A esperança é uma memória que deseja ?? O frio lá fora era de 30 negativos ; outro ônibus para o Leste estava parado ao lado do nosso ; um caminhão e muitos carros. O certo é que uma caminhonete amassara um Austin quase às portas de Dickinson ; a idéia da catástrofe natural da neve se propagara por todo o engarrafamento . À parte alguns avanços mínimos, era tão pouco o que se podia fazer além de ler ou sair do ônibus na tempestade para fumar, que as horas acabaram por se sobrepor, por serem sempre a mesma na memória. Afinal, a verdadeira causa do engarrafamento , como ficamos sabendo depois, não fora o acidente, mas uma caminhãozinho que levava máquinas caça-níqueis para Montana. Durante todo aquele tempo , da primeira à última página o DIÁRIO me perseguira, folheando-se nas minhas mãos praticamente sozinho. Enquanto ela dormia, eu mal me movia na poltrona do ônibus, com meus garranchos diante dos olhos : o que era aquela teoria que (eu me perguntava) pretendendo conceituar a escritura, era ela mesma um discurso escritural ? ----- A escritura é isso mesmo (eu disse quando ela acordou ) A ciência dos gozos da linguagem, seu '' Kamasutra '' (.) ----, e ela riu . De fato :e imensos obstáculos sempre cercavam os grandes prazeres da língua, e mais ainda seus gozos instantâneos ---- novamente a ''filosofia do instante '' blakeana . O trânsito seguia interrompido pelos caça-níqueis de Montana, tão desnecessário nas estepes de Dakota. ---- A própria escritura como inimiga N 1 da Doxa, ou Opinião Dominante (conceito de Barthes colhido em Brecht ) ; seu campo só pode ser o do paradoxo, naturalmente ; e como a Doxa está sempre recuperando as posições paradoxais , é necessário seguir se deslocando como Jack London ou Rimbaud, levando o discurso a exercer sua função crítica e utópica. Nenhuma repetição de receitas para recolocar a Roda do Dharma em movimento : o próprio impulso de nossa consciência, aproveitado iniciáticamente, nos leva ao ABERTO DO MUNDO onde o único valor estável parece ser mesmo essa linguagem indireta, telepática, auto-referencial e auto-suficiente que caracteriza o texto poético moderno (.) -----, eu disse. A linguagem dos anjos ou dos pássaros dos estados de consciência mais elevados eram bem mais do que isso, mas eram também isso, e a partir disso. Aquele era o método mundano com o qual se forjava ''al dente'' um novo órgão verbal com que sondar o mundo. Por isso, eu me sentia na posse do fruto mais refinado de toda a tradição poética moderna, ao transformá-lo em veículo particular de comunicação com o mundo. Esse verbo (eu pensava) sempre seria capaz de resumir minhas sensações mais raras, de fertilizá-las até criar aquela outra vida dramática dentro da minha própria, que durante as sucessivas iniciações exigiria de mim exorbitantes dissipações mentais. A mesma idéia do Verbo Divino de Rimbaud, o verbo de diamante eternamente polido pela tradição crítica moderna. A Guerra, o Poder, as Artes eram corrupções colocadas tão longe do alcance humano, tão em suas profundezas quanto a devassidão. Mas, desde que o homem se lançasse ao ataque dos mistérios espirituais, ele já não entrava em outro nível de consciência ?? ----- A guerra é a orgia do sangue (eu disse ) e a política a dos interesses (.) Todos os excessos são irmãos . As monstruosidades sociais possuem a força dos abismos ; elas nos atraem, como Santa Helena chamava Napoleão ; elas dão-nos vertigem ; elas fascinam e nós queremos chegas às suas profundezas mesmo sem saber porquê (.) É a idéia do infinito o que se esconde nesses precipícios do Inconsciente Coletivo, e a do estilo com que está revestido o conteúdo que, em cada caso, alcança a superfície da realidade, a distinção tradicional de forma e fundo . Um bom estilista ainda é aquele que escreve bem , que domina múltiplos recursos e comunica com habilidade estratégica a graça de suas idéias e das idéias alheias. Por isso escritura não é só expressão ---- é uma linguagem enviesada que , pretextando falar do mundo, remete sempre a si mesma como referente e como forma particular de refratar o mundo. A escritura questiona o mundo sem se preocupar em oferecer repostas, e por isso mesmo oferecendo-as intuitivamente ; os acordes psíquicos que a escritura toca liberam a significação , como um choque de espreita, mas não fixam nenhum sentido. Nestas circunstâncias, o sujeito que fala não é pré-existente ou pré-pensante, não está centrado num lugar seguro de enunciação, como o escriba anestesiado pela Doxa, mas produz-se, no próprio texto , em instâncias sempre provisórias, como uma substância desconhecida e extremamente volátil cujo manejo requer uma incrível intensidade de concentração. Um modo de dizer as coisas, uma enunciação, uma voz. E esse modo de dizer provém do mais íntimo e único de cada escritor : do seu corpo , do seu inconsciente, de suas recapitulações pessoais , do mar escuro do seu ser . ----- Minha escrita é o termo de uma metamorfose cega e obstinada, partido de uma infra-linguagem que se elabora no limite da carne e do mundo, à medida que é expandida pela aquisição progressiva do nirvana. É o nirvana, ou o plasma, esse fogo consciencial que substitui, na consciência do escritor iniciado, as idéias e os pensamentos por idéias-palavras, pensamentos-palavras e palavras-valise e objetos parciais despedaçados dentro da mente onde a forma não mais exprime , mas ''faz '' o conteúdo. E essa escritura não se presta à análise tópica, como desejariam as velhas sentinelas críticas da Doxa. Podemos mostrar as técnicas que fazem um bom estilista, mas não podemos isolar aquilo que transforma um bom estilo numa autêntica escritura poética moderna. A capacidade de infiltrar-se e apropriar-se de qualquer discurso camaleônicamente, como um vírus editorial ?? Não existem aspectos secundários no método operativo do plasma, ele é uma substância viva atuando no texto. Por isso a escritura é essa ''rajada forte de enunciação ''. Um texto é realmente escritural quando nele ouvimos a voz única de um corpo, e a recebemos como um gozo : e o gozo não é analisável, nem recuperável por qualquer tipo de meta-linguagem .Ele é sentido como intensidade psíquica, como perda do sujeito pensante e ganho de uma nova percepção das coisas.
K.M.
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