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PORQUE NÃO? CONSTRUINDO ''POR VIA'' DAS DÚVIDAS.
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5. O salto para um "outro começo"
Tem-se que a alternativa não pode ser nem a do abandono, nem a do controle, e que falar de algo que não seja vontade de deixar para trás ou de dominar uma metafísica tornada técnica é algo que envolve essencial dificuldade. De pronto, é preciso cuidar para não alçar Heidegger, sub-repticiamente, a alguma instância "exterior" ou "posterior" à metafísica; ou para não assumir, mais sub-repticiamente ainda, nenhuma posição mágica ou olímpica, a partir da qual Heidegger e toda a metafísica possam ser olhados. Mantendo em pauta a envergadura adquirida pelo termo na presente reflexão, pretender, unilateralmente, por simples autodeterminação, não ser metafísico na relação com a "metafísica" - e isso diz respeito tanto a Heidegger quanto aos seus leitores -, é meter-se numa espécie de esquecimento redobrado de que há algo que nos é enviado ou destinado, e que, nesse momento, o envio é o acabamento técnico da metafísica. É a linguagem, são os hábitos, são os anseios herdados, são as noções-chave a partir das quais se pensa a realidade, enfim, é o próprio modo da discussão filosófica que são os de uma metafísica em fase de acabamento. O que se põe em questão, portanto, para um pensamento capaz de falar em superação, é a noção mesma de liberdade, quer dizer, a questão da possibilidade e do limite de escolha em relação àquilo que a cada vez se encontra no mundo.
Vejam-se as Contribuições à filosofia, texto publicado postumamente e tido como de singular importância na vasta obra de Heidegger. Ao falar do salto (der Sprung - cap. 4) necessário ao pensamento de um "outro começo" (andere Anfang), o autor caracteriza o "fim do primeiro começo" como cada vez "mais vivo", "mais rápido" e "mais confuso que nunca", e alude ao problema da passagem como "o mais digno de questionamento" e "o mais mal-entendido". Com especial ênfase ele diz: "O fim do primeiro começo propagar-se-á por um longo tempo através da passagem (Übergang) e até mesmo pelo outro começo" (Heidegger 1936b, p. 228; tr. ingl., p. 161).18
Essas imagens reforçam a pertinência de se continuar falando em superação, mas trazem matizes novos à discussão. A convivência, por exemplo, do longo tempo necessário a essa transição com a rapidez e a confusão que tomam conta desse tempo torna a coisa bastante difícil para quem está no meio dela. Quase trinta anos mais tarde, no citado O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, lêem-se coisas como:
Aqui se tem em mira a possibilidade da civilização mundial, assim como agora apenas começou, superar algum dia seu carácter técnico-científico-industrial como única medida de habitação do homem no mundo. [Mas...] incerto permanece se a civilização mundial será em breve subitamente destruída, ou se se cristalizará numa longa duração que não resida em algo permanente, mas que se instale, muito ao contrário, na mudança contínua em que o novo é substituído pelo mais novo. O pensamento preparador em questão não quer nem pode predizer o futuro. Procura apenas ditar para o presente algo que há muito, exatamente no começo da Filosofia, já lhe foi dito, e que, entretanto, não foi propriamente pensado.(Heidegger 1964, p. 67; tr. br., p. 272)
6. O salto e a reviravolta
Uma possível recolocação da questão é: em que medida Heidegger, ele mesmo, consegue efetivar esse outro tipo de relação com a metafísica que permite dar ouvidos àquilo que nos foi dito no começo da filosofia e não foi ainda propriamente pensado?
O importante, sem sair da mistura de águas que caracteriza o momento presente, é descrever a espécie de salto, a partir do solo lingüístico, histórico e destinal, de uma metafísica em fase de acabamento, que tornou possível a Heidegger relacionar-se com seus textos ante-riores, falando de uma reviravolta(Kehre). Mais ainda, porque é a partir desse salto - que pode ser inclusive o redimensionamento da possibilidade de se falar de um salto - que as questões aqui resgatadas se desdobram em sua plenitude. Mas é necessário recuperar a linha principal de pensamento para redirecionar o questionamento e preparar a finalização do trabalho.
Pois bem, a liberdade de acolher o que nos é destinado, de uma forma diferente da que até agora tem prevalecido, Heidegger a sinaliza na idéia do Ereignis, sobretudo de modo negativo, na descrição de uma incapacidade geral de mínima permanência no espanto ante aquilo que acontece, quando poderia perfeitamente não acontecer. Essa incapacidade de expe-riência se estende, por certo, e de modo insigne, ao acontecimento da filosofia. A necessidade de pensar uma relação com a metafísica em moldes outros que não os do seu voluntarioso ultrapassamento suscita, por conseguinte, um esclarecimento da relação que esse outro pensamento, supostamente mais próximo do Ereignis, guarda ou pretende guardar com a sua história. A idéia - diante da difícil tarefa de repensar a relação geral com o que acontece e, mais particularmente, um modo de relação com a técnica que não seja nem abandono, nem controle, nem simples aceitação - é priorizar o problema do acontecimento da própria filosofia, vista como espaço de jogo no qual o mundo aparece atravessado por tais questões. É Heidegger mesmo quem diz: "Pois qualquer tentativa de preparar um acesso à presumível tarefa do pensamento depende do retorno sobre o todo da História da Filosofia" (Heidegger 1964, p. 66; tr. br., p. 272).
Argumento recuperado, sabe-se que a indicação textual de uma reviravolta se dá pela primeira vez em Sobre o "humanismo". A passagem fala de um ponto em que "o todo se inverte" (hier kehrt sich das Ganze um) e, também, que essa reviravolta não é uma modificação no ponto de vista de Ser e tempo, mas unicamente nela é que o pensamento perseguido atinge a região dimensional a partir da qual Ser e tempo é experimentado, e exatamente a partir da experiência fundamental do esquecimento do Ser (Heidegger 1946, p. 17; tr. br. 1967, p. 47; tr. br. 1973, p. 354).19
É, todavia, o acréscimo de uma outra passagem do mesmo texto que define aqui o ângulo de aproximação à essa multifária questão. Lê-se:
Toda refutação no campo do pensar essencial é insensata. A disputa entre os pensadores é a "disputa amorosa" da questão mesma. Ela lhes proporciona reciprocamente o simples pertencimento ao Mesmo, a partir do qual encontram aquilo que lhes é destinado no destino do Ser. (Heidegger 1946, p. 24; tr. br. 1967, p. 59; tr. br. 1973, p. 358) 20
A junção dessa passagem que, não por acaso, serve de epígrafe ao presente texto, mostra a direção na qual se desdobra, nesse momento, a preocupação de Heidegger com o acontecimento da filosofia, com a história de um pensamento da qual o outro dele mesmo começa a fazer parte. Percebe-se que pelo menos o tom é diferente daquele que metodicamente acompanhava o planejamento de uma "destruição da história da ontologia", há vinte anos; pois se, a essa altura, Ser e tempo já é metafísica, história de um esquecimento do Ser, nem por isso a reviravolta é tratada como "modificação do seu ponto de vista". Repetindo, Heidegger diz que não há sentido na refutação do dizer dos pensadores essenciais e que a luta entre esses pensadores, ao modo de uma disputa ou discussão amorosa, proporciona-lhes "o simples pertencimento ao Mesmo, no qual experimentam o que lhes é destinado no destino do Ser". Isso significa que a metafísica ou esquecimento do Ser, ao tornar-se linguagem no dizer dos pensadores essenciais, faz-se lugar de experiência de uma destinação e de um pertencimento; e que, entre os múltiplos aspectos da reviravolta, está a possibilidade de uma reconsideração da relação que o pensamento estabelece, ou pode estabelecer, com a sua história.
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