sábado, 23 de setembro de 2017

CONHECE-TE

É curioso e estranho que, não sendo fácil encontrar palavras com que verdadeiramente se defina o homem como distinto dos animais, é todavia fácil encontrar maneira de diferenciar o homem superior do homem vulgar. 

Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel, o biologista, que li na infancia da inteligencia, quando se lêem as divulgações científicas e as razões contra a religião. A frase é esta, ou quase esta : ''que muito mais longe está o homem superior (um Kant ou um Goethe, creio que diz ) do homem vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca esqueci a frase porque ela é verdadeira. Entre mim, que pouco sou na ordem dos que pensam, e um camponês de Loures vai, sem dúvida, maior distância que entre esse camponês e, já não digo de um macaco, mas de um cão ou de um gato. Nenhum de nós, desde o gato até mim , conduz de fato a vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é dado; todos somos igualmente derivados de não sei quê, sombras de gestos feitos por outrem , efeitos encarnados, consequências que sentem. Mas entre mim e o camponês há uma diferença de qualidade, proveniente da existência em mim do pensamento abstrato e da emoção desinteressada; e entre ele e o gato não há, no espírito, mais que uma diferença de grau.


O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estágios : o estágio marcado por Sócrates, quando disse ''Só sei que nada sei '', e o estágio marcado por Sanches, quando disse  ''Nem sei se nada sei ''. O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo homem supérior o dá e atinge. O segundo passo chega Aquele ponto em que duvidamos de nós e de nossa dúvida, e poucos homens o tem atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra.


Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse ''Conhece-te '', propôs uma tarefa maior que a de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge.


Fernando Pessoa

Bernardo Soares,
O LIvro do Desassossego

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