terça-feira, 27 de junho de 2017

Compram-se por pouco, mas valem cada vez menos.


O DEMÔNIO ME DISSE – por Giovanni Papini
I
Durante toda a minha vida somente cinco vezes tive ocasião de falar com o Diabo, mas estou certo de que, entre os vivos, sou eu quem mais intimamente o conhece e com quem ele se mostra mais afável. Trata-me — afirmo-o com certo orgulho que não tento dissimular -com uma benévola condescendência que chega às vezes a comover-me. Quando estou em sua companhia, limito-me a ouvi-lo. Assim não me engano; escuto-o e admiro-o. O Diabo, pelo menos como me tem aparecido até agora, é uma figura fora do comum. É alto e muito pálido, ainda bastante jovem, mas com essa juventude que viveu demasiado e que é mais triste que a velhice. O rosto muito branco e comprido nada tem de particular a. não ser a sua boca sutil, fina e apertada; tem uma ruga única e profundíssima, que se alça perpendicularmente entre as sobrancelhas e se perde quase na raiz dos cabelos. Nunca pude verificar bem a cor dos seus olhos, pois não consegui olhá-lo mais que alguns momentos; não sei tampouco a cor dos seus cabelos, porque um gorro de seda, que nunca tira, os esconde completamente. Traja corretamente de preto e as mãos estão sempre irrepreensivelmente enluvadas.

É difícil que, nestes tempos que correm, se decida a vir à terra. Um dia confessou-me tristemente:

— Agora os homens não me interessam mais. Compram-se por pouco, mas valem cada vez menos. Não têm nem medula, nem alma, nem coragem. Talvez nem sequer tenham sangue suficientemente vermelho para firmar o contrato.

Entretanto, quando se aborrece, às vezes, em seu desolado país, costuma visitar-nos. Ninguém em verdade o nota, porque os homens já não o reconhecem e passam a seu lado, tomando-o por um de seus semelhantes e até mesmo sorrindo-lhe e tirando-lhe o chapéu com um ar de segurança que causa espanto. Mas eu sempre sinto o roçar de seu passo e procuro desfrutar da sua companhia. A conversação do Diabo é a mais proveitosa e agradável que conheço, é daquelas que fazem compreender o mundo e, sobretudo, o mundo que está em nós, muito mais do que os pequenos e grandes tratados de auto didática, que se lêem na biblioteca de Heidelberg.

Nunca conheci ninguém mais indulgente que o Diabo. Conhece tão profundamente a mesquinhez, a velhacaria, a sujidade e bestialidade humanas, que nada o espanta nem o desgosta. É pacífico e sorridente como um sábio antigo, e às vezes, me parece mais cristão que todos os cristãos do mundo. Perdoou, por fim Àquele que o condenou e arrojou de seu seio. Quando a isto se refere, reconhece que o Onipotente agiu com inteira justiça, precipitando-o do céu, visto que um rei não pode permitir que se achem em torno de si seres por demais soberbos e indisciplinados.

— “No lugar dele — confessou-me, certa ocasião — eu teria condenado os rebeldes a uma pena mais terrível. Te-los-ia obrigado à inação, à imobilidade. Em troca, Deus foi generoso e clemente comigo, proporcionando-me os meios de seguir a carreira para a qual eu mostrava mais inclinação. Embora atualmente eu me sinta um tanto cansado, não tenho muitas razões de queixa; no seio da beatitude celeste eu me aborreceria muito mais”.

Ele se mostra animado, inclusive a respeito dos homens, de uma benevolência um tanto irônica, não isenta de um desprezo convicto que não consegue dissimular. Ele é, por ofício, o atormentador dos homens, mas, graças a um longo costume, tornou-se menos feroz e menos terrível. Já não é o hirsuto e monstruoso demônio da Idade Média, com rabo e cornos, que ia acariciar as virgens nos mosteiros, e excitar a febre solitária dos padres no deserto.

Viu que a tentação é, agora, perfeitamente inútil. Os homens pecam por si mesmos, natural e espontaneamente, sem necessidade de excitações e convite. Deixa-os em paz e os homens correm a ele já como inimigos a conquistar. Por isto, não os considera já como inimigos a conquistar, mas como bons e fiéis súditos, dispostos a pagar seu tributo sem fazer-se de rogados. Despertou-lhe por isto, nestes últimos tempos, certa compaixão para conosco, os homens, e que, se não destrói o desprezo, o atenua e encobre. Confirmei esta última opinião, durante o colóquio que tive com ele, no qual me revelou uma coisa que tem certo valor para todos os que buscamos o que está mais alto e o que está mais longe.



II

Encontrei-o, da última vez, numa dessas ruas solitárias dos arrabaldes de Florença, apertadas entre velhos muros, por cima dos quais apontam as oliveiras. Ia lendo um livro de capa negra e ria consigo mesmo, como só ele sabe rir. Aproximei-me e, apenas me viu, fechou o livro, segurou-me no braço e começou a dizer-me:

— Conheço há séculos este livrinho, a Bíblia; releio-o de quando em quando, se tenho necessidade de pôr-me de bom humor. A que eu leio agora é em inglês, e notei que o inglês se presta admiravelmente para o Antigo Testamento ao passo que prefiro o italiano para o Novo. Estava relendo agora, pela milésima vez, os primeiros capítulos da Gênesis, e você compreende facilmente por quê. Tenho aí um papel importante e sinto-me às vezes, além de soberbo, vaidoso. Agrada-me, falando verdade, tornar-me a ver sob o belo adereço da serpente enroscada na árvore, como nas velhas gravuras, avançando a minha cabeça escura para o alvo corpo nu da apetitosa Eva. Mas é uma verdadeira lástima que a história da tentação tenha sido tão alterada pelos historiadores servos de Deus. Qualquer dia, se tiver tempo, publicarei uma edição correta da Bíblia, e não só correta, mas também aumentada, porque os santos e piedosos escritores tiveram escrúpulos de citar com demasiada freqüência o meu nome e deixaram na obscuridade algumas das minhas melhores empresas.

“Voltando à tentação, repito, meu querido amigo, que a narrativa bíblica foi descaradamente falseada. Nunca eu disse isto a homem algum, mas creio que a Você se pode dizer o que nenhum homem seria capaz de inventar por si mesmo. Confessarei, pois, que não fui, no verdadeiro sentido da palavra, um tentador ou um enganador. Quando me dirigi a Eva para decidi-Ia a provar do fruto proibido, não tinha nenhuma intenção de desgraçar os homens. Meu único propósito era vingar-me de Jeová, o qual, segundo julgava naquele tempo, me havia tratado indignamente. Queria criar-lhe rivais em poder e por isso não era de modo algum farsante, quando dizia a Eva: “Come deste fruto e Serás semelhante a Deus”.

“Eu dizia, asseguro-lhe, a pura e estrita verdade. Realmente, a árvore proibida era a de sabedoria; a árvore da ciência, não só do bem e do mal, como diz o Hebreu, senão também do verdadeiro e do falso, do visível e do invisível, do céu e da terra, dos animais e dos espíritos. E Você sabe, querido amigo, o que é sabedoria e poder, e que ser Deus significa ser sábio e poderoso. Por isto, não queria enganar aos homens quando lhes indicava o meio de se tornarem semelhantes a Jeová. Meu interesse estava em que o conseguissem, porque esperava a sua ajuda para reconquistar o céu.

“Vejo em seus olhos que quer perguntar-me alguma coisa e sei o quê. Como foi que Adão e Eva, apesar de terem comido o fruto proibido, não se converteram em deuses, mas foram arrojados por seu Deus do belo jardim?

“Se quiser, explicarei em poucas palavras este aparente mistério. Eva, na confusão do momento, não notou que os frutos da árvore eram muitos e diversos e não ouviu o que eu lhe dizia, isto é, que não bastava comer alguns, que era necessário despojar inteiramente a árvore — adquirir toda a sabedoria. Apesar disto, apenas comeu um, faltou-lhe ânimo para colher e comer rapidamente de todos os outros, e aconteceu que Jeová teve tempo de aperceber-se do perigo e remediá-lo imediatamente com o desterro perpétuo. Se Adão e Eva tivessem comido todos os frutos da árvore maravilhosa, o Grande Velho já não teria tido poder para arrojá-los do paraíso. Teriam sido Deus contra Deus e nenhum anjo, apesar de armado de espada flamejante, os teria posto em fuga. Deus pôde castigá-los porque não tinham pecado inteiramente. O pecado original foi castigado porque não foi bastante grande. Assim ocorre sempre na terra e não hei de lembrar-lhe uma vez mais o colóquio entre Alexandre e o pirata, para lhe revelar que um crime é castigado quando é pequeno e glorificado e premiado quando é grande.

“O homem, naquele jardim longínquo, perdeu pois, uma magnífica oportunidade para converter-se em Deus e eu perdi uma das poucas probabilidades de voltar ao céu. Mas eu creio, excelente amigo, e lhe digo, embora você e os outros homens não dêem muito crédito aos conselhos do Demônio, eu creio que vós ainda estais em tempo de acabar com todos os frutos da árvore, estais em tempo de converter-vos em deuses. Vós não vos lembrais do caminho do Paraíso Terrestre, mas eu sei que algumas sementes daquela árvore voaram fora e já estão desenvolvidas. É preciso procurá-las em vossos bosques, cuidá-las e podá-las até que tornem a dar seus frutos. E então — acredite num velho amigo, que alguns, cujos servos invejosos, querem fazer passar por inimigo dos homens — podereis comer a vosso gosto, até à saciedade, e minha promessa será cumprida.

“Desejaria Você perguntar-me algum sinal de reconhecimento desta árvore e de seus frutos? Nada lhe posso dizer: Cumpre que vós mesmos a encontreis, com paciência e perseverança. Avisai-me logo que a tenhais encontrado, porque então a minha missão estará cumprida e talvez Deus me chame a si”.

A voz do Demônio, neste momento, tomou-se um pouco melancólica. A ruga profunda e reta que tem no meio das sobrancelhas me pareceu acentuada. Após deter-se alguns instantes, como dominado por algum pensamento, continuou o caminho em silêncio, olhando as estrelas, que principiavam a cintilar no lânguido céu da noite que se aproximava.

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