sábado, 10 de novembro de 2018

EMIL CIORAN: “OS MOMENTOS HISTÓRICOS MAIS FÉRTEIS FORAM OS MAIS IRRESPIRÁVEIS”



Emil Cioran é um abraço no abismo. O autor trágico vivido no século XX é o desvario da elegância em frases capazes de levar aos extremos. Nascido em 1911, em Rasinari, Romênia, forma-se em Filosofia pela Universidade de Bucareste e o primeiro livro lança aos 22 anos em profundo e espantoso lirismo. Em 1937, Cioran decide morar na França, onde escreve os demais livros e deixa para a eternidade obras das mais trágicas do Pensamento. O filósofo romeno morre em 1975. Para dar início à Série Além – Entrevistas do outro mundo, apresentamos um dos autores inspiração para a FAUSTO, quem teríamos entrevistado em mesura. A magia dos livros é mesmo essa: poder viajar épocas sem sair do lugar, conhecer nomes que de tão vivos tornam-se nossos amigos, ainda que estejam mortos. Devemos tudo à escrita, o grande portal.

Cioran
Emil Cioran (1911-1975).
FAUSTO – Gostaríamos de agradecer a atenção em se dispor do conforto do Além para falar com a FAUSTO…
Emil Cioran: Sabe que de tanto acumular mistérios nulos e monopolizar o sem sentido, a vida inspira mais pavor do que a morte: é ela a grande desconhecida.

Fez amigos no Além?
Étienne de la Boétie.

Obviamente falam de liberdade?
O homem é tão pouco feito para suportar a liberdade, ou para merecê-la, que mesmo os benefícios que recebe dela o esmagam, e ela lhe acaba sendo tão penosa que aos excessos que suscita ele prefere os de terror. Nada esgota tanto quanto a posse ou o abuso da liberdade. Quem aspira à liberdade completa, só a consegue para retornar ao ponto de partida, à sua servidão inicial.

Isso parece um problema…
Ainda que o problema da liberdade seja insolúvel, podemos sempre discorrer sobre ele… Se nenhuma construção teórica consegue torná-lo perceptível a nós, fazer-nos experimentar sua realidade espessa é contraditória, uma intuição privilegiada instala-nos no coração mesmo da liberdade, a despeito de todos os argumentos inventados contra ela. E temos medo; temos medo da imensidão do possível, não estando preparados para uma revelação tão vasta e tão súbita, para esse bem perigoso ao qual aspiramos e ante o qual retrocedemos.



Há um livro maravilhoso, lançado este ano, 2017, chamado Sobre a Tirania – Vinte lições sobre o século XX. O autor, Timothy Snyder, faz alguns alertas chocantes sobre o que houve no século passado e que pode vir a acontecer novamente se não tomarmos as nossas responsabilidades… 
A julgar pelos tiranos que produziu, nossa época terá sido tudo, menos medíocre. Para encontrar tiranos similares, seria preciso remontar ao Império romano ou às invasões mongólicas. Bem mais do que a Stálin, é a Hitler que cabe o mérito de haver dado a tônica do século. Ele é importante, menos por si mesmo do que pelo que anuncia, esboço de nosso futuro, arauto de um sombrio advento e de uma histeria cósmica, precursor desse déspota em escala continental que conseguirá a unificação do mundo pela ciência, destinada não a libertar-nos, mas a escravizar-nos.

Snyder alerta, no último capítulo intitulado Seja o mais corajoso possível: “Se nenhum de nós estiver disposto a morrer pela liberdade, todos morreremos sobre a tirania.”
Pode-se chegar a tomar gosto pela tirania, pois o homem prefere apodrecer no medo do que enfrentar a angústia de ser ele mesmo. Generalizado o fenômeno, aparecem os césares: como recriminá-los quando respondem às exigências de nossa miséria e às súplicas de nossa covardia?

Essa covardia é acomodação?
Na verdade, merecem até ser admirados: perseguem o assassinato, sonham com ele o tempo todo, aceitam seu horror e sua ignomínia, e dedicam a ele todos os seus pensamentos, a ponto de esquecer-se do suicídio e do exílio, fórmulas menos espetaculares, embora mais doces e agradáveis.

Seria cômico se não fosse trágico… E ganham terreno quando estamos mais preocupados com o cotidiano…
Tendo optado pelo mais difícil, só podem prosperar em tempos incertos, para manter o caos ou estrangulá-lo. A época propícia para seu apogeu coincide com o fim de um ciclo de civilização. Isto é evidente para o mundo antigo, e não o será menos para o moderno, que caminha em linha reta para uma tirania não menos considerável do que a que dominava os primeiros séculos de nossa era.

Nós o conhecemos, o senhor é um dos nossos autores preferidos, mas estamos pensando se para nossos leitores que não o conhecem soará trágico ao extremo, a ponto de acharem que divaga…
Se me dissessem que divago, responderia que é realmente possível que esteja me antecipando. As datas não importam. Os primeiros cristãos esperavam o fim do mundo de um momento para outro; só se enganaram por alguns milênios… Em outra ordem de expectativa, também posso enganar-me, mas, enfim, não se avalia nem se comprova uma visão, e a que eu tenho da tirania futura impõe-se a mim como uma evidência tão decisiva que me pareceria desonroso querer demonstrar seu fundamento. É uma certeza que tanto do calafrio quanto do axioma.

Como não sucumbir?
O remédio para os nossos males é em nós mesmos que devemos buscá-los, no princípio intemporal de nossa natureza. Se a irrealidade de tal princípio fosse demonstrada, provada, estaríamos irremediavelmente perdidos.

Por quê?
A natureza nos faz opacos a nós mesmos, sujeitos a uma cegueira que gera o mundo e o governa. Se realizássemos uma investigação exaustiva sobre nós mesmos, o nojo nos paralisaria e nos condenaria a uma existência sem proveito.

Qual é a saída?
[Silêncio]

O que considera uma ilusão?
O comunismo, ilusão decretada, imposta, é um desafio à onipresença do mal, um otimismo obrigatório. Contudo, dificilmente o aceitará aquele que, graças a experiências e provações, vive na embriaguez da decepção.

Nós e nossos leitores, em grande parte, tendemos ao trágico…
Há um certo prazer em denunciar obstinadamente a fragilidade da felicidade.

Hoje, temos mais ideologias do que deveríamos?
Em si mesma, uma ideologia não é nem boa nem má. Tudo depende do momento em que é adotada. Quando estamos cansados dos valores tradicionais, nos orientamos necessariamente para a ideologia que os nega. E é por sua força de negação que ela seduz.

Ironicamente, é claro, o senhor diz preferir os tiranos aos redentores e profetas. Por quê?
Prefiro-os porque não se escondem atrás das fórmulas, porque seu prestígio é equívoco e sua sede, autodestrutiva; enquanto que os outros, redentores e profetas, possuídos por uma ambição sem limites, disfarçam seus objetivos sob preceitos enganosos, afastam-se do cidadão para reinar nas consciências, para apoderar-se delas, implantar-se nelas e criar estragos duráveis sem ter que enfrentar a acusação, merecida, entretanto, de indiscrição ou sadismo.

Permita-me a comparação, cremos que Snyder é mais otimista que o senhor. Há certa esperança em seus alertas…
Todo fim de época é um paraíso para o espírito que só recupera seu vigor e seus caprichos no meio de um organismo em plena dissolução. Quem tem o azar de pertencer a um período de criação e de fecundidade sofre suas limitações e sua rotina; escravo de uma visão unilateral, está encerrado em um horizonte limitado. Os momentos históricos mais férteis foram ao mesmo tempo os mais irrespiráveis; impunham-se como uma fatalidade, feliz para um espírito ingênuo, mortal para um amante dos espaços intelectuais. A liberdade só tem amplidão nos epígonos desiludidos e estéreis, entre as inteligências das épocas tardias, épocas cujo estilo se desagrega e não inspira mais do que uma complacência irônica.

O senhor é um epígono desiludido…
Fui, sou ou serei, é questão de gramática, não de existência. Como se pode conceder mais importância à hora que é do que a que foi ou será?
***

Dedicamos a Anthonio Jorge Delbon.

Nota 1: Devemos a ideia da série ao grande escritor Mario Prata, quem nos impressionou pela genialidade e criatividade, em 2015, com o maravilhoso livro Mario Prata entrevista uns brasileiros.

Nota 2: Todas as respostas são trechos autênticos dos livros de Emil Cioran. Nada foi alterado ou adaptado. Tivemos o imenso cuidado de preservar a integridade de seus pensamentos.

Nota 3: Realizamos pesquisa bibliográfica para construir o contexto. Os livros lidos seguem abaixo.

Referências Bibliográficas
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2012.
CIORAN, Emil. História e Utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
CIORAN, Emil. Breviário da Decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
SNYDER, Timothy. Sobre a Tirania – Vinte lições do século XX para o presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
BOÉTIE, Étienne de la. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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