Quando ouso pousar os olhos em uma superfície brilhante de neve , dou-me conta de um padrão fixo de mínimas miragens ópticas ---- nódoas de minha vítrea disposição de ânimo semelhante a micróbios congelados --- que sempre flutuam , em geral despercebidos, no campo da minha terceira visão . Esses inorgânicos, ou aliados, também fazem parte das tensões do meu Eu. E todos os bytes casuais de recordações espontâneas também fazem parte do meu Eu, assim como aquela voz repetitiva que , com suas ficções recompostas indefinidamente e suas recordações indistintas, faz-me companhia durante a insônia hiper-ativa e possui uma inteligência tão sedutora que por vezes eu não me nego a ver no meu próprio Eu apenas um pólo X que serve como suporte de todos os fenômenos psíquicos e poéticos do mundo. E eu jamais permaneço indiferente a esses estados , muito pelo contrário , eu os sorvo e os coleciono avidamente, como um vampiro, permanecendo comprometido com eles como um suporte super-consciente e alerta : uma totalidade concreta que contém e suporta suas próprias qualidades. Sinto não ser nada fora da totalidade concreta dos meus estados e ações além de consciência e intento puro , deslizando por um infinito volátil de dados ... nul signe de tailleur : chaque matin de la terre ouvrait ses ailes au bas des marches de la nuit . Sem dúvida (eu pensava ) sou transcendente a todos os estados que unifico, mas não como um X abstrato cuja missão é somente unificar . A totalidade infinita dos estados e ações só se deixa reduzir à um único estado e à uma única ação no samadhi, a identificação suprema da mente com seu princípio criador . Quando assino meu nome , por exemplo , e o tenho feito com frequência em livros e páginas , acho cada vez mais difícil ir além do K ou do K.M. ---- alguma coisa no ritmo do meu ‘’K.M.’’ tradicional impõe-me de repente uma pausa forçada , um congelamento dos meus músculos motores, geralmente no alto do ‘’M’’ , ou ao pé do ‘’K’’ isolado , de modo que a tinta da caneta, se liberada por uma ponta sensível , começa a sangrar , a esboçar uma estrela azul e a vazar do outro lado do papel . Essa hesitação espontânea, quase mística (penso) , no que deveria ser uma assinatura praticada com fluência (ma tombe et mon retour) penso que é também meu Eu . Uma falha que denuncia meu ser profundo, como uma fratura na camada de gelo da Antártida que revela um celeste azul alarmante na parte mais profunda ----- o alicerce rochoso, o pedregulho radioativo, por assim dizer, sob a tênue luz imaterial do meu desempenho literário e filosófico, social e tântrico . Então o Mundo, desse ponto de vista, passa a ser concebido como uma totalidade sintética infinita de todas as coisas ; um Mundo que alcançamos além de nosso contorno imediato como uma vasta existência concreta . Nesse caso , as coisas que nos rodeiam aparecem como o extremo ponto desse Mundo que as sobrepassa e as engloba . E o Eu se torna para os objetos psíquicos aquilo que o Mundo é para as coisas . Mas a ‘’aparição ‘’ do Mundo no ‘’horizonte das coisas ‘’ é um fenômeno bastante raro, quase uma iluminação e, em caso de um despertar maior, quase uma ‘’iniciação coletiva ‘’ ; mas se necessitam circunstâncias especiais (bastante bem descritas por Heidegger em Sein und zeit ) para que ele se ‘’desvele ‘’ . O Eu , pelo contrário , está sempre no horizonte de nossos estados , cada estado ou ação não podendo ser separado de nosso Eu . E esse caráter duvidoso do Eu, de presença pegajosa , não significa que eu tenha um ‘’Eu verdadeiro’’ (Moi) cuja existência ignoro , apenas que o Eu intencionado traz em si mesmo o caráter da dubiedade ( e em certos casos, da falsidade). Le sol qui recueille n ´est pas seul à se fendre sous les operátions de la pluie et du vent . Ce qui est précipité , quasi silencieux , se tient aux abords du séisme , avec séches paroles d ´avant-dire , pénétrantes comme le trident de la nuit dans l´iris du regard ... a hipótese metafísica de que o Eu não se comporia de elementos realmente existentes (há dez anos ou um segundo ) tampouco pode ser excluída ; esse poder do Genio Maligno se estende até aqui . Sinto que quando incorporo meus estados de consciência à totalidade concreta do meu Eu , não lhe agrego nada . Isso acontece porque a relação do Eu com suas qualidades, estados e ações , não é uma relação de emanação (como a relação da consciência com os sentimentos ), nem uma relação de atualização (como a realização da qualidade em um estado ) ---- a relação do Eu com suas qualidades, estados e ações é (isso sim ) uma relação de produção poética, de criação . O Eu se dá na produção desses estados, sejam mais ou menos intensos. ‘’Ce qui est précipité, quasi silencieux, se tient aux abors du séisme ‘’. O Eu mantém suas qualidades por uma verdadeira criação contínua . E se por acaso apareço sempre além de cada qualidade minha ou mesmo de todas , é porque meu Eu é como um objeto opaco : seria necessário desnudá-lo infinitamente para privá-lo de toda sua potência ; e no final desse desnudamento, não haveria nada, o Eu teria se desvanecido no Céu da iluminação, e a consciência teria adquirido o boleto de impecabilidade do ser essencial para a vida eterna . A Bíblia , no entanto, fala muito pouco sobre o Céu, afora as meditações extensas de Ezequiel e os vislumbres da cidade cristalina com ruas de ouro no 21 do apocalipse. Os fundadores da fé cristã não ignoravam , mesmo em seu cosmo relativamente ingênuo, a potencialidade de absurdos póstumos ; Jesus havia rechaçado a pergunta dos saduceus sobre as perplexidades da pós-ressurreição dos ‘’casados muitas vezes ‘’ (Marcos 12: 8-27 – Mateus 22:23-33 – Lucas 20 : 27-40 ), e Paulo , ao explicar a seus captores em Cesaréia que Cristo era o primeiro de muitos a erguer-se de entre os mortos , ouve do magistrado romano que muito saber o havia enlouquecido (Atos 26: 23-24 ). Mas a igreja , ao atingir a ortodoxia , passou a insistir, com uma firmeza não menor que a do materialismo moderno , que ‘’o corpo é o Eu ‘’, e deixou-nos com um dogma, a ressurreição dos mortos , que se tornou algo inconcebível na imaginação da degradação evangélica posterior. O Eu é o criador de seus próprios estados e sustenta suas qualidades na existência por uma espécie de espontaneidade conservadora . Obviamente , não se trata de ‘’responsabilidade ‘’ ou ‘’compromisso ‘’ , mas de um processo mágico (sempre com um fundo de ininteligibilidade ) de ''escritura hechizada '' , conduzida visceralmente pelo desejo . Trata-se então de um pseudo-espontaneidade que encontraria seus símbolos convenientes na emergência de uma fonte, de um geiser, etc . Na passagem de si mesmo para outra coisa , o que supõe que a espontaneidade escapa constantemente de si mesma e vira outra coisa . A espontaneidade do Eu , embora não possa existir por si mesma , como um inorgânico, possui porém uma certa independência em relação ao Eu, de modo que o Eu se encontra sempre encoberto pelo que produz , apesar de que , de um certo ponto de vista, ele ''seja '' o que produz . O laço com que o Eu reúne seus estados permanece sendo ''ininteligível ''... digamos : esotérico . Toda tentativa de ser explícito sobre o ''Ponto de Aglutinação '' da consciência estarrece-nos . O ''Eu essencial '' é um punho luminoso do tamanho de uma bola de tênis, flutuando a dois braços de distância na altura das omoplatas. Notre parole , en archipel , vous offre , aprés la douleur et le desástre, des fraises quélle rapporte des landes de la mort , a insi que ses doigts chauds de les avoir cherchéés . Nessa época medicamente engenhosa que já levou a cabo muitas ressurreições práticas reais , os testemunhos daqueles que retornaram do Além , os relatos de suas E.Q.Ms , de túneis irradiantes e e sensação de amor difusivo imaterial , caracterizam-se por um tipo de banalidade de muito mau gosto , quase tão detestáveis quanto as ''canalizações'' e as ''mesas brancas ''. Na verdade , é toda essa pseudo macumba esotérica da internet que autoriza um autêntico nirvani como eu , um Mestre do samadhi , a simular desavergonhadamente o ''romancista ateu '' do racionalismo francês só para incorporar toda essa histeria charlatã de forma humorística. Os cérebros das pessoas deixaram de ser condicionados pela reverência e o temor religioso . Ninguém mais é capaz de imaginar um Segundo Advento que não seja reduzido ao formato do noticiário noturno da televisão . Algo talvez parecido com o que sucedeu com os mestres do estruturalismo : Lévi-Strauss na antropologia ; Lacan na psicanálise ; Foucault na filosofia ; Barthes na linguística-poética. Por um fenômeno tipicamente francês, esses nomes-obras foram captados pela imprensa de massas e pela televisão , de modo que um vasto público familiarizou-se , então , com o jargão desses especialistas ; os rostos dos mestres tornaram-se familiares para os espectadores de televisão e para os leitores dos grandes jornais franceses ; seus seminários tornaram-se grandes acontecimentos mundanos , shows quase tão disputados quando os do show business. O sucesso era tamanho que outras estrelas ascendentes tbm começaram a oferecer shows particulares : Derridá, Deleuze , Kristeva , Todorov , Greimas , Lyotard, Morin ( boa parte do público desses seminários era latino-americano , e os maus momentos por que passavam, sucessiva ou concomitantemente, os países das Américas Central e do Sul naquela época , transformou muitos brasileiros em ''brésiliens '' ---- houve um momento, inclusive , em que muitos desses mestres contavam e comparavam entre si o número de seus respectivos ''brésiliens '' , numa espécie de teste de popularidade . A linguística estrutural de Saussurre e a linguística transformacional de Chomsky ; o formalismo russo dos anos 1920 e a nova semiótica soviética. A antropologia de lévi-Strauss e a psicanálise de Lacan renovadas pela linguística de Jakobson . As novas teorias da informação e da comunicação permitindo uma nova leitura dos textos literários, assim como dos textos políticos e publicitários. Estruturas. Sistemas. Signos . Códigos. Processos. Significações. Ben trovate ! , que em pouco tempo isso tudo já se tornara o sonho megalomaníaco de uma decodificação geral dos sistemas e signos ; e como toda manifestação humana é um ''sistema de signos '' (e agora voltamos ao assunto ) imaginou-se então também uma ciência geral da narrativa , que se encaixaria numa ciência geral das artes , que se encaixaria numa ciência geral da linguagem, abarcando tanto a sociedade quanto o inconsciente . Essa mesma ânsia de totalização do pensamento esteve presente no projeto filosófico de Heidegger, enquanto o filósofo alemão adaptava sua terminologia única aos dispositivos do Reich, com Sein und Zeit . De fato (eu pensava ) a consciência projeta sua própria espontaneidade silente no eu para conferir-lhe o poder criador que lhe é absolutamente necessário . É claro que (tudo na vida tem seu preço ) esta espontaneidade , representada e hipostasiada no eu , devém uma espontaneidade bastarda e degradada , que conserva magicamente sua potência criadora ao mesmo tempo que se faz passsiva. E conhecemos bem outros aspectos degradados da espontaneidade consciente . Não citarei mais que um : uma mímica expressiva e fina pode entregar-nos a ''Erlebnis '' de nossa bela interlocutora com todo seu sentido , todos seus matizes , todo seu ruivo frescor . Mas a imagem nos chega espiritualmente degradada pelo fundo passivo da distância. Ficamos assim rodeados de objetos mágicos que guardamos como uma lembrança da espontaneidade da consciência, mesmo sendo objetos do mundo . Essa é a principal causa que faz de um indivíduo um ''brujo'' para os outros : esta ligação poética de duas passividades , das quais uma cria espontaneamente a outra ----- não é outro o fundo mesmo de toda ''brujeria'' , o sentido profundo da ''participação '' espectral . E é por isso também que cada um de nós é ''brujo'' de si mesmo cada vez que consideramos nosso Eu ''em jogo '' .
K.M.
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