quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O SENTIDO DE SE FALAR EM SUPERAÇÃO (geralmente ligado a alguma espécie de ''escuta'')




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O SENTIDO DE SE FALAR EM SUPERAÇÃO
(geralmente ligado a alguma espécie de ''escuta'')

É no sentido de uma vontade tornada técnica, do seu fechamento numa vontade de controle, que se pode entender por que motivo se torna tão problemático falar em superação. No que a técnica é tratada como instrumento de dominação do ente em geral e, assim, vista ela mesma como algo a ser dominado ou manejado com maestria, o pensamento que a toma em consideração acaba por restringir-se à questão do uso melhor ou pior que dela se possa fazer. O projeto passa a ser um projeto de explícita auto-suficiência, com o fechamento da dimensão de tudo o que, para além da vontade, da influência ou da capacidade do sujeito controlador, tem o poder de livre e misteriosamente fazer durar, conceder, deixar-ser. O perigo maior é que nesse fechamento, em que todos os olhares se voltam para aquilo que o homem pode ou não pode fazer, de si mesmo e dos demais entes, passa despercebido um estranho refluxo. O que principalmente se deixa de perceber é quão técnico é o homem que lida com a técnica, ou seja, que é a técnica que domina o homem e não o contrário, e tanto mais quanto mais ele se concentra na tarefa de aperfeiçoá-la e de tecnicamente aperfeiçoar-se. Mal suspeita o homem de hoje que não pode deixar de ser técnico na sua luta pela sobrevivência, imerso que está num mundo onde impera a lei do mais técnico, reedição mudada daquela lei do mais forte que o projeto metafísico, na sua busca de justiça e garantia, tanto temeu e quis evitar.
É nesse sentido que pode ser entendido o tom geral do texto Superação da metafísica. Lá se fala de uma penúria que ainda não atingiu o seu momento seminal, da permanência na ilusão de que é possível comandar os destinos da técnica ou de que tudo depende de um acordo planetário assinado em torno de alguma grande e imaginária mesa, para a sua correta administração. Pode-se acrescentar que essa encoberta penúria sinaliza também a perda da profundidade filosófica, por exemplo, com que era tratado por Platão, lá no início da metafísica, o problema da instauração dos modelos de comportamento, a ponto de, diante das atuais urgências, falar-se simplesmente em fazer viger declarações universais de direitos do homem ou sobre a necessidade de quarentenas éticas e acordos ecológicos, ficando em plano cada vez mais secundário a questão do porquê de, até o presente momento, essas medidas não terem sido postas em prática; ou por que e como se imagina que agora o seriam.
A indigente auto-suficiência de que fala Heidegger é, em suma, a cegueira diante daquilo que, para além da nossa vontade e ilusão de controle, espantosamente tem garantido as estabilidades que permitem, inclusive, que se possa falar de coisas tais como controle, previsão e probabilidade; e mesmo que se possa apostar no cumprimento de acordos salvadores.
As raízes dessa cegueira, o autor as encontra no tipo de abordagem ou abandono de questões seminais - como "por que existe afinal ente e não antes nada?"16 -, que, filosoficamente, correspondem à incapacidade de dar acolhida a qualquer assombro mais radical. Pois o que é pretensa e inteiramente provocado, causado ou garantido não deixa lugar para a textura de nenhum espanto, para a fruição de nenhuma doação, para a experiência de nenhum Ereignis, para a vigência de nenhum apreço ou respeito por aquilo que plástica e renovadamente acontece, quando nada do que fizéssemos poderia garantir que acontecesse.
É, todavia, essa mesma falta de atenção a algo que já está sempre sendo concedido, como destino, como história, como linguagem ou mesmo como natureza, e justo no que pode ser percebido como "falta", que, às avessas e a despeito de todas as dificuldades, impede a decretação final da impossibilidade de qualquer superação. De fato, já se falou tangencialmente dos acenos que, em Heidegger, ladeiam a detecção da atual penúria, em geral ligados a alguma espécie de escuta, espera ou vigília, de chamada de atenção para o acontecer das coisas e para a possibilidade de uma "experiência do pensamento".17 O tom, certamente cauteloso, justifica-se quando se rememora o que já foi indicado, isto é, que para esse filósofo o que a cada momento é concedido ou enviado tem a ver com um mundo já sempre de alguma forma dado, no qual ainda se pode, bem ou mal, existir e propor qualquer coisa. O que se sedimenta é algo que já desde o começo se prenunciava: que, pensada como simples substituição ou recusa do mundo técnico no qual agora nos achamos lançados, a superação não tem nenhum sentido. Mais radicalmente ainda, a ilusão de que seja possível simplesmente substituir a técnica por um modo categorialmente outro de lidar com as coisas mostra-se como uma reedição, levada ao seu epítome, do próprio projeto técnico de controle irrestrito do destino. Apenas ainda não se define aqui nenhum modo alternativo de relação com esses impasses.

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