizada e interioridade subjetiva objetivamente exteriorizada.
Além da tendência (como tal, historicamente reversível) à reprodução de práticas sociais e relações de poder, a circularidade do habitus permite compreender sua existência como mediação causal entre o individual e o social, como princípio gerador, socialmente gerado, de práticas e representações, "estrutura estruturada predisposta a funcionar como estrutura estruturante" das mesmas estruturas que o estruturaram (Bourdieu, 1983b, p. 61). Esta historicidade circular explica também a relação de tácita familiaridade (o mundo social como taken for granted, na expressão de Schutz) que os atores experienciam na sua realidade cotidiana, experiência "dóxica" (Husserl) de familiaridade que as abordagens fenomenológicas tematizam e descrevem com acurácia, negligenciando, entretanto, a análise de suas condições sócio-históricas de possibilidade, isto é, "a coincidência entre as estruturas objetivas e as estruturas internalizadas que provê a ilusão da compreensão imediata" (Bourdieu, 1990b, p. 26; ver também Ortiz, 1983, e Miceli, 2001). Nesse sentido, a realidade social não é percebida por Bourdieu apenas como exterioridade (à maneira de Durkheim) ou interioridade (à maneira da sociologia fenomenológica de Schutz), mas simultaneamente como exterioridade objetiva e interioridade subjetiva, ou ainda - se quisermos dinamizar e dialetizar este retrato, prestando de quebra uma homenagem aos famosos (ou infames) malabarismos verbais do mestre francês - como exterioridade objetiva subjetivamente interiorizada e interioridade subjetiva objetivamente exteriorizada.
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O "juridicismo estruturalista" consistiu, no trabalho de Bourdieu, no primeiro exemplo desse modo falacioso de caracterização das motivações subjetivas das práticas individuais por meio da projeção inconsciente do sujeito cognoscente (sujet connaissant) no sujeito atuante (sujet agissant). Em discussões mais recentes, Bourdieu se dedicou a apontar para o mesmo tipo de erro em seus anátemas ocasionais contra o intelectualismo da teoria da escolha racional, caracterizando o modelo do agente humano avançado por essa abordagem como "uma espécie de monstro com a cabeça do pensador pensando a sua prática de modo reflexivo e lógico montada sobre o corpo de um homem de ação engajado na ação" (Bourdieu e Wacquant, 1992, p. 123).
A concepção bourdieusiana da relação entre agência e estrutura está, portanto, intimamente atada à sua visão do caráter fundamentalmente tácito da operação dos motores subjetivos da conduta humana. O problema é que não é preciso superestimar o grau de autotransparência motivacional dos atores leigos para reconhecer que a ênfase de Bourdieu sobre o funcionamento tácito do habitus, ainda que valiosa, leva-o a negligenciar o relativo controle reflexivo e consciente que aqueles podem exercer sobre suas próprias disposições práticas de conduta. No que parece ser, à primeira vista, um paradoxo, a sociologia reflexiva de Bourdieu é tremendamente cética quanto à possibilidade de que os próprios atores tematizem reflexivamente as propriedades de seus habitus e transformem-nas criativamente em certa medida. Dentro dos quadros da teoria bourdieusiana da prática, tais processos de autorreflexão e autotransformação reflexiva só poderiam ocorrer, grosso modo, em duas situações: o efeito de hysteresis...
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De todo modo, o problema central que nos interessa aqui é que a referência à "crise objetiva" como requisito para o acesso reflexivo do ator a dimensões outrora inconscientes de seu próprio habitus é signo do fato de que Bourdieu não considera essa possibilidade de acesso um atributo universal do agente humano, mas sim um fenômeno específico a circunstâncias históricas em que os atores são submetidos a efeitos de histerese e forçados a sair, por assim dizer, do "piloto automático". A dependência que a interrupção dos efeitos reprodutivistas do habitus tem dessa mesma "crise objetiva" indica que, ainda que este garanta ao ator uma capacidade inventiva, o caráter criativo desse sistema de disposições não chega, por si só, a constituir uma ameaça à reprodução das estruturas dos campos onde ele viceja, na medida em que essa inventividade funciona dentro de fronteiras objetivas estabelecidas na sua própria gênese e infusos na sua constituição mesma. A prioridade conferida, em termos habermasianos, à "crise sistêmica" sobre a "crise vivida" torna patente que o ator individual não possui, na perspectiva de Bourdieu, um poder causal autônomo de transformação dos pilares fundamentais dos ambientes estruturais onde opera, algo que leva diversos autores a afirmar que, no fim das contas, o pensador francês não ultrapassa o objetivismo, pois subordina teoricamente o polo da agência ao polo da estrutura. A teoria do habitus ofereceria, a rigor, não "uma alternativa à explicação socioestrutural", mas a sua operacionalização (Alexander, 1995, p. 136).
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De todo modo, o problema central que nos interessa aqui é que a referência à "crise objetiva" como requisito para o acesso reflexivo do ator a dimensões outrora inconscientes de seu próprio habitus é signo do fato de que Bourdieu não considera essa possibilidade de acesso um atributo universal do agente humano, mas sim um fenômeno específico a circunstâncias históricas em que os atores são submetidos a efeitos de histerese e forçados a sair, por assim dizer, do "piloto automático". A dependência que a interrupção dos efeitos reprodutivistas do habitus tem dessa mesma "crise objetiva" indica que, ainda que este garanta ao ator uma capacidade inventiva, o caráter criativo desse sistema de disposições não chega, por si só, a constituir uma ameaça à reprodução das estruturas dos campos onde ele viceja, na medida em que essa inventividade funciona dentro de fronteiras objetivas estabelecidas na sua própria gênese e infusos na sua constituição mesma. A prioridade conferida, em termos habermasianos, à "crise sistêmica" sobre a "crise vivida" torna patente que o ator individual não possui, na perspectiva de Bourdieu, um poder causal autônomo de transformação dos pilares fundamentais dos ambientes estruturais onde opera, algo que leva diversos autores a afirmar que, no fim das contas, o pensador francês não ultrapassa o objetivismo, pois subordina teoricamente o polo da agência ao polo da estrutura. A teoria do habitus ofereceria, a rigor, não "uma alternativa à explicação socioestrutural", mas a sua operacionalização (Alexander, 1995, p. 136).
De qualquer forma, mesmo o reconhecimento, por parte de Bourdieu, de que o conceito de habitus se refere a um princípio causal de formas particulares (embora "particularmente freqüentes" [Bourdieu, 2001c, p. 177]) de ação socialmente situada, o qual coexiste no mundo societário com outras modalidades de propulsão subjetiva da conduta operantes em contextos diferenciados (tais como a adequação racional-calculista de meios a fins baseada na consideração consciente de alternativas possíveis de ação ou a obediência consciente a normas de conduta explicitamente estatuídas), é insuficiente para evitar seu deslize teórico-metodológico em direção a "um objetivismo de segunda ordem". Sua concepção quanto à precedência ontológica e metodológica do nível objetivo sobre o nível subjetivo da realidade social permanece patente na ideia de que, ao menos que tange ao ator leigo, é a desestabilização da cumplicidade ontológica entre as disposições dos agentes e seus ambientes estruturais de atuação/experiência que está na base do surgimento de ações fundadas sobre deliberações reflexivas. É, assim, negada a possibilidade do processo inverso, isto é, de que o próprio exercício consciente da reflexividade pelos atores acarrete por sua vez uma quebra total ou parcial daquela cumplicidade.
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Assim, as propriedades dos habitus dos agentes leigos só poderiam ser reflexivamente tematizadas por seus próprios possuidores nos contextos "histerésicos" em que houvesse uma disjunção entre as circunstâncias estruturais de parturição e as circunstâncias estruturais de mobilização agêntica de seus sistemas de disposições práticas e esquemas simbólicos internalizados. Tais contextos em que está ausente a cumplicidade ontológica entre estruturas subjetivas e objetivas tendem a ser tidos como social e historicamente excepcionais por Bourdieu e, de todo modo, são mais raramente escrutinados na sua obra do que aqueles em que existe um vínculo sociogenético e um reforço circular entre habitus e campo (Vandenberghe, 2010, p. 290).
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Assim, as propriedades dos habitus dos agentes leigos só poderiam ser reflexivamente tematizadas por seus próprios possuidores nos contextos "histerésicos" em que houvesse uma disjunção entre as circunstâncias estruturais de parturição e as circunstâncias estruturais de mobilização agêntica de seus sistemas de disposições práticas e esquemas simbólicos internalizados. Tais contextos em que está ausente a cumplicidade ontológica entre estruturas subjetivas e objetivas tendem a ser tidos como social e historicamente excepcionais por Bourdieu e, de todo modo, são mais raramente escrutinados na sua obra do que aqueles em que existe um vínculo sociogenético e um reforço circular entre habitus e campo (Vandenberghe, 2010, p. 290).
Do ponto de vista teórico, o que está em jogo é o status da relação ontológica entre três níveis da realidade societária (Kogler, 1997, pp. 142-143): a) as condições sociais objetivas que conformam os ambientes estruturados em que os indivíduos atuam e que tomam a forma de ordens distributivas de uma pletora de recursos materiais ou simbólicos (formas de capital, diria Bourdieu), ordens que coagem em variados graus os cursos factíveis de ação e as "oportunidades de vida" (Weber) dos agentes; b) as crenças e intenções explicitamente sustentadas pelos atores e conscientemente mobilizadas por estes na produção de seus comportamentos; c) os esquemas simbólico-interpretativos operantes sob a forma de crenças tácitas e "etnométodos" que se referem ao que Bourdieu denomina de habitus. Como vimos, ainda que considere esse último nível sócio-ontológico como o mais frequente e decisivamente determinante na relação dos agentes com seus contextos societários objetivos e, por meio desse relacionamento, na gênese das práticas sociais que desenham o curso da evolução sócio-histórica, Bourdieu não chega a oferecer um estatuto puramente epifenomênico ao nível das orientações subjetivas de conduta explícita e discursivamente mobilizadas pelos atores. Ele efetivamente coloca, no entanto, uma série de restrições à sua eficácia causal.
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Gabriel Peters
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