quinta-feira, 20 de julho de 2017

Teleráma (George Steiner)

Nietzsche, Heráclito e Dante são os heróis do seu novo livro, Poetry of thought[Poesia do pensamento], mas vão ter de ficar para depois. George Steiner recebe-nos em casa, em Cambridge, numa confidencialidade divertida, entre uma fatia de bolo e um café. Nos primeiros dias do Eurostar, propôs que se desse um shillingao primeiro garoto que visse um peixe no Túnel da Mancha. "Os pais ficaram aterrorizados!", goza o professor de Literatura Comparada.
É essa mistura de malícia e erudição, inteligência e simpatia, que caracteriza George Steiner. Nascido em 1929 em Paris, de mãe vienense e de um pai checo que teve a presciência do horror nazi, este mestre da leitura poliglota decifrou Homero e Cícero desde tenra idade, sob orientação do pai, um grande intelectual judeu, fanático de arte e música, que queria despertar nele o professor (o sentido literal da palavra "rabino"). Em 1940, a família partiu para Nova Iorque, no último barco que saiu de Génova. Depois de estudar em Chicago e posteriormente em Oxford, Steiner entrou para a Redação do The Economist em Londres. Voltou a atravessar o Atlântico para entrevistar Oppenheimer, o inventor da bomba atómica, que o levou para o Instituto de Princeton.
Foi o "ponto de viragem" da sua vida. Ao mesmo tempo que publica os seus marcantes livros – Tolstoi ou Dostoievski [edição brasileira na editora Perspetiva], Linguagem e silêncio [edição portuguesa na Relógio d’Água], entre muitos, frequentemente resultado do material das suas aulas –, funda a Churchill College, na Universidade de Cambridge, é crítico literário da New Yorker e dá aulas na Universidade de Genebra. Entrevista a um grande humanista da Europa, cujo pensamento circula por todo o mundo.
A Europa vive uma crise profunda. A seu ver, o colapso é uma possibilidade?
No estado atual, é possível. Mas vamos sair desta situação de uma forma ou de outra. Irónico é a Alemanha poder voltar a dominar. É um passo atrás. Entre agosto de 1914 e maio de 1945, a Europa, de Madrid a Moscovo, de Copenhaga a Palermo, perdeu quase 80 milhões de pessoas em guerras, deportações e campos de extermínio, fome, bombardeamentos. O milagre está em que sobreviveu. Mas a sua ressurreição foi apenas parcial. A Europa está a passar por uma crise dramática; está a sacrificar uma geração, a dos seus jovens, que não acreditam no futuro. Quando eu era jovem, havia esperanças para todos os gostos: o comunismo, com certeza! O fascismo, que foi também uma esperança, não nos deixemos enganar. E, para os judeus, havia ainda o sionismo. Havia ideologias aos montes... Isso já não existe. Ora, quando a juventude não é tomada por uma esperança, mesmo que ilusória, o que resta? Nada. O grande sonho messiânico socialista conduziu aos gulags e ao socialista francês François Hollande – tomo-lhe aqui o nome como um símbolo, não estou a criticá-lo. O fascismo descambou no horror. O Estado de Israel tem imperativamente de sobreviver, mas o seu nacionalismo é uma tragédia, profundamente contrário ao génio judeu, que é cosmopolita. Pessoalmente, quero ser nómada. Vivo segundo a divisa do Baal Shem Tov, grande rabino do século XVIII: "A verdade está sempre no exílio."
A globalização não é propícia a esse nomadismo?
Nunca houve um encerramento geográfico como o de hoje. Quando se saía de Inglaterra, podia-se ir para a Austrália, a Índia, o Canadá; agora, deixou de haver autorização para trabalhar. O planeta fecha-se. Todas as noites, centenas de pessoas tentam entrar na Europa a partir do Magrebe. O planeta está em movimento, mas em que direção? Terrível, o destino atual dos refugiados. Deram-me a honra, na Alemanha, de fazer um discurso perante o governo. Terminei dizendo: "Senhoras e senhores, todas as estrelas se tornaram amarelas."
Apesar de tudo, ainda se sente europeu?
A Europa continua a ser o cenário do massacre, do incompreensível, mas também das culturas que eu amo. Devo-lhe tudo e quero ficar onde estão os meus mortos. Quero ficar no âmbito do Shoah, onde posso falar as minhas quatro línguas. É o meu grande repouso, a minha alegria, o meu prazer. Aprendi italiano depois do inglês, do francês e do alemão, as minhas três línguas de infância. A minha mãe começava uma frase num idioma e acabava noutro, sem reparar. Não tive língua materna, mas, ao contrário do que se diz, isso é bastante comum. Na Suécia, fala-se finlandês e sueco; na Malásia, falam três línguas. Essa ideia de uma língua materna é uma ideia muito nacionalista e romântica. O meu multilinguismo permitiu-me ensinar e escrever “Depois de Babel” [traduzido em português na editora Antropos], e sentir-me à vontade em qualquer lugar. Cada língua é uma janela aberta para o mundo. Terrível enraizamento, o [do apego aos valores nacionalistas] do senhor Barrès! As árvores têm raízes; eu tenho pernas, e é um enorme passo em frente, podem crer!
Literatura e filosofia ainda continuam a ser cúmplices hoje?
Ambas as formas me parecem ameaçadas. A literatura escolheu o domínio das pequenas relações pessoais. Deixou de saber abordar os grandes temas metafísicos. Já não temos nenhum Balzac, nenhum Zola. Nenhum ângulo escapava a esses génios da comédia humana. Proust também criou um mundo inesgotável, e o Ulisses de Joyce continua muito próximo de Homero... Joyce é a charneira entre os dois grandes mundos, o clássico e o do caos. Antigamente, a filosofia também se podia dizer universal. O mundo inteiro estava aberto ao pensamento de um Spinoza. Hoje, uma grande parte do universo está-nos vedada. O nosso mundo está a encolher. As ciências tornaram-se inacessíveis. Quem consegue entender as últimas aventuras da genética, da astrofísica, da biologia? Quem as explica aos leigos? Os saberes deixaram de comunicar uns com os outros; os escritores e os filósofos são hoje incapazes de nos fazer entender a ciência. No entanto, a ciência brilha no seu imaginário. Como é que se pode falar da consciência humana, deixando de lado o que tem de mais ousado, de mais imaginativo? Preocupa-me o significado de “ser letrado” hoje – "to be literate", a frase é ainda mais forte em inglês. Pode alguém ser letrado sem entender uma equação não-linear? A cultura corre o risco de se tornar paroquial. Talvez devêssemos repensar o nosso conceito de cultura. Vou-lhes contar uma experiência que me comoveu muito: um dia, um dos meus colegas da Universidade de Cambridge, galardoado do Nobel, um homem encantador com quem jantava, pediu-me para o ajudar com um texto de Lacan que ele não entendia de todo. A modéstia de um grande cientista comparada com o orgulho, a soberba, dos nossos mestres bizantinos da obscuridade...
Na sua opinião, as novas tecnologias ameaçam o "silêncio" e a "intimidade" necessários para se penetrar nas grandes obras...
Sim, a qualidade do silêncio está organicamente ligada à da linguagem. Estamos aqui sentados, nesta casa com jardim, onde não há outro som para além da nossa conversa. Aqui, consigo trabalhar, sonhar, tentar pensar. O silêncio tornou-se um enorme luxo. As pessoas vivem no meio da algazarra. Já não há noite nas cidades. Os jovens têm medo do silêncio. O que vai acontecer às leituras sérias e difíceis? Ler uma página de Platão com um walkman nos ouvidos?! Isso deixa-me muito assustado. As novas tecnologias estão a transformar o diálogo com o livro. Abreviam, simplificam, conectam. O espirito está “ligado”. Já não se lê da mesma maneira. O fenómeno Harry Potter parece ser uma exceção. Todas as crianças da Terra, esquimós, zulus, leem e releem essa saga ultrainglesa, com um vocabulário extremamente rico e sintaxe sofisticada. É ótimo. O livro é um grande defensor da privacidade. A Inglaterra ainda é um país de privacy. O que pode ter aspetos absurdos: podemos ser vizinhos durante 50 anos e não trocar uma única palavra. Este culto da "private life" tem imenso significado político: é uma fonte de resistência.
Não se considera um criativo?
Não, não há que confundir as funções. Mesmo o crítico, o comentador, o exegeta mais dotado está a anos-luz do criativo. Temos uma compreensão deficiente das fontes íntimas da criação. Por exemplo, estamos em Berna, há muitos anos... As crianças saem para um piquenique com a professora, que os coloca diante de um viaduto. Desenham-no, a professora olha por cima do ombro de um dos garotos. Que desenhou botas entre os pilares: a partir desse dia, passou a ser possível andar em todos os viadutos! Essa criança era Paul Klee. A criatividade muda tudo o que contempla. Um criativo precisa apenas de alguns traços para nos mostrar o que já lá estava. O que desencadeia o mistério da criatividade? Escrevi Gramáticas da criação [traduzido na Relógio d’Água] para compreender o processo. No final da minha vida, continuo sem o entender.
Entender seria perder a arte?
De certa forma, estou feliz por não entender. Imagine um mundo onde a neuroquímica nos explique Mozart... É concebível, e isso assusta-me. As máquinas já interagem com o cérebro: o computador e a espécie humana trabalham em conjunto. Vá que, um dia, os historiadores percebem que o acontecimento mais importante do século XX não foi a guerra, nem o colapso dos mercados financeiros, mas a noite em que Kasparov, o jogador de xadrez, perdeu o jogo contra uma pequena caixa de metal: "A máquina não calculou, pensou." Quando vi essa cena, pedi a opinião aos meus colegas em Cambridge, que são os expoentes máximos da ciência. Disseram-me que não sabiam se o pensamento não era um cálculo. É uma resposta assustadora! A pequena caixa vai um dia compor música?

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