quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Hölderlin: intuição e intimidade

Marco Aurélio Werle*

A atitude do poeta, na tarefa que lhe cabe, deve ser, sobretudo, de espera e de receptividade, ele tem de estar com "o peito amigável"; (como lemos na ode Vocação de poeta, de 1800-01). O divino não pode ser simplesmente utilizado e zombado:
Por tempo demais ficou à mercê tudo o que é divino
E todas as forças celestiais foram zombadas, os bondosos
Foram desperdiçados, por puro prazer, com ingratidão,
Por um corpo esperto e que ainda imagina que pode conhecê-los.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 5, p. 48)
E no hino O Reno lemos sobre a essência do que vem do alto:
Um enigma é o que decorre puramente. Também
O canto pode muito pouco desocultá-lo.
(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 150)
E no hino Como em dia de feriado os poetas, em sintonia com a natureza, no sentido da physis dos gregos (como interpretou Heidegger, 1981, p. 56), aguardam o tempo propício para exprimir o sagrado. Assim como a natureza, eles parecem estar descansando, mas sempre estão ativos, pois "no canto sopra seu espírito";(Hölderlin, 1954a, Vol. 2, p. 123).
Tanto na poesia quanto na filosofia, Hölderlin se move numa região que transcende situações e fatos do cotidiano e se aproxima de um universo marcado pela experiência do divino e do sagrado. Otto Maria Carpeaux (2005, p. 282) inicia seu ensaio "A mensagem de Hölderlin"; dizendo: "vamos apresentar-vos o mais solene dos poetas";. Esse caráter solene se deve a um contato com temas abstratos, mas também decorre de Hölderlin ter sido um poeta não de ocasião ou que se dedicasse a temas prosaicos, mas, sim, alguém que, como diz (Heidegger, 1981, p. 34), poetizava a própria poesia, ou seja, questionava o próprio sentido e posição do poeta no mundo. Desse modo, ele pode ser chamado de "poeta dos poetas"; (expressão cunhada também pela leitura de Heidegger).
Sem dúvida, a poesia de Hölderlin não é deste mundo, pois habita o panteísmo, o "um e tudo"; (em grego: en kai pan). O panteísmo, introduzido na filosofia alemã da época por meio de uma recepção de Espinosa, feita por Jacobi, e que inclusive instaurou a "querela do panteísmo";, recebe em Hölderlin uma reorientação na direção da tematização da origem, que é tanto o todo quanto a parte, isto é, abriga nela mesma a diferença: a plenitude do divino (o todo) contrasta com as carências e limitações da finitude humana (a parte). No romance sobre o Hipérion não somente o "um e tudo"; é mencionado, mas, também, "o uno que se diferencia em si mesmo"; o "hèn diaphéron heautôi";, de Heráclito.
A grandiosa frase de Heráclito, hèn diaphéron heautôi (o uno diferente em si mesmo) só poderia ser encontrada por um grego, pois é a essência da beleza e, antes de ter sido encontrada, não havia filosofia alguma. A partir daí pode-se definir, o todo estava lá. A flor havia amadurecido; era possível, então, despedaçá-la. Anunciou-se, então, o momento da beleza entre os homens. Estava ali, em vida e espírito, o uno infinito. (Hölderlin, 2003, p. 85)
Desse modo, o topos da totalidade se articula pela parcialidade ou pela unidade que comporta nela mesma a diferença. Esse tema é recorrente em várias composições poéticas de Hölderlin, principalmente naquele que é talvez o mais conhecido de seus poemas: o Canto do destino de Hipérion, de 1797-98, na tradução
do nosso grande poeta Manuel Bandeira:
No mole chão andais,
Do éter, gênios eleitos!
Ares divinos
Roçam-vos leve
Como dedos da artista
As cordas sagradas.
Como adormecidas
Criancinhas, eles
Respiram. Floresce-lhes
Resguardando o espírito
Em casto botão;
E os olhos felizes
Contemplam em paz
A luz que não morre.
Mas, ai! Nosso destino
É não descansar.
Míseros os homens
Lá se vão levados
Ao longo dos anos
De hora em hora como
A água, de um penhasco
A outro impelida,
Lá somem levados
Ao desconhecido.5

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