quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Ora, que originalidade haveria em recolocar uma questão tão antiga quanto a questão do Ser e numa época que já vive a falência dos grandes sistemas metafísicos e das metanarrativas de caráter soteriológico? Que sentido teria a questão do Ser em um tempo indigente, que promove a massificação do homem, a fuga dos deuses, a devastação da terra e que não é capaz de pensar sua própria indigência enquanto tal?


Não nos é lícito nem equivocarmos, nem apenas encontrar a verdade. Antes porém, com a necessidade que uma árvore oferece seus frutos, brotam de nós nossos pensamentos, nossos valores, nossos sim e nossos nãos, nossas perguntas e nossas dúvidas - ... Tudo isto como testemunho de uma única vontade, de uma única saúde, de um único reino terreno, de um único sol. Se esses frutos desgostaram alguns, mas que importa isto às árvores. Que nos importa isso a nós, os filósofos... (NIETZSCHE, 1985, §2, p. 18).

Para Heidegger, a visão nietzschiana do caráter da totalidade do ente como Vontade de Potência não passa da "[...] experiência fundamental de um pensador [...] que é constrangido a pronunciar isso: [...] Que o ente é, tal como é e naquilo que é, Vontade de Potência." (HEIDEGGER, 1971, p. 35). Heidegger esclarece que vontade, na expressão vontade de potência, não é uma mera faculdade humana do querer que aspira qualquer coisa. E poder não deve ser confundido com o exercício cotidiano da violência, como um ato voluntarioso de um indivíduo poderoso. A expressão Vontade de Potência, compreendida de forma distorcida, expressaria um sentimento de deficiência, na medida em que ela não teria aquilo que quer – o poder. Heidegger considera isso uma deformação do sentido autêntico de um dos termos fundamentais do que ele chama a metafísica de Nietzsche. (Cf. HEIDEGGER, 1971).

Müller-Lauter ressalta que a própria interpretação heideggeriana da Vontade de Potência como princípio metafísico em Nietzsche seria equivocada, já que Heidegger concebe uma unidade na Vontade de Potência a qual se manteria através da constante superação de si, o que, por sua vez, exigiria que a totalidade do ente se manifestasse como eterno retorno do mesmo. De acordo com Heidegger, Nietzsche acaba se pronunciando sobre a totalidade do ente, ao conceber sua essência como Vontade de Potência e sua existência como eterno retorno do mesmo. Contudo, Müller-Lauter entende que o todo em Nietzsche só se dá como caos. O ente enquanto tal não é mais fixável. Não teria, portanto, sentido falar de qualquer fundamento do ente em Nietzsche. (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 70).

Segundo Heidegger, um primeiro olhar essencial ao conteúdo da expressão Vontade de Potência teria sido lançado por Nietzsche, na segunda parte do seu Zaratustra, na passagem intitulada "Da superação de si". Ali, o profeta do Além-do-homem sentencia:

Mas para entenderes minha palavra de Bem e de Mal: para isso quero dizer-vos ainda minha palavra da vida, e do modo de todo vivente. [...] Mas onde encontrei vida, ali ouvi falar a obediência. Todo vivente é um obediente. E isto em segundo lugar: manda-se naquele que não pode obedecer a si próprio. Tal é o modo do vivente. [...] Onde encontrei vida, ali encontrei Vontade de Potência ; e ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor. (NIETZSCHE, 1983, p. 238, apud HEIDEGGER, 1971, p. 264-265).

Tudo que é vida é Vontade de Potência, ou seja, onde há vida, há vontade de conservação e engrandecimento de vida. E tudo isso, que é apenas conservação da vida, não passa de decadência e declínio da Vontade de Potência, que é "[...] vontade de durar, de crescer, de vencer, de estender e intensificar a vida. É o mais forte de todos os instintos, o que dirige a evolução orgânica". (NIETZSCHE, 1985, p. 63). Segundo Heidegger, é a totalidade do ente que é constituída e mantida por essa vontade que sujeita tudo ao ciclo infindável do nascer e do perecer, enfim, o próprio mundo é em sua essência Vontade de Potência.

Este mundo é um monstro de força sem começo nem fim, uma quantidade de força brônzea que não se torna nem maior nem menor, que não se consome, mas só se transforma, imutável no seu conjunto [...] Força em toda parte, é jogo de forças e ondas de forças, uno e múltiplo simultaneamente acumulando-se aqui, enquanto se reduz ali, um mar de forças agitadas que provocam sua própria tempestade, transformando-se eternamente num eterno vaivém, com imensos anos de retorno [...]...quereis um nome para esse universo, uma solução para todos os enigmas? Uma luz até para vós, os mais ocultos, os mais fortes, os mais intrépidos de todos os espíritos, para vós homens da meia noite? Este mundo é o mundo da Vontade de Potência e nada mais! E vós também sois esta Vontade de Potência e nada mais... (NIETZSCHE, 1985, p. 290)

Heidegger acredita que, a partir da relação essencial entre Vontade de Potência e eterno retorno do mesmo, podemos compreender em que medida a vontade de vontade, a qual impulsiona o poder desafiador da técnica, não tem fim algum senão sua própria intensificação. Isso só é possível porque o ser do ente é concebido como Vontade de Potência, que em seu constante ultrapassamento de si exige o eterno retorno do mesmo. Assim, segundo Heidegger, Nietzsche não marcaria o ponto de enfraquecimento ou de superação da metafísica e, consequentemente, da própria era da técnica. Seu pensamento, na verdade, representaria o aprofundamento e o acabamento do projeto da metafísica de um incondicional controle sobre o real. A totalidade do ente que se manifesta como Vontade de Potência faz com que essa totalidade não passe de um devir, sem início, sem fim e unidade. Esse devir expressaria o movimento circular de intensificação do Poder: eis porque o caráter fundamental da Vontade de Potência se determina enquanto Eterno Retorno do Mesmo.



Conclusão

Certamente, para os mais ortodoxos, a interpretação heideggeriana violenta em muitos aspectos o pensamento de Nietzsche. Entretanto, podemos apontar alguns pontos de consenso entre ambos:

Heidegger partilha com Nietzsche o sentimento de que o niilismo não é um fenômeno recente ou tipicamente moderno, e que o reino do niilismo começa com o dualismo platônico entre mundo sensível, objeto de opinião e mundo inteligível, suposto lugar da verdade.

Esse reino do niilismo conhece seu apogeu, quando o horizonte que separava o mundo verdadeiro do mundo simplesmente aparente desaparece, fazendo com que o mundo até então considerado verdadeiro se transforme numa fábula.

É certo que Nietzsche teria precipitado a crise da metafísica, ao explicitar o elemento diferencial que estaria na origem de nossas avaliações e na origem da noção de verdade, sem se contentar em simplesmente inverter a hierarquia platônica do sensível e do inteligível, de ser e vir-a-ser. Contudo, ele teria omitido a questão da essência da verdade, não percebendo que sua própria crítica à noção de verdade enquanto estimativa de valor pressupõe uma verdade cuja essência seria a adequação, a conformidade (omoiwsiV). Nesse sentido, podemos considerar, com Heidegger, que Nietzsche teria submetido o subjetivismo e o racionalismo cartesiano a uma crítica feroz, mas ele não teria percebido que o ego volo (Eu quero) tem como precursor o ego cogito (Eu penso) cartesiano. Apesar de reconhecer que a origem do niilismo estaria no estabelecimento de certos valores transcendentes, Nietzsche acredita que certos valores, todavia, podem ser salvos. Ao pensar sob o ponto de vista do valor, Nietzsche obscurece a própria essência do niilismo, não percebendo que o niilismo consiste no fato de, no curso da história Ocidental, o ser ter sido esquecido, tornando-se, como dirá o próprio Nietzsche, um vapor (Cf. HEIDEGGER, 1971).

Certamente a leitura que Heidegger faz de Nietzsche comporta um determinado número de ambiguidades que se expressariam pelo viés de duas questões: como seria possível que o pensamento de Nietzsche implique o fim da metafísica, sendo ao mesmo tempo uma metafísica? E como se pode dizer que Nietzsche é o último metafísico e considerá-lo como um metafísico entre outros? Podemos considerar também que é, no mínimo, temerária a tese heideggeriana que considera a Vontade de Potência e o eterno retorno do mesmo na esteira da metafísica escolástica, ao afirmar a correlação de ambos os termos com os termos essentia e existentia. Isso significaria que a Vontade de Potência e o eterno retorno do mesmo sejam respostas à antiga questão ontológica colocada pelos gregos: que é o ente?

No entanto, apesar de todos os equívocos, ambiguidades e possíveis distorções, o que importa é que, da leitura heideggeriana, pode emergir um Nietzsche que não seja apenas o herdeiro e continuador da tradição metafísica iniciada com Platão, mas, quem sabe, o ponto de partida de um pensamento originário apto a pensar e ultrapassar o domínio planetário da técnica. Quanto à questão de saber se o pensar e o dizer de pensadores como Nietzsche e Heidegger desvelam alguma dimensão da verdade e do próprio Ser, deixamos a resposta com o próprio Nietzsche:

Não nos é lícito nem equivocarmos, nem apenas encontrar a verdade. Antes porém, com a necessidade que uma árvore oferece seus frutos, brotam de nós nossos pensamentos, nossos valores, nossos sim e nossos nãos, nossas perguntas e nossas dúvidas - ... Tudo isto como testemunho de uma única vontade, de uma única saúde, de um único reino terreno, de um único sol. Se esses frutos desgostaram alguns, mas que importa isto às árvores. Que nos importa isso a nós, os filósofos... (NIETZSCHE, 1985, §2, p. 18).

Heidegger, de seu lado, certa vez disse que questões não se dão à maneira de coisas que estão simplesmente aí. "Questões são e são apenas enquanto se investigam..." (HEIDEGGER, 1958, p. 32). Questões, portanto, só existem na medida em que se tornarem caminhos em direção àquilo que merece ser questionado: o sentido e a verdade do Ser nos limites do tempo. Para Heidegger, essa é a questão-guia da filosofia. Todas as demais questões levantadas ao longo de seu diálogo com a tradição metafísica estão envolvidas e se nutrem do pathos dessa questão fundamental.

Ora, que originalidade haveria em recolocar uma questão tão antiga quanto a questão do Ser e numa época que já vive a falência dos grandes sistemas metafísicos e das metanarrativas de caráter soteriológico? Que sentido teria a questão do Ser em um tempo indigente, que promove a massificação do homem, a fuga dos deuses, a devastação da terra e que não é capaz de pensar sua própria indigência enquanto tal? 
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732013000100007

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