sábado, 5 de janeiro de 2019

A fria e dura objetividade dos fatos


Ao contrário da "visão neoliberal", que subestimava o potencial de crescimento da economia, os desenvolvimentistas argumentavam que havia potencial não utilizado devido aos ganhos de produtividade "ainda não aproveitados" decorrentes de ganhos de escala, à elevação do emprego nos setores formais, deslocando os trabalhadores de menor produtividade, à indução do investimento privado, e à abertura de novos mercados externos. Entretanto, esses ganhos só poderiam ser realizados se a taxa de crescimento fosse elevada pelo ativismo estatal fiscal e creditício, iniciando um círculo virtuoso que poderia elevar o crescimento anual do PIB "um ou dois pontos percentuais acima do estimado pelos adeptos da visão neoliberal".

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 investimento plurianual11, sobretudo em energia e transporte, que articulou o investimento público com o investimento das empresas estatais e privadas especialmente através de concessões em infraestrutura, e uma forte expansão do crédito para investimento, principalmente pelo setor bancário público. Segundo os "desenvolvimentistas", esse programa recuperaria uma infraestrutura econômica defasada por 30 anos de baixo investimento, ao mesmo tempo em que incluiria desonerações fiscais "para incentivar o investimento privado e o mercado de massa" (2010, p. 73). Outro aspecto emblemático da mudança de concepção do gasto público é que esse aumento no investimento estatal poderia ser financiado tanto por receitas tributárias quanto por novo endividamento, fato inédito desde as reformas orçamentárias de 1986, e violando um "tabu" da política fiscal12.

A forte resposta da economia a esse ativismo estatal, devida, em parte, a um ambiente internacional de liquidez e à expansão da demanda interna e externa até meados de 2008, fez com que a receita tributária e o PIB crescessem de modo a reduzir a dívida pública, medida em proporção do PIB (ver Tabela 1). Assim, melhoraram os indicadores fiscais, apesar da constante valorização do real perante o dólar13. Durante a fase mais aguda da atual crise internacional, houve um maior afrouxamento fiscal e expansão da liquidez, o que minimizou o impacto doméstico do choque contracionista. A economia se recuperou fortemente já em 2010, apesar da deterioração da conta de transações correntes, resultando em um ambiente interno de grande otimismo.

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O relevante a destacar é que essas medidas de política econômica foram introduzidas de forma complementar às políticas macroeconômicas vigentes, e não em sua substituição. Por exemplo, a política fiscal manteve a meta de resultado primário, mas, por norma legal, esse passou a ser entendido como resultado primário em despesas correntes, portanto excluindo os investimentos públicos e as contas de algumas grandes empresas estatais14. Isso resultou em uma disponibilidade maior de recursos para investimentos no setor público. Entretanto, ainda persiste um déficit nominal apesar do resultado primário favorável e do crescimento econômico (ver Tabela 1)15. Quanto à inflação, quando ocorreram choques adversos na oferta de alimentos non-tradables e subiram os preços internacionais das commodities, em 2007-2008, o governo respondeu com desonerações tributárias, minimizando tais choques e associando medidas fiscais às medidas monetárias no controle da inflação, seguindo a concepção novo-desenvolvimentista do uso de vários instrumentos complementares de política econômica. Da mesma forma, a política econômica associou desonerações fiscais com a ampliação do crédito para elevar o investimento privado de forma seletiva, medidas que são geralmente consideradas pela "visão neoliberal" como redutoras da eficiência da alocação de recursos, sendo tendencialmente desestabilizadoras e, portanto, contraproducentes.


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A construção teórica de uma nova política econômica no Brasil, desenvolvendo a teoria contemporânea e reelaborando a experiência do nacional-desenvolvimentismo, teve por impulso a superação de aspectos importantes do neoliberalismo, incluindo as políticas macroeconômicas e as reformas microeconômicas. As políticas neoliberais vêm sendo crescentemente vistas como nocivas em um contexto periférico, especialmente após as crises cambiais que atingiram o Sudeste Asiático. Essas se deveram, em grande medida, à desregulamentação financeira e ao livre movimento de capitais, que geraram instabilidade cambial, movimentos especulativos e o crash. A continuidade dessas políticas nos primeiros anos do governo Lula, tido como portador de mudanças políticas e socioeconômicas, originou críticas e catalisou a elaboração de propostas alternativas de política econômica.
Enquanto alternativa mais difundida, e conforme examinado acima, o novo-desenvolvimentismo contém um corpo articulado de políticas econômicas baseadas teoricamente no keynesianismo e no estruturalismo cepalino. Seu objetivo é representar uma nova estratégia de desenvolvimento, superando o nacional-desenvolvimentismo tradicional e adequando os seus princípios às novas realidades emergentes da revolução tecnológica e da globalização. Essa política econômica advoga a necessidade de uma ruptura com as políticas macroeconômicas neoliberais, a serem substituídas por novas políticas monetárias, cambiais e fiscais, e subordina a adoção das novas políticas à existência de um projeto nacional para o Estado brasileiro. A defesa da ruptura tem como fundamento a ideia de que as políticas macroeconômicas neoliberais são incompatíveis com a soberania do Estado para implementar uma política econômica atendendo ao objetivo nacional de retomada do desenvolvimento com estabilidade macroeconômica e com um menor custo fiscal.
A base teórica do novo desenvolvimentismo guarda semelhança com o neoestruturalismo de Fajnzylber (1989) e Cepal (1990), que entende a equidade como objetivo inerente e necessário ao desenvolvimento dos países latino-americanos.


Muitas das medidas de política econômica preconizadas pelo novo-desenvolvimentismo passaram a ser adotadas pelo governo Lula a partir de 2006, mas sem ter havido uma ruptura com as políticas macroeconômicas neoliberais. Essas mudanças - consideradas, corretamente, por Barbosa e Souza (2010) como uma inflexão e não como uma "nova política" - se deram de forma complementar (ou mesmo aditiva) às políticas macroeconômicas neoliberais, que foram mantidas praticamente sem alterações, apesar de tensões durante o período 2006-2010.
O sentido mais amplo das mudanças foi dar ativismo ao Estado no domínio econômico, principalmente (a) no fomento à produção via financiamento de capital e investimentos públicos em infraestrutura; (b) na expansão do mercado de consumo de massa via programas de transferência de renda, elevação do salário mínimo e do crédito ao consumo; e (c) apoio à formação de grandes empresas brasileiras, transformando-as em agentes competitivos em frente às multinacionais tanto no mercado interno como no mercado internacional, via crédito e outros incentivos regulatórios para aquisições e fusões, e também via apoio diplomático, em especial nas relações Sul-Sul.
Algumas das mudanças da política econômica não se apresentam explicitamente no programa novo-desenvolvimentista, apesar de serem coerentes com ele, como é o caso da estratégia de formar "empresas campeãs", que tem inspiração na experiência de países emergentes do Leste Asiático, além de medidas associadas com a expansão do mercado de consumo. Quanto a esse último aspecto, nota-se que o novo-desenvolvimentismo destaca genericamente a "equidade", enquanto o discurso do governo Lula enfatizava a "inclusão".
Esse caráter complementar, ou adicional, da inflexão de política econômica no segundo governo Lula não permite considerá-la como uma política novo-desenvolvimentista inteiramente coerente. Apesar dos bons resultados atingidos em termos de crescimento econômico e distribuição de renda, e da melhora do posicionamento do Brasil no sistema capitalista internacional, a inflexão ocorrida a partir de 2006 definiu uma política que pode ser denominada mais apropriadamente como "híbrida", associando políticas macroeconômicas visando à estabilidade monetária e presumindo, implicitamente, o equilíbrio espontâneo dos mercados, com políticas objetivando à aceleração do desenvolvimento e a equidade social mediante um destacado ativismo estatal.
Diferentemente do que seria de prever, essa convivência de políticas econômicas supostamente antagônicas vem obtendo resultados tão favoráveis quanto inesperados, apesar da continuidade de problemas decorrentes da manutenção das políticas macroeconômicas neoliberais. Houve uma generalizada melhora das variáveis econômicas a partir de 2006, algumas delas apontando, inclusive, para mudanças estruturais em curso na economia brasileira. No setor externo, por exemplo, nota-se (a) a elevação constante e acelerada, em valores absolutos, dos ativos brasileiros no exterior, em especial dos investimentos diretos e dos créditos comerciais, mostrando que o país passou a financiar parte considerável de suas exportações (para os dados a seguir, ver Tabela 2); e (b) a estabilidade do passivo externo líquido total como porcentagem do PIB, apesar da crise internacional deflagrada em setembro de 2008.
Apesar disso, também se nota que outros dois indicadores externos importantes não sugerem alterações estruturais, já que podem sofrer reversão a depender de circunstâncias conjunturais. Esses incluem (a) o crescimento das reservas internacionais, que é compensado por idêntico volume de passivos estrangeiros em port-fólio, de grande liquidez; e (b) a posição credora externa, que depende da capacidade do sistema financeiro doméstico de manter elevada a oferta de crédito em reais. Internamente, é possível tomar como indicador de mudanças estruturais a redução monotônica da pobreza absoluta de 35,8% das famílias, em 2003, para 21,4% em 200916, e o forte aumento da oferta de crédito interno por bancos privados e estatais, que passou de 24,6% do PIB, em 2003, para 46,6% do PIB em 2010 (o crédito dos bancos privados cresceu de 14,8% para 27,1% do PIB, enquanto o dos bancos estatais cresceu de 9,8% para 19,5% do PIB).


Esta situação inusitada, em que uma "política híbrida" logrou atingir um sucesso amplo e significativo, foi certamente inesperada. A perplexidade generalizada devida ao bom desempenho da economia brasileira deve-se ao suposto de que tal mescla de políticas é insustentável, tanto pela perspectiva do mainstream quanto pela "heterodoxia" novo-desenvolvimentista. Esse resultante inesperado coloca-nos diante da necessidade de explicar por que a inflexão, que, desde 2006, "hibridizou" políticas macroeconômicas neoliberais com políticas contrastantes de desenvolvimento e equidade via ativismo estatal, alcançou resultados tão positivos.
Uma possível explicação seria que ocorreu uma suspensão momentânea dessa incompatibilidade devido a causas contingentes e exógenas à economia nacional - especificamente, a excepcional liquidez internacional no período 2003-2008. Essas circunstâncias extraordinárias teriam permitido que as medidas heterodoxas fossem absorvidas momentaneamente pelos agentes internos e externos, bloqueando a crise de desconfiança que anteciparia o seu "inevitável" impacto adverso nas contas públicas e na inflação, através da suspensão dos investimentos e da fuga de capitais. Nesse caso, a incompatibilidade voltaria a se impor quando essa conjuntura for revertida, o que é inevitável dada à natureza cíclica da economia internacional.
Como mostram Barbosa e Souza (2010), essa explicação é insuficiente, pois a política híbrida continuou a dar bons resultados mesmo quando as circunstâncias internacionais favoráveis foram abruptamente substituídas por uma grave crise, em setembro de 2008. A reação do governo à nova situação aprofundou suas políticas de estímulo à renda e à demanda, acentuando o ativismo estatal. Supostamente, essa reação não só impediu que o choque externo inviabilizasse os ganhos atingidos com a "inflexão" (como a elevação dos investimentos públicos e privados, o aumento da renda e a queda da desigualdade), como permitiu a volta ao crescimento a partir do final de 2009, em que pese - outra vez - o retorno da sobrevalorização do real e a elevação do custo fiscal da política monetária e do regime de flutuação cambial.
Outra explicação - mais abrangente que a anterior - seria que, apesar da incompatibilidade em questão ser verdadeira, sua suspensão provisória deve-se a uma singular conjunção de fatores políticos e econômicos inscritos no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Em primeiro lugar, não se deve subestimar a capacidade de forças políticas "alternativas" operarem apesar da ideologia hegemônica, especialmente quando a força do consenso ortodoxo está em declínio, como demonstra Bresser-Pereira (2001)17. Essa capacidade do governo Lula de operar em oposição ao mainstream pode ter sido reforçada, a partir de 2005, pela evolução favorável da liquidez internacional e pela melhora rápida (e rara) nas condições econômicas de todas as classes sociais, em resposta às políticas do governo. Por sua vez, essa resposta rápida pode ser explicada pela existência de ganhos "potenciais de produtividade" na economia, até então não mobilizados, conforme argumentado por Barbosa e Souza (2010). Em segundo lugar, deve-se atentar para a presença singular de uma liderança política carismática e dotada de imaginação política, como Lula comprovou ao exercer o governo.

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