DE: Algumas convicções serenas...
5. Perspectivas de futuro: para uma cultura do cuidado
Cuidar, enquanto gostar de (mögen) é tornar possível (möglich) (Heidegger, M., 2002: 5)7, é poder escutar o outro, poder escutar o ser e o seu retirar-se, poder pressentir o abismo e retirar-se a tempo. É estar alerta ante o Perigo, experimentar a angústia e «ter cuidado». A «heurística do medo» de que fala Jonas está também aqui pré-anunciada, oferecendo o solo ontológico para uma possível aplicação ética meta-ontológica, que signifique a resposta responsável do homem, entregue a si próprio em autenticidade, ao desafio do ser, no seu aparecer e ocultar-se.
Nas Lições de 1925, muito centralmente (Heidegger, 1979: 409-411), e em Ser e Tempo, mais de passagem (Heidegger, 1977: 195-196), Heidegger atende, neste contexto, a dois fenómenos habitualmente descuidados na análise: a inclinação (Hang) e a pulsão (Drang), que define como modalidades modificadas do cuidado (Modifikat der Sorge).
A primeira implica o estar pendente de, o «deixar-se arrastar» por aquilo ou aquele de quem se está à beira (ein Hin-zu des Sich-ziehen-lassens aus einem Wobei). Não há consideração do outro como um outro pleno, não só como indivíduo mas como Dasein. É a descrição do que, no comentário de Santo Agostinho, aparecia como tentatio, em contraste com o que em «O que é a Metafísica?» aparecerá, em expressão particularmente feliz, ao mencionar a «alegria que nos proporciona a presença do Dasein – e não da mera pessoa – de um ser querido» (Heidegger, 1976, 110). A inclinação, na sua forma passional, dirija-se a um ser humano ou a coisas (por exemplo, na gula ou na avareza, na ânsia de poder que se impõe à natureza) é uma modificação privativa do cuidado: é o seu «estar preso àquilo de que se está à beira», isto é, o não ser livre nem deixar ser livre, portanto, não abrir possibilidades. É o contrário do que, muito mais tarde, Heidegger chamará serenidade, Gelassenheit.
A pulsão (Drang), por seu lado, urge e empurra na direcção de. Também neste caso, não se pode falar de liberdade: a acção compulsiva e o recalcamento cegam, não permitindo descobrir senão o que já de antemão se quer encontrar. Não há, em contrapartida, «amor» que cegue. O amor – diz Heidegger – iluminaria. Só a pulsão pode ser cega (Heidegger, 1995, 410)8. Porém, conduzida pelo Cuidado, no seu sentido autêntico, a impulsividade atenta e inquieta, mais até que a dependência da inclinação, poderia abrir possibilidades, isto é, deixar aparecer livremente o outro ou o ser que, se não, se encobre.
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caminho feito mostrou-nos um percurso simultâneo e paralelo: aquele que é o de cada qual, que poderíamos mencionar como o «em cada caso meu», e aquele que se diz de um «ser-uns-com-os-outros», em que o em cada caso meu, sem se diluir totalmente, se apaga no seu protagonismo. Os grupos a que pertenço são também, em cada caso, meus. E a sua história é, em cada caso, minha. A minha decisão confina-me ao espaço-tempo da minha existência histórica, ao meu ser finito. Mas a decisão do meu tempo, da era a que pertenço e não domino, é a que in-flui no fluido que é a história. E esta, no mundo poente – occidens – que é o nosso, leva a dinâmica indelével da decisão implícita da modernidade, que entende o cuidado enquanto progresso da sociedade do bem-estar, com tudo o que ela implica de administração dos bens comuns, isto é, de um mero besorgen, estar ocupado pragmático no trato intramundano com as coisas: da natureza enquanto matéria prima e fonte de energia, dos humanos enquanto mão de obra ou força de trabalho, na transformação do mundo, da cultura enquanto empresa e entretenimento, da educação enquanto formação de uma via de continuidade, do Estado-Providência entendido como «cuidado» no sentido de «gestão do potencial vivo».
Foucault chamou a esta gestão pública da vida humana e seus diferentes âmbitos, mediante o poder político, biopolítica e procurou pesquisar as suas raízes nas «técnicas» ligadas ao «cuidado de si», que vêm da antiguidade (v. Foucault, 2001 e 1976). Criticamente, num artigo recente, Bernard Stiegler sublinha a necessidade de criar uma outra forma social de cuidado, enquanto «cultivar aquilo de que se cuida, de o fazer frutificar e, nesse sentido, de o trans-formar», de tal modo que «educar a população seja formá-la a ela própria para tomar cuidado dela própria e dos outros, e não só deixá-la receber cuidados dispensados por um poder, qualquer que ele seja, e em nome de alguns saberes, quaisquer que eles sejam» (Stiegler, 2007: 170-171). A isto chama o autor, com galas de neologismo, «noopolítica», uma política do espírito.
A recente nomenclatura denota a necessidade sentida no presente da construção de um espaço público em que seja possível a realização – sem utopia – de um mundo cuidado e do cuidar. Ele consistiria no exercício da atenção enquanto abertura ao ser, sob as suas diferentes formas, induzido politicamente pela via formativa da educação. Não é, certamente, esse exercício que estamos habituados a ver promulgar aos mais diferentes níveis na sociedade industrial em crise, de que não podemos ausentar-nos. É, em qualquer caso, a via de programação técnica e profissionalizante, que vemos desenvolver-se na construção actual da realidade individual e colectiva e na sua projecção para o futuro.
O campo semântico de «cuidar» e de «cuidado» guarda, no português actual, o sentido original de uma etimologia inesperada: a do latim cogitare, pensar. Na forma transitiva, «cuidar» é pensar: atender a, reflectir sobre – e, por isso, interessar-se por, tratar de, preocupar-se por, ter cautela com. Cuidamos de nós e dos outros, quando, solícitos, tratamos de assistir-lhes nas suas necessidades ou padecimentos, quando nos ocupamos deles. «Cuidadosos» – às vezes tão só atentos, outras inquietos – abrimo-nos e oferecemo-nos nesses desvelos. Quantas vezes não «estamos em cuidado», ansiosos ou temerosos de que algo infausto aconteça! «Ter cuidado» é ser diligente mas também cauteloso: é pensar sentindo, atendendo ao encoberto futuro e ao imediato presente, tendo em conta o que já de antemão sabemos. O cuidar é, neste sentido, uma forma activa e pensante de estar ocupado no mundo da vida. Cuido, ergo sou – poderíamos dizer, parafraseando Descartes.
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A intencionalidade, no sentido husserliano, manifesta, pois, a forma de acesso das «coisas elas mesmas» à consciência intencional que as fixa, de maneira universal, na correlação noético-noemática. Não há coisas «em si», à maneira pré-crítica, que Kant recolhe como de impossível experiência. Tudo nos advém fenomenologicamente sob a forma plural (múltiplas orientações e perspectivas) mas necessária da «vivência intencional». Recordemos que, para Husserl, este fenómeno sendo marcadamente de tipo cognitivo, não o é de maneira exclusiva:
«A estruturação intencional de um processo perceptivo tem a sua tipologia de essência fixa, que tem que realizar-se necessariamente, em toda a sua extraordinária complexidade, para que uma coisa corpórea possa ser simplesmente percepcionada. Se a mesma coisa é intuída de outros modos, por ex. no da recordação ou da fantasia, da exibição em imagem, então, de certo modo, repetem-se todos os conteúdos intencionais da percepção, mas todos particularmente modificados na forma correspondente. Também em qualquer outro género de vivências psíquicas acontece algo semelhante: a consciência que julga, que avalia, que aspira a, não é um mero e vazio ter conscientes os respectivos juízos, valores, metas e meios. Estes constituem-se numa intencionalidade fluida, com a sua tipologia essencial fixa» (ibidem).
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Cuidado é projecção de temores e desejos e molesto padecimento pelo vivido e por viver, mas também escuta do íntimo apelo da consciência e aceitação de si-mesmo na decisão de autenticidade. E é também, privativamente, o des-cuidado retomar de comportamentos ritualizados, que enchem as horas, como que sem dar por isso, sem lhes dar sentido. Por isso,
«visto a partir do fenómeno do cuidado, enquanto estrutura fundamental do Dasein, pode mostrar-se que aquilo que se concebe na Fenomenologia como intencionalidade, e o modo como é concebido, é fragmentário, é um fenómeno visto só do exterior. Ora, o que se menciona como intencionalidade – o mero dirigir-se a – tem ainda de ser retrotransferido para a estrutura fundamental unitária do ser-se-já-antecipadamente-no-ser-à-beira-de. Só esta [estrutura] é que constitui o fenómeno autêntico, que corresponde ao que se menciona de maneira inautêntica e chã, de forma isolada e unidireccional, como intencionalidade.» (Heidegger, 1979: 420)
Nas Lições de 1925, muito centralmente (Heidegger, 1979: 409-411), e em Ser e Tempo, mais de passagem (Heidegger, 1977: 195-196), Heidegger atende, neste contexto, a dois fenómenos habitualmente descuidados na análise: a inclinação (Hang) e a pulsão (Drang), que define como modalidades modificadas do cuidado (Modifikat der Sorge).
A primeira implica o estar pendente de, o «deixar-se arrastar» por aquilo ou aquele de quem se está à beira (ein Hin-zu des Sich-ziehen-lassens aus einem Wobei). Não há consideração do outro como um outro pleno, não só como indivíduo mas como Dasein. É a descrição do que, no comentário de Santo Agostinho, aparecia como tentatio, em contraste com o que em «O que é a Metafísica?» aparecerá, em expressão particularmente feliz, ao mencionar a «alegria que nos proporciona a presença do Dasein – e não da mera pessoa – de um ser querido» (Heidegger, 1976, 110). A inclinação, na sua forma passional, dirija-se a um ser humano ou a coisas (por exemplo, na gula ou na avareza, na ânsia de poder que se impõe à natureza) é uma modificação privativa do cuidado: é o seu «estar preso àquilo de que se está à beira», isto é, o não ser livre nem deixar ser livre, portanto, não abrir possibilidades. É o contrário do que, muito mais tarde, Heidegger chamará serenidade, Gelassenheit.
A pulsão (Drang), por seu lado, urge e empurra na direcção de. Também neste caso, não se pode falar de liberdade: a acção compulsiva e o recalcamento cegam, não permitindo descobrir senão o que já de antemão se quer encontrar. Não há, em contrapartida, «amor» que cegue. O amor – diz Heidegger – iluminaria. Só a pulsão pode ser cega (Heidegger, 1995, 410)8. Porém, conduzida pelo Cuidado, no seu sentido autêntico, a impulsividade atenta e inquieta, mais até que a dependência da inclinação, poderia abrir possibilidades, isto é, deixar aparecer livremente o outro ou o ser que, se não, se encobre.
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caminho feito mostrou-nos um percurso simultâneo e paralelo: aquele que é o de cada qual, que poderíamos mencionar como o «em cada caso meu», e aquele que se diz de um «ser-uns-com-os-outros», em que o em cada caso meu, sem se diluir totalmente, se apaga no seu protagonismo. Os grupos a que pertenço são também, em cada caso, meus. E a sua história é, em cada caso, minha. A minha decisão confina-me ao espaço-tempo da minha existência histórica, ao meu ser finito. Mas a decisão do meu tempo, da era a que pertenço e não domino, é a que in-flui no fluido que é a história. E esta, no mundo poente – occidens – que é o nosso, leva a dinâmica indelével da decisão implícita da modernidade, que entende o cuidado enquanto progresso da sociedade do bem-estar, com tudo o que ela implica de administração dos bens comuns, isto é, de um mero besorgen, estar ocupado pragmático no trato intramundano com as coisas: da natureza enquanto matéria prima e fonte de energia, dos humanos enquanto mão de obra ou força de trabalho, na transformação do mundo, da cultura enquanto empresa e entretenimento, da educação enquanto formação de uma via de continuidade, do Estado-Providência entendido como «cuidado» no sentido de «gestão do potencial vivo».
Foucault chamou a esta gestão pública da vida humana e seus diferentes âmbitos, mediante o poder político, biopolítica e procurou pesquisar as suas raízes nas «técnicas» ligadas ao «cuidado de si», que vêm da antiguidade (v. Foucault, 2001 e 1976). Criticamente, num artigo recente, Bernard Stiegler sublinha a necessidade de criar uma outra forma social de cuidado, enquanto «cultivar aquilo de que se cuida, de o fazer frutificar e, nesse sentido, de o trans-formar», de tal modo que «educar a população seja formá-la a ela própria para tomar cuidado dela própria e dos outros, e não só deixá-la receber cuidados dispensados por um poder, qualquer que ele seja, e em nome de alguns saberes, quaisquer que eles sejam» (Stiegler, 2007: 170-171). A isto chama o autor, com galas de neologismo, «noopolítica», uma política do espírito.
A recente nomenclatura denota a necessidade sentida no presente da construção de um espaço público em que seja possível a realização – sem utopia – de um mundo cuidado e do cuidar. Ele consistiria no exercício da atenção enquanto abertura ao ser, sob as suas diferentes formas, induzido politicamente pela via formativa da educação. Não é, certamente, esse exercício que estamos habituados a ver promulgar aos mais diferentes níveis na sociedade industrial em crise, de que não podemos ausentar-nos. É, em qualquer caso, a via de programação técnica e profissionalizante, que vemos desenvolver-se na construção actual da realidade individual e colectiva e na sua projecção para o futuro.
O campo semântico de «cuidar» e de «cuidado» guarda, no português actual, o sentido original de uma etimologia inesperada: a do latim cogitare, pensar. Na forma transitiva, «cuidar» é pensar: atender a, reflectir sobre – e, por isso, interessar-se por, tratar de, preocupar-se por, ter cautela com. Cuidamos de nós e dos outros, quando, solícitos, tratamos de assistir-lhes nas suas necessidades ou padecimentos, quando nos ocupamos deles. «Cuidadosos» – às vezes tão só atentos, outras inquietos – abrimo-nos e oferecemo-nos nesses desvelos. Quantas vezes não «estamos em cuidado», ansiosos ou temerosos de que algo infausto aconteça! «Ter cuidado» é ser diligente mas também cauteloso: é pensar sentindo, atendendo ao encoberto futuro e ao imediato presente, tendo em conta o que já de antemão sabemos. O cuidar é, neste sentido, uma forma activa e pensante de estar ocupado no mundo da vida. Cuido, ergo sou – poderíamos dizer, parafraseando Descartes.
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A intencionalidade, no sentido husserliano, manifesta, pois, a forma de acesso das «coisas elas mesmas» à consciência intencional que as fixa, de maneira universal, na correlação noético-noemática. Não há coisas «em si», à maneira pré-crítica, que Kant recolhe como de impossível experiência. Tudo nos advém fenomenologicamente sob a forma plural (múltiplas orientações e perspectivas) mas necessária da «vivência intencional». Recordemos que, para Husserl, este fenómeno sendo marcadamente de tipo cognitivo, não o é de maneira exclusiva:
«A estruturação intencional de um processo perceptivo tem a sua tipologia de essência fixa, que tem que realizar-se necessariamente, em toda a sua extraordinária complexidade, para que uma coisa corpórea possa ser simplesmente percepcionada. Se a mesma coisa é intuída de outros modos, por ex. no da recordação ou da fantasia, da exibição em imagem, então, de certo modo, repetem-se todos os conteúdos intencionais da percepção, mas todos particularmente modificados na forma correspondente. Também em qualquer outro género de vivências psíquicas acontece algo semelhante: a consciência que julga, que avalia, que aspira a, não é um mero e vazio ter conscientes os respectivos juízos, valores, metas e meios. Estes constituem-se numa intencionalidade fluida, com a sua tipologia essencial fixa» (ibidem).
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Cuidado é projecção de temores e desejos e molesto padecimento pelo vivido e por viver, mas também escuta do íntimo apelo da consciência e aceitação de si-mesmo na decisão de autenticidade. E é também, privativamente, o des-cuidado retomar de comportamentos ritualizados, que enchem as horas, como que sem dar por isso, sem lhes dar sentido. Por isso,
«visto a partir do fenómeno do cuidado, enquanto estrutura fundamental do Dasein, pode mostrar-se que aquilo que se concebe na Fenomenologia como intencionalidade, e o modo como é concebido, é fragmentário, é um fenómeno visto só do exterior. Ora, o que se menciona como intencionalidade – o mero dirigir-se a – tem ainda de ser retrotransferido para a estrutura fundamental unitária do ser-se-já-antecipadamente-no-ser-à-beira-de. Só esta [estrutura] é que constitui o fenómeno autêntico, que corresponde ao que se menciona de maneira inautêntica e chã, de forma isolada e unidireccional, como intencionalidade.» (Heidegger, 1979: 420)
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