http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302003000100004
O SENTIDO DE SE FALAR EM SUPERAÇÃO
(geralmente ligado a alguma espécie de ''escuta'')
É no sentido de uma vontade tornada técnica, do seu fechamento numa vontade de controle, que se pode entender por que motivo se torna tão problemático falar em superação. No que a técnica é tratada como instrumento de dominação do ente em geral e, assim, vista ela mesma como algo a ser dominado ou manejado com maestria, o pensamento que a toma em consideração acaba por restringir-se à questão do uso melhor ou pior que dela se possa fazer. O projeto passa a ser um projeto de explícita auto-suficiência, com o fechamento da dimensão de tudo o que, para além da vontade, da influência ou da capacidade do sujeito controlador, tem o poder de livre e misteriosamente fazer durar, conceder, deixar-ser. O perigo maior é que nesse fechamento, em que todos os olhares se voltam para aquilo que o homem pode ou não pode fazer, de si mesmo e dos demais entes, passa despercebido um estranho refluxo. O que principalmente se deixa de perceber é quão técnico é o homem que lida com a técnica, ou seja, que é a técnica que domina o homem e não o contrário, e tanto mais quanto mais ele se concentra na tarefa de aperfeiçoá-la e de tecnicamente aperfeiçoar-se. Mal suspeita o homem de hoje que não pode deixar de ser técnico na sua luta pela sobrevivência, imerso que está num mundo onde impera a lei do mais técnico, reedição mudada daquela lei do mais forte que o projeto metafísico, na sua busca de justiça e garantia, tanto temeu e quis evitar.
É nesse sentido que pode ser entendido o tom geral do texto Superação da metafísica. Lá se fala de uma penúria que ainda não atingiu o seu momento seminal, da permanência na ilusão de que é possível comandar os destinos da técnica ou de que tudo depende de um acordo planetário assinado em torno de alguma grande e imaginária mesa, para a sua correta administração. Pode-se acrescentar que essa encoberta penúria sinaliza também a perda da profundidade filosófica, por exemplo, com que era tratado por Platão, lá no início da metafísica, o problema da instauração dos modelos de comportamento, a ponto de, diante das atuais urgências, falar-se simplesmente em fazer viger declarações universais de direitos do homem ou sobre a necessidade de quarentenas éticas e acordos ecológicos, ficando em plano cada vez mais secundário a questão do porquê de, até o presente momento, essas medidas não terem sido postas em prática; ou por que e como se imagina que agora o seriam.
A indigente auto-suficiência de que fala Heidegger é, em suma, a cegueira diante daquilo que, para além da nossa vontade e ilusão de controle, espantosamente tem garantido as estabilidades que permitem, inclusive, que se possa falar de coisas tais como controle, previsão e probabilidade; e mesmo que se possa apostar no cumprimento de acordos salvadores.
As raízes dessa cegueira, o autor as encontra no tipo de abordagem ou abandono de questões seminais - como "por que existe afinal ente e não antes nada?"16 -, que, filosoficamente, correspondem à incapacidade de dar acolhida a qualquer assombro mais radical. Pois o que é pretensa e inteiramente provocado, causado ou garantido não deixa lugar para a textura de nenhum espanto, para a fruição de nenhuma doação, para a experiência de nenhum Ereignis, para a vigência de nenhum apreço ou respeito por aquilo que plástica e renovadamente acontece, quando nada do que fizéssemos poderia garantir que acontecesse.
É, todavia, essa mesma falta de atenção a algo que já está sempre sendo concedido, como destino, como história, como linguagem ou mesmo como natureza, e justo no que pode ser percebido como "falta", que, às avessas e a despeito de todas as dificuldades, impede a decretação final da impossibilidade de qualquer superação. De fato, já se falou tangencialmente dos acenos que, em Heidegger, ladeiam a detecção da atual penúria, em geral ligados a alguma espécie de escuta, espera ou vigília, de chamada de atenção para o acontecer das coisas e para a possibilidade de uma "experiência do pensamento".17 O tom, certamente cauteloso, justifica-se quando se rememora o que já foi indicado, isto é, que para esse filósofo o que a cada momento é concedido ou enviado tem a ver com um mundo já sempre de alguma forma dado, no qual ainda se pode, bem ou mal, existir e propor qualquer coisa. O que se sedimenta é algo que já desde o começo se prenunciava: que, pensada como simples substituição ou recusa do mundo técnico no qual agora nos achamos lançados, a superação não tem nenhum sentido. Mais radicalmente ainda, a ilusão de que seja possível simplesmente substituir a técnica por um modo categorialmente outro de lidar com as coisas mostra-se como uma reedição, levada ao seu epítome, do próprio projeto técnico de controle irrestrito do destino. Apenas ainda não se define aqui nenhum modo alternativo de relação com esses impasses.
Nenhum comentário:
Postar um comentário