http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141996000100014
Se há um tema que nesse momento chama para si as atenções de toda a sociedade, esse tema é "o desenvolvimento". Especialmente na segunda metade da década de 50 o apelo ideológico é forte, em nome do progresso e da riqueza material. O desenvolvimentismo anuncia uma era de prosperidade, promovida pelo crescimento econômico acelerado. Há um termo que se impõe às discussões: "o arranco", ou "a arrancada para o desenvolvimento" (o take-off, cunhado por Rostow). Todas as preocupações se dão em torno disso, toda a mobilização se faz para isso. O outro lado desse apelo é político, mas também é para ser resolvido pelo econômico, com o crescimento: é a manutenção da ordem social, que a ideologia diz estar ameaçada pela miséria, já que a pobreza é tida como potencialmente geradora não só de intranqüilidade, como de revolta e de "infiltração de ideologias subversivas". Deste modo, o desenvolvimento econômico acelerado seria o antídoto necessário e urgente contra a expansão do comunismo. Como conseqüência, a caracterização global da ideologia desenvolvimentista juscelinista se contém na fórmula "mudar, dentro da ordem, para garantir a ordem".
É sobre esse fundo ideológico dominante que se desenrola a atividade intelectual, variada e complexa, naquele momento. A ciência também não escapa a ele, aí compreendida particularmente a ciência social, a não ser que consiga se afastar deliberadamente dessa influência ideológica e romper com ela. O grande desafio é não se deixar prender nas malhas da ideologia dominante. Enquanto se faz oposição a aspectos do seu conteúdo (mesmo que se substitua esses aspectos por outros e por mais importantes que estes sejam), mas se continua a percebê-los e a pensá-los no quadro referencial armado pela ideologia, não se consegue sair das suas malhas. É complicado e difícil o rompimento com esse quadro referencial. Não se assume um outro quadro referencial sem sair deste, senão este "outro" não será mais do que uma parte, mesmo que diferenciada, daquela ideologia; se e enquanto estiver submetido à mesma matriz de pensamento da ideologia dominante, não pode se afirmar como efetivamente outro, diferente, com outros fundamentos e outro modo de pensar.
Florestan preocupa-se com as possibilidades, os condicionamentos e as exigências da constituição do saber científico no Brasil. Para ele, como vimos, a ciência é processo intelectual e é fenômeno histórico-cultural. Neste sentido, a atividade científica exige condições científicas e condições histórico-culturais e sociais (Fernandes, 1955a:159). Deste modo, o desenvolvimento da ciência se insere no fluxo da produção desta ciência, historicamente constituída enquanto história de um saber e no fluxo do desenvolvimento concreto da sociedade que a contém.
Considerando, assim, a produção da ciência nos termos da sua inserção no campo específico da própria ciência e da sua inserção na sociedade, ao refletir sobre o desenvolvimento da sociologia no Brasil, tematiza a questão em termos de dependência cultural. Inicialmente, essa referência é apenas indicativa, quando diz que "a sociologia foi recebida no Brasil como 'novidade' intelectual, simultaneamente à sua criação na sociedade européia. Faz parte do processo da vida literária de povos culturalmente muito dependentes manter um intercâmbio excitado com os centros estrangeiros de produção intelectual. As 'novidades' assinaláveis tornavam-se rapidamente conhecidas, ainda que não fossem reelaboradas de uma forma autônoma. O destino do saber, acumulado desse modo, se regulava pelos padrões de vida literária que faziam dele, estritamente, uma forma de ilustração e um meio de alcançar notoriedade em círculos letrados" (Fernandes, 1955b:189). A forma pela qual Florestan utiliza aí a noção de dependência cultural revela que não se trata ainda de um conceito. No entanto, as idéias a que recorre para pensar a situação opõem, embora muito simplesmente, dependência e autonomia no plano cultural.
Colocada a questão, mesmo que incipientemente, Florestan a toma como parte importante da sua elaboração. Pergunta-se quais as razões desta situação de dependência cultural. As primeiras respostas que sua formulação encontra estão no nível das relações entre a produção intelectual e as necessidades e solicitações do meio social imediato da sociedade local. Compara "Brasil" e "Europa" como dois universos distintos: "Na Europa, os processos de desenvolvimento do pensamento, da economia e da sociedade podem ser interpretados como processos interdependentes. É visível a ligação do pensamento com a solução de problemas que se colocaram no plano da ação política ou da transformação econômica. No Brasil essa ligação não é perceptível com a mesma clareza, devido ao fato do saber racional utilizado não se ter constituído e desenvolvido como produto das exigências da situação histórico-social. Como ele era aceito preformado, do mundo cultural europeu, a sua incorporação a sistemas de concepção do mundo vinculados à sociedade brasileira muitas vezes exigiu reelaborações de sentido paradoxal. Isso, porém, não significa que essa 'Intelligentsia' fosse desinteressada, em face da solução dos problemas que se levantavam na esfera da ação. Faltaram-lhe ... elementos que permitissem inserir suas atividades intelectuais em um processo cultural dotado de dinamismo próprio" (Fernandes, 1955a:181-182). Nesta análise, ainda basicamente descritiva, o que aparece como central ao raciocínio é o desequilíbrio entre pensamento, economia e sociedade, no caso em que o saber utilizado é saber transplantado de outro universo, no qual sua produção e seu uso pertenciam a um quadro global que se supõe equilibrado.
Levanta a significativa questão da falta de dinamismo próprio da Intelligentsia local. Florestan a atribui à dominação patrimonialista, ao horizonte intelectual modelado por essa forma de dominação e ao tipo de desenvolvimento institucional que ela propiciou. Avalia que "o desenvolvimento institucional da sociedade brasileira, durante o século XIX, foi insuficiente para criar as condições que são indispensáveis à formação de um saber racional autônomo, capaz de evoluir como uma esfera especializada de atividades intelectuais. Daí a necessidade de apelar para os centros exógenos de produção de saber racional, toda vez que as exigências da situação histórico-social tornavam aconselhável ou inevitável o recurso a técnicas e a conhecimentos que possuíssem fundamento racional. O próprio ensino superior se constituíra, rapidamente, em uma maneira de organizar essa relação de dependência cultural diante dos países europeus. O meio social ambiente não desencadeava forças culturais suficientemente fortes para estimular um novo estilo de pensamento ou para incentivar a transformação homogênea das escolas superiores em centros de pesquisa original" (Fernandes, 1955a:183).
Se o processo cultural não era dotado de dinamismo próprio, Florestan procura as razões na situação "interna" do país. Entende que se trata de incapacidade de produção cultural autônoma, devida a debilidades de natureza institucional, por sua vez decorrentes da organização política "interna" e das relações sociais que a conformavam. Por isso, a dependência cultural é identificada como sendo provocada pelo próprio país dependente, que, em determinadas circunstâncias, sente "a necessidade de apelar para os centros exógenos de produção do saber racional". Deste modo, a falta de produção intelectual criadora, original, autônoma é pensada fundamentalmente como decorrência da herança cultural e social da nossa sociedade, por sua origem na aristocracia agrária.
Na construção do objeto de investigação, a sociedade tomada como referência imediata da análise corresponde ao âmbito da nação. Num certo sentido, compara, como se fosse um sistema social inclusivo, "a sociedade brasileira" com outro sistema social inclusivo, identificado como "a Europa". No entanto, escapando desse nível mais imediato, o vínculo da cultura com "centros exógenos" de produção do saber racional indica que, mesmo que ainda não se defina com clareza, o sistema social inclusivo está além da sociedade brasileira.
Ainda na década de 50, em plena vigência do desenvolvimentismo juscelinista como ideologia dominante no Brasil, Florestan começa a trabalhar com uma nova problematização, que se tornará importantíssima para pensar não só o Brasil, como todo o "subdesenvolvimento" e o "desenvolvimento". O primeiro momento positivo deste encaminhamento é quando Florestan produz um novo recorte para o estudo da sociedade brasileira: quando toma, com clareza, como referência principal ou unidade de análise não a sociedade nacional, mas sim o que designa como civilização ocidental moderna ou capitalismo moderno. É importante notar como o eixo da pesquisa se desloca e como o seu objeto se reconstrói. O recorte definidor da unidade de análise sofrerá modificações no decorrer da pesquisa do próprio Florestan, que construirá seu objeto e o reconstruirá: primeiro, enquanto expansão capitalista mundial, entendendo a sociedade nacional como parte desta expansão; segundo, enquanto "forma de integração9' das "sociedades heteronômicas ou dependentes" aos "centros de dominância" da expansão econômica capitalista; e terceiro, um pouco mais tarde, com a caracterização desta "forma de integração" como uma forma, particular e específica, que o desenvolvimento capitalista assume nas economias dependentes, com a construção do conceito de capitalismo dependente. Trata-se, a meu ver, de um processo progressivo de construção teórica, em que as noções vão se tornando mais precisas e se transformam em conceitos e em que uma nova problemática vai se delineando, ganhando contornos mais claros.
As reflexões que Florestan faz sobre esse tema em 1959 estão em seqüência àquelas que se encontram nos seus trabalhos de 1955, mas agora – com a definição mais nítida da escala de análise, que redefine o objeto – ganham em significado e em consistência conceitual e explicativa.
Este é tipicamente o caso de suas concepções de dependência e de heteronomia. Diz ele, num texto tão conciso quanto inovador e esclarecedor: "A integração do Brasil na órbita da civilização ocidental moderna fez-se por três vias diferentes. Primeiro, através da absorção contínua de populações imigradas da Europa ou de áreas em processo mais ou menos intenso de ocidentalização. Segundo, mediante o gradativo crescimento da teia de relações e de dependências da economia tropical brasileira com os centros de dominância da economia capitalista hodierna. Terceiro, pelos influxos de padrões de comportamento, de modelos de organização institucional e de valores ideais, extraídos da experiência histórico-social dos povos mais adiantados da civilização ocidental, na evolução interna da sociedade brasileira. As três vias se interpenetram e se completam" (Fernandes, 1959:167).
A primeira frase desta citação já motiva uma série de questões. Inicialmente, chama a atenção o lugar para onde a reflexão é dirigida. O foco da análise está no Brasil, mas também está fora dele, porque se situa nas vias ou nos modos de integração do Brasil à civilização ocidental moderna. As dificuldades de teorização ou a incapacidade explicativa no âmbito da sociedade nacional podem não ser primeiramente um problema de ordem intelectual. Talvez a explicação não possa mesmo ser formulada ao nível do objeto "sociedade nacional", caso sua própria constituição se dê num campo mais inclusivo. Isto é, se o Brasil é como é devido à forma da sua participação no desenvolvimento capitalista mundial, o entendimento do que o Brasil é, como ele é, depende da apreensão dessa forma de participação ou de integração. O deslocamento da unidade de análise é, pois, condição necessária para alcançar o nível explicativo.
A partir daí, a civilização ocidental moderna não é somente uma referência genérica de tipo de sociedade. A concepção histórica da expansão do capitalismo vinculada com a descoberta e com a colonização do Brasil adquire um novo significado, mais propriamente formativo, no sentido estrutural de uma expansão que se realiza integrando, diferenciadamente, seus novos componentes àqueles que comandam essa mesma expansão, seus pólos. Assim se forma um amplo sistema, dentro do qual há posições diferenciadas, não simplesmente, mas sim organicamente diferenciadas. Isto é, essa diferenciação cumpre uma função na formação e no desenvolvimento do sistema. O "desenvolvimento" de países "subdesenvolvidos" no âmbito do capitalismo afeta a diferenciação que está estabelecida no sistema como um todo. Deste modo, se, sob certos aspectos, é uma questão nacional, de fato a questão não se resolve no plano nacional estrito, até porque ele não existe como tal.
Quando Florestan se refere à "integração do Brasil na órbita da civilização ocidental moderna", oferece nessa formulação um indicador daquela diferenciação, ao fazer uso do termo "órbita". O Brasil, como os demais países de mesmo tipo, não se integra à civilização ocidental moderna como mais um país, porque a civilização ocidental moderna se compõe de "centros de dominância" e outros países, que não são centros de dominância, mas que gravitam em torno desses "centros", na sua órbita. Um pouco mais tarde, o próprio Florestan recorrerá ao uso do termo "satélite" para expressar essa noção (Fernandes, 1967b:58; 1967a:180;...).
Até então, Florestan, permanentemente empenhado na caracterização especificamente sociológica do seu trabalho, apesar de considerar sempre o fator econômico e atribuir a ele grande importância, não o colocava no cerne mesmo do seu esquema analítico. Aqui, é bem isso que ele faz. Sua preocupação vinha sendo, e continuará sendo, com a organização e, principalmente, com a mudança social. Neste sentido, as questões relativas a padrões de comportamento, a modelos de organização institucional e a valores já freqüentavam suas pesquisas e já alimentavam a sua problematização da dependência cultural. Agora, no entanto, essas questões são colocadas ao lado, ou melhor, imediatamente a seguir, da via econômica da integração que ele quer entender.
Fala do "gradativo crescimento da teia de relações e de dependências da economia tropical brasileira com os centros de dominância da economia capitalista hodierna". Menciona, de um lado, a economia tropical brasileira e, de outro, os centros de dominância da economia capitalista. Percebe, pois, uma economia capitalista internacionalizada, com processos de dominância (sem esclarecer, por enquanto, em que consiste tal dominância, se o seu exercício implica subordinação ou apenas direção) e com alguma divisão internacional de tarefas, de funções ou de trabalho, cabendo à economia brasileira alguma especialização ligada à característica "tropical". Fala, ainda, de relações e de dependências entre essa economia tropical e os centros de dominância da economia capitalista, referindo-se a essas relações e dependências como uma teia (8), teia esta que, segundo Florestan, continua a ser tecida, já que ele se refere ao seu "gradativo crescimento". Ou seja, a teia de relações e dependências é um processo em curso.
As três formas mencionadas de integração do Brasil na órbita da civilização ocidental moderna organizariam a civilização ocidental aqui (não simplesmente no Brasil, mas em todas as regiões que têm a mesma condição que o Brasil). Logo perceberá que, com isso, "aqui" a civilização ocidental ganha uma especificidade toda própria e que, portanto, é preciso apreender e torná-la conceitualmente precisa.
Dentro deste quadro, a dependência cultural ganha novo patamar de entendimento. Segundo Florestan, "a tendência a procurar na Europa ou nos Estados Unidos a satisfação de extenso conjunto de centros de interesses e de valores alimenta um processo de alienação intelectual e moral de imensas proporções. Ao contrário do que se supõe comumente, o fato crucial não está, aqui, na procedência externa de categorias de pensamento e dos modos de agir, mas na maneira de interligá-los, que toma como ponto de referência permanente os núcleos civilizatórios estrangeiros, em que eles forem produzidos. Daí resulta um estado de dependência fundamental. Com isso, o processo de desenvolvimento interno se entrosa com valorizações e disposições subjetivas que concorrem, diretamente, para perpetuar e fortalecer a condição heteronômica da sociedade brasileira (Fernandes, 1959:172). A dependência cultural é recolocada sob a forma de alienação intelectual e moral. Uma coisa é apreender categorias de pensamento produzidas no exterior e utilizá-las para pensar nossa realidade, ainda que esta seja uma realidade diferente daquela onde tais categorias se originaram, embora pertençam ao mesmo conjunto civilizatório. Neste caso, a relação com essas categorias pode ser instrumental e esse caráter instrumental pode ser racional. Outra coisa é internalizar valores e disposições subjetivas de núcleos civilizatórios que nos dominam. Esta é uma forma de domínio (cultural), que é fortalecedora do outro lado deste mesmo domínio (econômico). É para esta alienação, que é cultural e também moral, que Florestan chama a atenção. Já não se trata apenas de encontrar razões da dependência cultural numa incapacidade de produção intelectual autônoma, que derivaria de formas patrimonialistas de dominação.
É posto em pauta um certo tipo de identificação, não como um processo psicológico, mas como um processo sócio-político. Enquanto o "subdesenvolvido" vê o "desenvolvido" como a presença ou a encarnação de um estágio de civilização mais avançado ou mais adiantado (e, portanto, se reconhece como estando em atraso), a identificação com as valorizações e disposições subjetivas "desenvolvidas" (que se traduz no desejo de alcançar aquele estágio avançado, "desenvolvido") pode ser considerada e aceita como construtiva do país e da nacionalidade, especialmente, quando e se, desde as suas mazelas e misérias até a sua "dualidade estrutural" são atribuídas àquele atraso ("subdesenvolvimento").
No entanto, isso muda radicalmente quando o entendimento do subdesenvolvimento como atraso é substituído por heteronomia ou dependência, no sentido que Florestan dá a esses conceitos. Desde essa nova perspectiva, a introjeção de valores e disposições subjetivas dos centros de dominância pelos satélites submetidos a essa dominância passa a ser considerada como alienante ou como produtora de alienação intelectual e moral. A compreensão de todo o processo de desenvolvimento dos povos subdesenvolvidos sofre aí uma transformação profunda, capaz de criar repercussões importantes não só no plano científico, mas também no plano político. Isso porque se traz para o centro da cena todo um mecanismo (que não é imediatamente perceptível) através do qual o próprio desenvolvimento, pretendido como identificação com os "desenvolvidos", fortalece e perpetua a heteronomia. Segundo Florestan, "daí resulta um estado de dependência fundamental". Apresentado pela ideologia dominante, desenvolvimentista, como salvação, o desenvolvimento aparece nessa análise como agravamento do problema.
A oportunidade de refletir sobre casos de nações que também se encontram em situação de dependência, mas que contam com civilização própria, rica e complexa – diferentemente de nações cujo processo civilizatório foi constituído de forma semelhante ao do Brasil – repercute fortemente no pensamento de Florestan. É num momento assim que ele põe em questão os limites de sua antiga reflexão sobre a dependência cultural, formula a situação dos países subdesenvolvidos em termos de heteronomia ou dependência e caracteriza a condição heteronômica como sendo econômica, política e social. Considera que "a intensificação das relações com países que estavam ou ainda estão em situação análoga ao Brasil... poderá contribuir, como vem acontecendo, para facilitar e aprofundar tanto a percepção, quanto a explicação dos fatores da heteronomia econômica, política e social dos países subdesenvolvidos. Aqui não está em jogo, apenas, a idéia de que os demais países subdesenvolvidos oferecem ao Brasil uma imagem de suas condições de dependência diante das nações plenamente desenvolvidas do Ocidente. Várias nações do Oriente possuem civilizações próprias, tão ricas e complexas quanto a civilização ocidental. Essa é uma evidência, claramente perceptível e inteligível, de que a condição heteronômica não é mero produto da falta de 'originalidade' cultural" (Fernandes, 1959:172). Uma compreensão como esta o leva a discutir a importância e a descartar a centralidade da dependência cultural. Pode-se procurar muitas razões para entender sua preocupação tão forte com o caráter cultural da dependência, praticamente desde os seus primeiros escritos. O certo é que no seu percurso como produtor Florestan Fernandes percebeu mais cedo a dependência na sua dimensão cultural e a considerou como um verdadeiro obstáculo, por suas conseqüências internas, ao "desenvolvimento". No confronto com nações com cultura própria e rica e que, apesar disso, são dependentes, Florestan questiona frontalmente a eficácia da dependência cultural como impedimento ao desenvolvimento autônomo. Se povos com cultura própria, rica e complexa também se encontram em condição heteronômica, a dependência cultural não pode ser tão central à condição dependente, menos ainda responsável por ela, ainda que possa ser muito importante (negativamente) na luta contra ela.
Com isso, a cultura não se ausenta das preocupações de Florestan. Mas aparece cada vez mais tematizada enquanto ideologia e cede espaço a reflexões mais propriamente econômicas e políticas. Condizente com essa nova perspectiva, as classes sociais e suas relações passam a ganhar destaque e centralidade nas suas análises.
Num importante texto de 1960, aceitando como tema a aceleração do desenvolvimento, Florestan se pergunta sobre as razões das dificuldades e dos bloqueios que tal aceleração tem encontrado na América Latina e o que é possível e necessário fazer para enfrentar e superar esse impasse. A perspectiva que assume é claramente a do desenvolvimento autônomo. Num campo assim posto, vai firmando os contornos da sua concepção de dependência e heteronomia, passando a enfatizar no seu esquema analítico não apenas a consciência social, mas também as classes sociais. Conclui não pela aceleração do desenvolvimento, direta ou imediatamente, mas pela necessidade de aceleração da revolução social como condição mesma do desenvolvimento. Diz que "é possível entender a utilidade das instituições e importá-las em vista disso. Contudo, não é tão fácil produzir as condições de organização e funcionamento que elas requerem. ... Assim se define a situação de heteronomia e dependência básica dos países subdesenvolvidos. Malgrado as possibilidades de representarem seus destinos segundo conceitos tomados aos povos plenamente desenvolvidos do mesmo sistema civilizatório, eles não possuem condições materiais e morais que assegurem o domínio eficaz de padrões de desenvolvimento autônomo. Essa situação histórico-cultural tem gerado ressentimentos e frustrações coletivos, os quais alimentam antagonismos contra os países que fornecem os modelos da imagem nacional refletida ou incentivam atitudes de desalento e conformismo. Nenhum povo gosta de saber que sua dependência econômica possui ramificações que conduzem à heteronomia ideológica e moral, nem que seu poder sobre os próprios destinos se confina a um padrão reflexo e dependente de desenvolvimento interno" (Fernandes, 1960a:156; 1960b:261-262).
A pergunta subjacente a esta reflexão é: por que os povos subdesenvolvidos, quando acatam o projeto do desenvolvimento acelerado, representam o seu futuro de acordo com ele e se empenham em alcançá-lo, não o conseguem? Em que consiste esta "realidade" que "resiste"? Suas respostas repousam no descompasso entre representação (ideológica) e condições históricas reais. Não basta importar instituições que se julgue úteis, porque enquanto representações elas não funcionam na prática. É preciso fazê-las funcionar, é preciso criar "as condições de organização e funcionamento que elas requerem". Aderir à idéia de desenvolvimento, e mesmo desejá-lo, não põe em marcha o desenvolvimento na realidade concreta. Não é tão fácil "produzir as condições" para torná-lo historicamente efetivo. É essa falta de "condições materiais e morais que assegurem o domínio eficaz de padrões de desenvolvimento autônomo" que Florestan há muito identificava como dependência cultural. Enquanto o obstáculo ou o bloqueio é entendido nesse plano, a ação para superá-lo e ultrapassá-lo tende a restringir-se também ao mesmo plano, quer dizer, situa-se na dimensão da cultura, da ordem intelectual e moral. Mas Florestan irá rapidamente deslocá-lo na sua análise para o plano político das relações entre as classes e o poder.
Apesar de sua antiga insistência na dependência cultural, Florestan opera nesse momento uma transformação decisiva: "nenhum povo gosta de saber que sua dependência econômica possui ramificações que conduzem à heteronomia ideológica e moral". Aquilo que constituía substantivamente o conceito de dependência cultural nas formulações iniciais de Florestan Fernandes e que agora ele trata como heteronomia ideológica e moral, passa a ser pensado como parte de um conjunto bem integrado. A especificação desse conjunto (formado pela dependência econômica e pelas ramificações que esta possui e que "conduzem à heteronomia ideológica e moral") confere um sentido novo à concepção de heteronomia em Florestan. Assim é que, no interior do sistema formado pela expansão da civilização ocidental moderna há os centros dessa expansão e os países que participam dela, mas são privados de autonomia. Esta condição heteronômica é econômica, política e social ou econômica, ideológica e moral. Ou seja, a condição heteronômica é global, sendo que nela é a dependência econômica que responde fundamentalmente pela heteronomia. O encaminhamento da explicação da dependência cultural pela via exclusiva ou principalmente interna se desloca para o plano internacional e é o conjunto da condição heteronômica, no qual a determinação cabe à dependência econômica, que dá sentido à dependência cultural. A via interna da explicação se mantém, mas em plano subordinado.
A heteronomia não é formalizada no plano legal, como acontecia na era colonial, mas é sumamente eficaz, já que a integração econômica satelizada se desdobra culturalmente, na construção das mentalidades e das aspirações, de tal modo a criar comportamentos, expectativas e laços que reforçam a condição heteronômica. Pelo menos dois aspectos desta colocação merecem atenção especial. Um é que toda a reflexão se apoia na concepção de desenvolvimento autônomo. É examinando a autonomia, suas possibilidades, suas limitações e as obstruções a ela nos povos dependentes que se recorre ao par autonomia/heteronomia. A perspectiva do desenvolvimento autônomo estabelece uma diferença de base e de fundo com relação às idéias desenvolvimentistas vigentes. Ela é assumida, porém, por posições políticas as mais diferentes, que lhe dão, é evidente, configurações bem distintas.
O desenvolvimentismo faz convergir as atenções para o econômico. Sua proposta central é o crescimento econômico, avaliado por indicadores basicamente econômicos. As discussões que suscitava eram, desse modo, socialmente conduzidas para o campo econômico, desde que o desenvolvimentismo se tornou dominante como ideologia no Brasil. As oposições a ele em geral não deixaram de trabalhar no mesmo campo, embora tendessem a sublinhar a dimensão do político, em especial quando assumiam feições nacionalistas, organizadas principalmente em torno da oposição entre capital estrangeiro e capital nacional, bem como da soberania nacional e do desenvolvimento autônomo. O lado político do projeto desenvolvimentista, que o apresenta como guardião da ordem estabelecida, ficava numa certa medida encoberto pela exacerbação da ênfase posta no crescimento econômico acelerado. Essa face assumirá o primeiro plano depois de 1964.
Florestan participa intensamente do debate intelectual que se trava no período e nele reconstrói os caminhos para a sua própria análise, sempre preocupado com o "sistema de referência" e a necessidade de que ele permita alcançar o que seja "essencial". Percebe que "tem-se acentuado a tendência, por parte dos intérpretes da situação brasileira, a dar importância crescente às categorias do pensamento econômico e aos fatores econômicos. Aos poucos, o quadro histórico-social geral deixou de ser o sistema de referência das análises, e os fatores histórico-sociais passaram a segundo plano. Em conseqüência, as explicações descobertas tendem a perder de vista o essencial: as determinações mais amplas e centrais a longo termo, que estruturam e dinamizam as relações entre a Economia e a Política. Doutro lado, o conhecimento de senso comum propende a avaliações de cunho ideológico, que gravitam em torno dos interesses típicos dos setores empresariais, rurais e urbanos" (Fernandes, 1966:135-136). Florestan procura resgatar a dimensão histórico-social, para não perder de vista o essencial. Refletindo sobre a intensidade e as limitações ao crescimento econômico, reorienta a problematização da questão tal como ela costuma ser posta e afirma que "a questão fundamental, para o sociólogo, não está nas expressões quantitativas assumidas pelo crescimento econômico em dado período de tempo. Mas em determinar se elas correspondem, estrutural e dinamicamente, ao padrão de integração econômica da civilização vigente" (Fernandes, 1966:136).
Na altura em que escreve esse texto, Florestan já tem muito claro que "o padrão de crescimento econômico que regula atualmente a organização e a expansão das atividades econômicas no Brasil é típico de uma economia capitalista diferenciada, mas 'periférica' e 'dependente'. Ao nível estrutural, ele é insuficiente para promover a integração balanceada, em escala nacional, da produção, da circulação e do consumo, nos moldes da civilização vigente (os quais pressupõem uma economia capitalista 'avançada'). Ao nível dinâmico, ele é insuficiente para promover o desenvolvimento econômico auto-sustentado e autônomo, segundo os mesmos moldes. Como nasce e responde a uma relação de dependência crônica, no mercado internacional, o crescimento neste nível antes concorre para manter a influência dos centros hegemônicos externos, que para provocar sua substituição pelos 'centros de decisão' internos ou para criar o tipo de autonomia econômica requerido pela economia capitalista integrada ou pelo Estado nacional independente a que ela se associa. Ao nível do sistema sociocultural global, em que a economia se insere, é insuficiente para dar lastro econômico adequado à integração, ao funcionamento e ao desenvolvimento da ordem social, ainda levando-se em conta os moldes da civilização vigente" (Fernandes, 1966:145-146).
Privilegiando para a sua análise os fatores histórico-sociais e direcionando essa análise para o "padrão de integração" das economias em busca de crescimento econômico acelerado com a "civilização vigente", sua compreensão da situação de países como o Brasil já se faz em termos de que tal situação constitui um tipo particular de economia capitalista, sendo que a particularidade que a diferencia é ser "periférica" e "dependente".
Florestan quer "entender, sociologicamente, por que a independência não gerou uma nação livre e integrada; e por que o crescimento econômico, associado à expansão interna do capitalismo e à industrialização, não fez outra coisa senão manter sua posição dependente em relação ao exterior" (Fernandes, 1967a: 173). Fala de "uma teia invisível de dependências econômicas, criada pelo próprio capitalismo ao nível da organização internacional da economia", que sob o "imperialismo econômico" criou "um padrão de desenvolvimento econômico pelo qual o crescimento econômico das nações satélites ficava subordinado aos interesses, à política e às potencialidades econômicas das nações dominantes", caracterizando "uma economia capitalista dependente". Entende que, sob o "capitalismo industrial, a Nação atinge o seu maior nível de riqueza e de desenvolvimento, mas configura, igualmente, a plenitude do capitalismo dependente" (Fernandes, 1967a: 176). Se o aumento da riqueza e do desenvolvimento mantém e até amplia a dependência, da perspectiva do desenvolvimento autônomo a questão decisiva para esses povos não pode ser a implementação ou a aceleração do desenvolvimento econômico e sim a questão de saber como alcançar "a verdadeira dependência econômica, social e cultural".
Ao participar de um Colóquio na Universidade de Münster sobre "Problemas das Sociedades em Desenvolvimento Industrial", Florestan produz um trabalho que sintetiza suas formulações elaboradas até então sobre a dependência. Nesse belo texto, fica claro o seu entendimento de que "o subdesenvolvimento explica-se, objetivamente, pelas condições de dependência ou de heteronomia econômica. Mercados e economias capitalistas, construídos para serem operados como satélites, organizam-se e evoluem segundo as regras e as possibilidades do capitalismo dependente. Assim, o subdesenvolvimento não é um estado produzido e mantido a partir de dentro,mas gerado, condicionado e regulado a partir de fora, por fatores estruturais e de conjuntura do mercado mundial" (Fernandes, 1967b:58). Não está interessado somente na explicação do subdesenvolvimento, mas também na sua superação. Seguindo aquela explicação, "a ruptura do subdesenvolvimento se identifica com o repúdio ao capitalismo dependente e só pode desencadear-se, em condições econômicas internas 'favoráveis' ou 'desfavoráveis', a partir de dentro" (Fernandes, 1967b:58).
Para discutir o tema proposto, inicia o texto afirmando: "O capitalismo não é apenas uma realidade econômica. Ele é também, e acima de tudo, uma complexa realidade sociocultural, em cuja formação e evolução histórica concorreram vários fatores extra-econômicos (do direito e do Estado nacional à filosofia, à religião, à ciência e à tecnologia). Na presente discussão, esse ponto de vista é aplicado à análise das influências estruturais e dinâmicas da ordem social global sobre a absorção e a expansão do capitalismo no Brasil, uma sociedade nacional do 'mundo subdesenvolvido'" (Fernandes, 1967:21). Repudia de saída a noção de "sociedade em desenvolvimento". Toma como referencial da análise "o capitalismo" e como objeto a relação entre "uma sociedade nacional do 'mundo subdesenvolvido' e o capitalismo em expansão". Nesse objeto, seu problema são "as influências estruturais e dinâmicas da ordem social global sobre a absorção e a expansão do capitalismo no Brasil".
Quando da independência política, reconhece que "as estruturas sociais e econômicas do mundo colonial ficaram intactas, como condição mesma, seja para o controle do poder pelas elites senhoriais nativas, seja por causa das necessidades do mercado mundial, em relação ao qual a economia tropical preenchia uma função especializada de natureza heteronômica" (Fernandes, 1967b:23). Identifica ao longo de nossa história "uma condição colonial permanente, embora instável e mutável", acrescentando estar claro "que essa condição se altera continuamente: primeiro, se prende ao antigo sistema colonial; depois, se associa ao tipo de colonialismo criado pelo imperialismo das primeiras grandes potências mundiais; na atualidade, vincula-se aos efeitos do capitalismo monopolista na integração da economia internacional. Ela se redefine no curso da história, mas de tal modo que a posição heteronômica da economia do País, em sua estrutura e funcionamento, mantém-se constante. O que varia, porque depende da calibração dos fatores externos envolvidos, é a natureza do nexo de dependência, a polarização da hegemonia e o poder de determinação do núcleo dominante" (Fernandes, 1967b:26).
Entende que "no plano internacional, o capitalismo gera uma luta permanente e implacável pelas posições de controle da economia mundial, que permite dirigir os processos de formação e de crescimento das economias dependentes, bem como monopolizar os excedentes econômicos que podem, assim, ser captados e drenados dessas economias para as economias hegemônicas" (Fernandes, 1967b:35). O fundamental é identificar o caráter permanente de relações que se apresentam como mutáveis, o que significa identificar o quanto há de relativo nestas mudanças. Reconhecer a luta "permanente e implacável" pela hegemonia da expansão capitalista mundial faz com que o confronto com "o país" que num dado momento exercia aquela hegemonia perca muito do sentido que possuía antes daquele reconhecimento ser colocado. Estruturalmente, o importante é a própria relação entre centros hegemônicos no plano mundial (que variam historicamente, deslocando-se de uma economia a outra) e as economias e sociedades politicamente organizadas em plano nacional.
Florestan acaba por formular sob a forma de conceito o capitalismo dependente, como "uma situação específica, que só pode ser caracterizada através de uma economia de mercado capitalista duplamente polarizada, destituída de auto-suficiência e possuidora, no máximo, de uma autonomia limitada. ... Nos planos da estrutura, funcionamento e diferenciação do sistema econômico, a dupla polarização do mercado suscita uma realidade nova e inconfundível. Trata-se de uma economia de mercado capitalista constituída para operar, estrutural e dinamicamente: como uma entidade especializada, ao nível da integração do mercado capitalista mundial; como uma entidade subsidiária e dependente, ao nível das aplicações reprodutivas do excedente econômico das sociedades desenvolvidas; e como uma entidade tributária, ao nível do ciclo de apropriação capitalista internacional, no qual ela aparece como uma fonte de incrementação ou de multiplicação do excedente econômico das economias capitalistas hegemônicas" (Fernandes, 1967b:36-37). O mais importante e que singulariza a formulação deste conceito como contribuição teórica de relevo é que a dependência aqui não é mais apenas um mecanismo de relação entre partes diferenciadas de um mesmo sistema, mas ganha a dimensão de uma forma, própria, particular e específica do desenvolvimento capitalista.
Com a discussão sobre a hegemonia no plano internacional, que aponta repetidas mudanças dos centros hegemônicos, uma antiga e importante referência, a "sociedade nacional", cede lugar na análise ao conceito de "centros hegemônicos".
A forma peculiar de internacionalização que se impõe sob o capitalismo monopolista também é responsável por esse deslocamento no plano das noções que balizam a análise. Florestan se dá conta de que "o capitalismo monopolista está alterando rapidamente o quadro dos ajustamentos entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, estimulando o aparecimento de um 'padrão de interdependência' que subjuga de forma sem precedentes (sem nenhum vínculo 'colonial' ou 'imperialista') as economias satélites. ... Já não se pode pensar que 'internalização de centros de decisão' seja equivalente a 'nacionalização dos interesses econômicos' e produza autonomia de crescimento econômico, onde estejam presentes firmas que internalizam o fluxo do capitalismo monopolista" (Fernandes, 1967b:60). Com esse tipo de mudança na organização internacional do capitalismo, a antiga noção de autonomia, que o próprio Florestan contrapunha à heteronomia em bases nacionais, precisará sofrer modificações. Uma das suas características principais, que era a existência de centros de decisão "internos", é afetada pela produção internacionalizada por meio de empresas multinacionais. Aliás, a definição mesma da relação interno/externo precisará ser repensada.
Florestan conseguiu se manter fora do esquema básico de pensamento da ideologia desenvolvimentista. Há os que até se opõem àquela ideologia, mas permanecem prisioneiros do problema que ela impõe como se fosse realidade e que, na verdade, é produto ideológico, idéia produzida pela ideologia, no seu interior. Florestan percebeu essa malha e não se deixou envolver por ela. Criticou-a, de fora dela. E encontrou seus próprios caminhos, os construiu, para pensar a realidade brasileira naquele momento.
As características básicas já estavam colocadas por ele há algum tempo. No entanto, elas ganham especificações e desdobramentos. Sobressai a articulação entre a dependência e a organização social interna, especialmente no que concerne às classes sociais, suas relações entre si e com as formas de poder na sociedade dependente. A questão da dependência ao exterior tem também dimensões importantíssimas que são internas ao país dependente.
Florestan teoriza a situação brasileira e a heteronomia sobre questões que, em parte, estavam colocadas no debate intelectual a nível nacional e internacional, mas que ele retoma num outro patamar explicativo. A questão da dependência, por exemplo, tinha lastro nesse debate. Era uma idéia que tinha forte conotação política, mas que em geral era tratada na matriz do velho colonialismo. Florestan teve o mérito de, a quente, no calor do debate e muito cedo, ter o distanciamento e ao mesmo tempo o envolvimento necessários para teorizá-la como uma relação nova, com um objeto novo, que mudava a própria dimensão do problema e assim fornecia elementos inovadores e da maior relevância ao debate intelectual e político.
E mais, na sua teorização também não se deixou cair no esquema fácil e funcional de pensar a dependência de nação a nação. Sua formulação acerca da heteronomia não tem como referência o Estado-nação. E a razão para isso é ter colocado as classes sociais no centro mesmo da sua análise. A ordem social constituída pelo capitalismo a nível mundial, por meio do exercício de hegemonias dos seus centros dinâmicos, organiza no próprio plano internacional a ordem social local das economias assim tornadas dependentes. Florestan entende que estas relações operam através dos sistemas de classes sociais, tanto nos "centros hegemônicos", quanto nos "satélites dependentes". As classes se constituem como classes no interior daquelas relações e por meio delas. Todas operam, direta ou indiretamente, como esteios mais ou menos importantes desse processo mesmo, mas só algumas se beneficiam dele e, no capitalismo dependente, de uma forma exacerbada quanto às relações sociais internas que engendram. Nas relações que as demais classes possam manter entre si e com as que ocupam as posições dominantes reside a possibilidade de transformação desta ordem social, o que Florestan coloca como condição mesma do desenvolvimento autônomo, contra a condição de capitalismo dependente.
Esse tipo de compreensão, que revela o entrelaçamento da ordem econômica capitalista com a ordem social local das sociedades dependentes por meio das classes sociais permite a Florestan, por exemplo, explicar formações ideológicas que fazem parte também daquele entrelaçamento. Diz: "as burguesias de hoje por vezes imitam os grandes proprietários rurais do século XIX. Apegam-se ao subterfúgio do desenvolvimentismo como aqueles apelaram para o liberalismo: para disfarçar uma posição heteronômica e secundária. O desenvolvimentismo encobre, assim, sua submissão a influências externas, que se supõem incontornáveis e imbatíveis. A mesma coisa acontece com o nacionalismo exacerbado. Quando ele reponta, no seio dessas burguesias, quase sempre oculta algo pior que o fracasso histórico e a frustração econômica: envolve uma busca de esteios para deter a torrente histórica e preservar o próprio capitalismo dependente, e segundo valores provincianos" (Fernandes, 1967b:101).
Florestan trata as ideologias enquanto formas de subterfúgio, disfarce ou ocultamento. Elas encobrem a realidade, mas disfarçam sobretudo suas razões de ser e os objetivos que perseguem. Florestan revela aqui o desenvolvimentismo e o nacionalismo exacerbado como ideologias voltadas para a preservação do capitalismo dependente. O desenvolvimentismo se faz submissão, por dentro, à dependência. O nacionalismo exacerbado cumpriria a mesma função, ocultando no fundo sua tentativa de conter as possibilidades de transformação mais radical e mais profunda da realidade social dependente.
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