segunda-feira, 5 de novembro de 2018

FORMAÇÃO DA ORDEM COMPETITIVA NO BRASIL (segundo Florestan Fernandes)


A introdução do trabalho assalariado e a consolidação da “ordem econômica competitiva”, no final do século XIX, não liberaram completamente as potencialidades da racionalidade burguesa. Antes promoveram a acomodação de formas econômicas opostas, gerando uma sociedade híbrida e uma formação social, o “capitalismo dependente”, marcada pela coexistência e interconexão do arcaico e do moderno.

No último ensaio, redigido em 1974, o conceito de “capitalismo dependente” passa a ser determinado pela associação da burguesia com o capital internacional. Com isso, altera-se o peso da dinâmica do sistema capitalista mundial e a própria periodização, marcada pela emergência e expansão de três tipos de capitalismo: o moderno (1808-1860), o competitivo (1860-1950) e o monopolista (1950-…).

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Fernandes define que no Brasil não houve “feudalismo” e nem burgo, o país era uma sociedade colonial. Para o autor, o “burguês já surge, no Brasil, como uma entidade especializada, [...]” (p. 34), que foi se estabelecendo lentamente dentro da ordem. A burguesia utilizou-se do estatuto colonial para ordenar sua lógica de dominação, nesse sentido, “as categorias de pensamento inerente ao liberalismo preenchiam uma função clara: cabia-lhes suscitar e ordenar, a partir de dentro e espontaneamente, através do estatuto nacional, mecanismos econômicos, sociais e políticos que produzissem efeitos equivalentes aos que eram atingidos antes, a partir de fora e compulsoriamente, através do estatuto colonial” (p. 54). Assim é que foram criadas as condições para o início da Revolução burguesa no Brasil. O liberalismo, a ideologia de dominação da burguesia, “adaptou-se” à dominação estamental e patrimonial, ao tradicionalismo e mandonismo presente na aristocracia agrária. E mais, agregou em sua “formação” todos esses traços do passado colonial brasileiro, com a sua lógica de dominação e opressão.
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A Independência permitiu os primeiros traços da sociabilidade burguesa, bloqueada até então pelo estatuto colonial e o grande senhor do engenho. É clara a relação de como os ideais de justificação do capitalismo vão se estruturando dentro da ordem do estatuto colonial, constituindo lentamente uma nova ordem social. Nessa mesma lógica, as classes sociais vão pressionando a estrutura estamental, aparecendo no mercado, nas cidades e exportações, por meio das atividades mercantis e da presença de novos personagens - os banqueiros, o fazendeiro do café e o imigrante. O trabalho assalariado e a consolidação da “ordem econômica competitiva” são introduzidos no contexto social, econômico e político, em fins do século XIX.
Para o autor, “o que importa assinalar, em termos da análise sociológica, é o que representam essas funções histórico-sociais da acumulação estamental do capital para o desenvolvimento interno do capitalismo” (p.99). Além da acumulação capitalista conter traços da acumulação estamental, no que se refere ao “privilégio” de apenas um segmento, a burguesia se justificou dentro da ordem antiga mantendo sua estrutura desigual e nada democrática.
Ao introduzir a segunda parte do livro, Fernandes explica que em todas as relações de troca e produção se desenvolve uma ordem social, que permite a manutenção do sistema dessas relações. As relações capitalistas são compreendidas como ordem social competitiva. Fernandes esclarece que nas sociedades dependentes, o capitalismo é introduzido antes da ordem social competitiva e, assim, a ideologia vai se adaptando à ordem anterior. A chamada “ruptura” se dá pelas estruturas de dominação, de maneira gradual, por meio da economia mundial, o que condiciona a transição. No Brasil, “as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial não só moldaram a sociedade nacional subsequente: determinaram, a curto e a largo prazos, as proporções e o alcance dos dinamismos econômicos absorvidos do mercado mundial” (p.180).
Nesse contexto, a nova ordem social competitiva foi sendo introduzida a partir de brechas encontradas na organização estamental e estatuto colonial, ganhando força para extinção da ordem social colonial no sentido de alterar o regime senhorial, o que favoreceu a grande burguesia. Mesmo assim, a ordem social competitiva carrega traços da ordem social anterior, por isso, Fernandes a esboça como fragmentada. A competição capitalista da burguesia brasileira é vinculada aos valores e aos processos que concorreram para a manutenção do passado colonial do mandonismo. É isso o que justifica o capitalismo brasileiro vinculado ao passado patrimonialista e autocrático.
Não existiam relações de trabalho nos estamentos, era a escravidão. Já na nova ordem social competitiva fragmentada, apesar da existência do “trabalho livre”, configura-se “de modo mais cínico e brutal, como puro instrumento de espoliação econômica e de acumulação tão intensiva quanto possível de capital” (p.232-233). Mais ainda, “o elemento ou a dimensão humana bem como a ‘paz social’ são figuras de retórica, de explícita mistificação burguesa, e quando precisam ir além disso, o mandonismo e o paternalismo tradicionalistas cedem seu lugar à repressão policial e à dissuasão político militar” (p.233). É desse modo que Fernandes encerra a segunda parte do livro, retratando elementos para compreensão de como foi a “Revolução burguesa” e a lógica cruel de dominação do capitalismo no Brasil.
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A burguesia instaurou no Brasil uma revolução dentro da ordem, como já destacado. Isso impôs, na década de 1930, com o Estado Novo, pressões para a concretização do capitalismo competitivo no Brasil. Nessa seara, destacam-se elementos como as pressões externas do capitalismo monopolista mundial, o proletariado nacional, as massas populares e a intervenção direta do Estado. Pressões que permitiram a consolidação do capitalismo competitivo e a aproximação com o mercado externo.
Nessa lógica de acumulação e dominação burguesa, o processo de industrialização foi realizado sem romper com a dependência e as influências externas, ocorrendo a crise do poder burguês a partir da transição do capitalismo comercial para o capitalismo industrial. “O problema central da investigação histórico-sociológica da Revolução Burguesa no Brasil consiste na crise do poder burguês, que se localiza na era atual e emerge como consequência da transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista” (p. 252).
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Em sua última parte do livro, Fernandes definiu como modelo autocrático burguês de dominação capitalista o processo que identificou como uma “contrarrevolução prolongada”. Enxerga o Brasil, a partir de uma lógica de dominação mundial, como país de periferia “moderna”, o que acentua e intensifica a industrialização e urbanização em favor da promoção do mercado capitalista. A burguesia é vista, assim, como “classe possuidora e privilegiada”, bem como instituição direcionadora da luta de interesses capitalistas que converte o Estado em “eixo político da recomposição do poder econômico, social e político” (p. 309) da mesma.
A burguesia brasileira nunca teve impulsos revolucionários para realizar a revolução nacional e democrática. Trata-se de uma burguesia que articula o arcaico com o novo, que dissemina a ideia do Brasil como país de mercado moderno, mas sem abandonar a condição de dependência, pautada na experiência de um “capitalismo de periferia avançada”.

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