O que seria , enfim, a poética de Manoel de Barros? É possível defini-la? Em filosofia , as coisas definíveis recebem uma essência, uma identidade. É essa essência-identidade que permite o conhecimento científico da realidade. Porém, há coisas indefiníveis. As coisas indefiníveis não cabem em um conceito. Elas se permitem ser apenas experimentadas, vividas, intuídas. Não obstante, elas podem ser compreendidas. Compreender não é o mesmo que conhecer. Não podemos conhecer o infinito, mas o compreendemos. Talvez nunca tenhamos um conceito ou conhecimento científico da liberdade, porém compreendemos sua necessidade.
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A poética de Manoel de Barros talvez possa ser compreendida como uma originalíssima “empoética” . Não há regras ou cânones nessa empoética , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra pode conjugar quando perde seu limite utilitário e gramatical. Empoemar as palavras também é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Essa empoética manoelina não possui regras de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer a gramática .O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Manoel empoema a palavra . Ele a liberta do mero informar. Ele empoema sobretudo as palavras mais simples. Redescobre, adulto, o falar empoemado da criança.A palavra empoemada não é mais representante linguística do mundo, pois ela incorpora o mundo que expressa:
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos ,
um inauguramento de falas.
Há nisso mais do que poesia… Talvez seja isso a autêntica poesia: ser mais do que poesia. A má poesia, ao contrário, é sempre menos. A autêntica poesia não é só verso: embora não seja conceito filosófico, ela “dá a pensar”, empoemando-nos. Este “dá a pensar” é o “inauguramento” de um sentido sempre novo, que não deixa a poesia se fechar nela mesma, na mera palavra ou letra. É preciso descobrir, na letra, a fala que a fez nascer. Não a fala pessoal como instância inferior à língua gramatical. A fala poética é sempre “afloramento de falas”: falas da infância, falas das coisas e das pré-coisas, falas do chão, falas dos loucos, falas dos passarinhos, falas do silêncio e até mesmo falas daqueles que não têm falas. Poesia é língua de brincar.
Não é por fazimentos cerebrais
que se chega ao milagre estético
senão que por instinto linguístico.
Segundo Manoel de Barros, “quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é”. Quem descreve crê que o descrito existe fora da descrição, como algo que existe em si, com uma identidade definível e comunicável. Quem descreve se pretende “neutro”, imaginando falar de um lugar no qual não entram seu corpo e sua vida. “Eu escrevo com o corpo /Poesia não é para compreender, mas para incorporar”, adverte o poeta
http://saopauloreview.com.br/manoel-de-barros-em-um-ensaio-e-uma-homenagem/
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