RESENHAS
Entre passos firmes e tropeços
Renarde Freire Nobre
Antônio Flávio PIERUCCI. O desencantamento do mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo, Editora 34, 2003. 236 páginas.
Inicialmente gostaria de destacar dois méritos deste livro, os quais lhe conferem uma qualificação superior, para além das limitações ou mesmo dos equívocos. Trata-se de um texto muito bem escrito, em linguagem clara e agradável; na leitura, transparece o gosto do autor pela escrita, algo que, bem o sabemos, não é moeda corrente no mundo acadêmico. Além disso, a obra reflete uma pesquisa extremamente minuciosa do que constitui seu tema central – desencantamento do mundo [Entzauberung der Welt], doravante DM –, esforço que se evidencia já no subtítulo "todos os passos de um conceito". E foi precisamente isso que Pierucci fez: selecionou e analisou todas as aparições da expressão DM nos originais escritos por Weber, utilizando-se inclusive da pesquisa digital (CD-ROM das obras completas do pensador alemão), tudo realizado com extremo cuidado e com a melhor tradução para o português, auxiliada pelo cotejamento com traduções feitas em outras línguas (inglês, francês, espanhol, italiano).1 Assim, quero frisar que gosto do livro como texto e como pesquisa. Se aqui lhe serão feitas críticas, algumas contundentes, elas só se fizeram possível a partir da riqueza do material selecionado e da força interpretativa da abordagem adotada pelo autor.
Antes de passar às considerações críticas, faz-se mister apresentar um brevíssimo resumo do livro na forma de suas idéias principais. A expressão "desencantamento do mundo" é apresentada como um "conceito" profícuo no esquema analítico weberiano, contra as interpretações de que se trataria de um "simples termo" ou, pior ainda, uma "visão de mundo". Em sendo um "conceito", seria preciso encontrar seu "núcleo duro" em meio às evidentes variações (pp. 31 e 35).
Quanto às variações, elas se resumiriam a dois significados associados à expressão DM, que leva Pierucci a falar num "mundo duplamente desencantado" (p. 139): um religioso (ou ético-prático), indicando o processo de "desmagificação" das vias de salvação, e outro científico (ou empírico-intelectual), que designa o processo de "deseticização" via transformação deste mundo num mero mecanismo causal (pp. 42, 165, 185 e 201).
O "núcleo duro" do conceito, corresponderia à semântica religiosa. A favor de tal pertinência, Pierucci apoia-se em dois argumentos cronológicos: um de ordem histórica, pois a "desmagificação", operada no âmbito religioso – notadamente no judaísmo e no puritanismo –, seria "o verdadeiro Big Bang do racionalismo prático ao modo do Ocidente moderno" (p. 147). Em reforço está a idéia de que o modo de racionalização constitutivo do desencantamento é antes relativo ao "agir" do que ao "pensar", sendo as religiões ocidentais o seio milenar de regularização da conduta prática (pp. 146-147). E há o argumento de ordem biográfica, pois o fato de o últimoaparecimento do termo DM num texto escrito por Weber – a saber, a edição final de A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, de 19202 – vir em sua denotação ético-religiosa corroboraria, ao juízo de Pierucci, a postulação do significado "desmagificação" como aquele que corresponde ao "núcleo duro" do conceito.
A última idéia importante do livro é a de que DM corresponderia a um "conceito histórico" (p. 198), ligado ao processo geral de racionalização do Ocidente, ao que se acrescentaria o fato de Weber não ser um "sociólogo da religião" stricto sensu, a exemplo de muitos cientistas de hoje, mas um sociólogo-historiador das racionalizações da vida, em geral, e da modernização cultural do Ocidente, em particular, perspectivas em relação às quais se justificaram os seus estudos sobre religiões (p. 18).
Essa articulação de idéias, não obstante fiel ao espírito geral do livro em exame, é arbitrária no sentido de que visa a sustentar as considerações que farei a seguir. Darei "passos" necessariamente largos, porquanto uma resenha tem de ser curta.
Quanto ao caráter conceitual da expressão DM, parece-me que faltou uma devida apresentação do que vem a ser um "conceito" para Weber, o que exigiria o tratamento, minimamente posto, da noção de "tipos ideais". "Conceitos", em sentido weberiano, são tipificações que auxiliam o pesquisador na sua tarefa de conferir significados à realidade ou, se se preferir, são instrumentais para a expressão de "problemas", meios para o conhecimento causal-significativo, não a finalidade do conhecimento. Dada a insistência de Pierucci na condição conceitual da expressão DM, seria útil se ele precisasse o que é, metodologicamente, um "conceito" para Weber – para além de dizer que ele deve ter um "núcleo duro" –, com o que melhor esclareceria como e por que o processo de DM se adequa à caracterização (metodológica) de um "conceito".
Em relação à interpretação da dupla semântica do "conceito" DM, parece-me que o problema está na ausência de uma distinção clara entre o "significado cultural" (histórico) do conceito e as suas significações pontuais, uma vez que a expressão é acionada por Weber em seus textos. Perceber-se-ia que o fato de os dois principais significados de DM – o religioso e o científico – serem coetâneos no contexto da obra não indica que o são na história cultural. É certo que a idéia de um "mundo duplamente desencantado" pode ser aplicada aos dois âmbitos, mas, no plano histórico, o "duplo" não corresponde à simultaneidade de dois significados e, sim, a uma alteração de significado dentro de um mesmo e milenar processo de DM que constitui a singularidade cultural do Ocidente. Embora reconheça o caráter "histórico" ou "idiográfico-desenvolvimental" do "conceito" (pp. 198-199), Pierucci insiste, todavia, de que se tratam de processos coetâneos, não sucessivos. A confusão pode ser observada na seguinte passagem:
[...] enquanto permanecer viva e influente no Ocidente essa religiosidade ético-ascética [em sua versão puritana], nós estaremos, na verdade e por outro ângulo, apenas no início do fim. [A ascese puritana] é religião de saída da religião, só que ainda é religião. Estamos apenas na abertura de uma nova etapa do desencantamento do mundo, que começa a se infletir apenas aí numa outra direção, com outro conteúdo, outra materialidade substantiva e, sobretudo, um outro rumo, outra direção" (pp. 211-212).
Sem dúvida, o que há é uma outra etapa de um mesmo processo, mas de modo algum indefinida, em gestação e, o que é mais incorreto, em convivência com o processo tradicional de matiz religioso. A significação técnico-científica do DM, ao mesmo tempo em que guarda sua herança das grandes religiões éticas – daí haver uma relação arqueológica da ciência com o ascetismo e o intelectualismo das dogmáticas proféticas –, ela também efetivamente instaura uma era em que o DM adquire uma expressão radicalmente anti-religiosa, ao se dispensar qualquer justificativa ética para o mundo.
Se as religiões persistem – e, antes de tudo, a religiosidade –, sua eficácia desencantadora ficou no passado, como "motivo" que posteriormente se dispensa. Pois Weber não falou do "paradoxo das conseqüências" em relação ao processo em que as intenções ético-ascéticas que deram ensejo ao moderno racionalismo deixaram de ser necessárias... e ele não falou da fatalidade dos novos tempos em que o DM tornou-se sinônimo de racionalização e intelectualização seculares (Ciência como vocação)? Há sim um "mundo duplamente desencantado" na forma de duas "etapas" históricas, mas que, contudo, não são simultâneas; ao contrário, elas se sucedem na forma de uma inflexão histórica, pela qual o avanço de racionalidades mundanas de tipo seculares substituem o significado ético-religioso do DM por um significado não-ético, empurrando, concomitantemente, a religiosidade para o plano do irracional – e, quiçá, para uma abertura à mística. Faltou a Pierucci mostrar o quanto o "aumento da carga semântica" na panorâmica do DM no Ocidente se deu na forma de uma inflexão histórica que desalojou o conceito da sua matriz religiosa via resignificação numa nova matriz: o racionalismo de tipo formal e instrumental. A ascese ético-prática inventada e cultivada pelas religiões ajudou a constituir um mundo moderno que, contudo, a profanou.
Aliás, Pierucci também se equivoca ao restringir o desencantamento tardio à esfera do intelectualismo científico, quando na verdade ele se manifesta em todas as esferas racionalizadas de modo "puro", significando "técnicas de vida", como a economia capitalista e o Estado de Direito, e que, juntas, perfazem o chamado "racionalismo de domínio do mundo". E em todas elas também se trata, sociologicamente falando, de um "agir", só que orientado por regras e interesses, não mais por referências éticas alicerçadas em crenças.
Pelo que foi exposto, pode-se postular que o que há é uma mudança no "núcleo duro" do conceito. Embora não concorde, Pierucci vai se referir ao desencantamento no âmbito científico como "a acepção mais radical do termo" (p. 150). Há o "núcleo duro", há a "acepção mais radical"; há a "origem", há a "dimensão extremada": afinal, então por que diabos insistir na tese de que o significado religioso é mais significativo do que o científico? Resta uma argumentação prá lá de desconfiável: na busca minuciosa dos aparecimentos da expressão nos escritos de Weber, o que se encontrou como último emprego foi
[...] a desmagificação da religiosidade ocidental como resultante da racionalização ético-ascética da conduta diária da vida, e não como efeito do esclarecimento científico. Comemoro porque esse achado refuta terminantemente [sic] a hipótese de uma evolução semântico no trabalho do conceito (p. 218).
Acontece que esse apoio na cronologia da obra só reforça a confusão entre os significados pontuais com que Weber lança mão da expressão DM e sua "significação cultural" numa visão panorâmica da trajetória de racionalização do Ocidente. Não há "evolução semântica" do conceito na obra, mas "desenvolvimento" histórico da sua significação cultural. Talvez fosse mais coerente e convincente pensarmos em dois "núcleos duros" referidos às duas etapas: uma, cujo núcleo é a desmagificação religiosa do mundo, e outra, cujo núcleo é a desdogmatização técnica e intelectual do mundo. Embora se perpetue a ruptura com a magia no último âmbito, a mesma não se dá via dogmática, mas se constitui num pressuposto.
O puritanismo foi decisivo no processo ocidental de "desencantamento do mundo" como ponte entre suas duas etapas. Isso Pierucci compreende muito bem. O que ele não explora devidamente é o fato de o puritanismo, para além da eliminação definitiva da magia, também romper com o que é característico em todas as profecias ético-emissárias que o precederam: a tentativa de conferir um "sentido unificado e unificador à totalidade da vida". No puritanismo, a ética é rigorosamente individual e racional, no sentido da busca de fins práticos (tornados meios) e particulares (não universais e não fraternos). Não se compreende bem como o puritanismo fornece o ethos do ascetismo peculiar ao Ocidente moderno e sua função de ponte para uma era pós-tradicional se não se considera o seu impacto sobre a metafísica religiosa tradicional, para além do impacto sobre a magia. Por isso Weber dirá que o puritanismo é a única das religiões éticas que, não obstante "rejeite o mundo" e continue ligada a uma idéia de "além" e de "redenção", adapta-se com facilidade ao racionalismo tipicamente antiético das rotinas racionais secularizadas e tipicamente pós-religiosas, e este é o seu grande paradoxo interno: ser uma religião que promove a profanação do mundo. Se Pierucci tivesse explorado o tema do "paradoxo" que prescreve a relação entre a religião puritana e a modernidade, talvez nela encontrasse precisamente o ponto, ao mesmo tempo de ligação e de inflexão, entre os dois significados do DM, rumo a um "racionalismo de domínio do mundo" definitivamente desencantado.
Por fim, quero pontuar sobre o caráter problemático de duas outras interpretações. Primeiro, a de que o monoteísmo tradicional é mais desencantado que o politeísmo moderno. Os novos "deuses" são impessoais e glaciais, conquanto são tipicamente racionais; eles existem como cursos mundanos e objetivados de ações em relação aos quais, se não queremos ser superficiais e levados à reboque, devemos tomar consciência para um posicionamento maduro e desencantado. Quando Pierucci afirma que "Associado à ciência moderna, o conceito weberiano de desencantamento refere-se inescapavelmente à perda de sentido" (p. 141) – o que é correto –, poder-se-ia perfeitamente completar dizendo que o politeísmo moderno é a expressão máxima da perda de sentido, pois, afinal, envolve o governo das nossas vidas por "entidades" impessoais, objetivamente cultivadas, desprovidas, portanto, de qualquer transcendência ou sentido ético absoluto.
E mesmo a estética e a erótica, não obstante "deuses" inflamados e não tipicamente racionais, são, em essência, intramundanas e estranhas à ética. Se, como resgata Pierucci (p. 221), o amor sexual pode ser uma potência reencantadora, não o será certamente do mundo, em termos macro, mas no âmbito das experiências interpessoais e num sentido mais psicológico do que propriamente histórico-sociológico.
A última coisa que quero examinar é a crítica de Pierucci à "confusão" do DM com desencanto e decepção (p. 111). Tal crítica é pertinente, porque certamente não é esta a interpretação principal que Weber dá a expressão. Todavia, não há como negar que Weber concebeu efeitos espirituais perturbadores e, por vezes, deletérios, do racionalismo do desencantamento tardio, como se vê na banalização da política e o superficialismo das vivências. O próprio Pierucci parece reconhecer a carga "espiritual" negativa que acompanha a análise weberiana do desencantamento tardio quando afirma que "o tema ganha notas de melancolia e pessimismo" e que de conceito "produtivo" se transforma em conceito "crítico" (p. 161).
Compreendemos melhor as preocupações weberianas com os efeitos "espirituais" do DM na sua etapa profana ao verificarmos os convites à responsabilidade política e à integridade intelectual, que nada mais são do que respostas éticas a um tempo em que os homens, desabrigados da guarita dos velhos sentidos absolutos, correm o risco de se perderem na insignificância da vida ordinária, cujas rotinas se revelam mecanizadas e alheias ao destino pessoal das almas. O "destino pessoal" ou o "sentido do ser e do fazer": eis os desafios éticos que Weber procurou enfrentar quando se viu diante de um mundo desencantado num sentido anti-religioso ou pós-convencional.
Notas
1 O trabalho minucioso de exame das traduções levou o autor a confirmar os deploráveis erros de tradução em alguma das publicações da obra de Weber disponíveis em português.
2 Pierucci presta-nos uma esclarecedora informação sobre as duas versões de A ética protestante, uma de 1904-1905 e outra, ampliada e conclusiva, de 1920.
RENARDE FREIRE NOBRE, doutor em sociologia pela USP, é professor adjunto do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG.
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