quinta-feira, 20 de julho de 2017
Pensamento nômade...
O que eu gostaria de saber é como [Deleuze] pensa fazer a economia da desconstrução, ou seja, como ele pensa contentar-se com uma leitura nomádica de cada aforismo, a partir da empiricidade, e como que de fora, o que me parece, de um ponto de vista heideggeriano, extremamente suspeito. Eu me pergunto se o problema da “já aí” que constitui a língua, a organização estabelecida, o que você chama de “o déspota”, permite compreender a escrita de Nietzsche como uma espécie de leitura errática que ela mesma dependeria de uma escrita errática, enquanto Nietzsche aplica a si mesmo o que ele denomina uma autocrítica e que as edições atuais o revelam como um excepcional trabalhador do estilo, para o qual, conseqüentemente, cada aforismo não é um sistema fechado, mas está implícito em toda uma estrutura de remissões. Este estatuto , em seu pensamento de um fora sem desconstrução, talvez se ligue ao da energética em Lyotard. Segunda questão, que se articula ainda aqui com a primeira: numa época em que a organização estatal, capitalista, enfim, chamem-na como quiserem, lança um desafio que é finalmente aquilo que Heidegger chama da inspeção pela técnica, o senhor pensa sem rir que o nomadismo, tal como o senhor o descreve, constitui uma resposta séria? Gilles Deleuze. – Se compreendo bem, o senhor diz que há motivos para se suspeitar de mim do ponto de vista heideggeriano. Alegro-me com isto. Quanto ao método de desconstrução dos textos, vejo bem o que ele é, admiro-o muito, mas ele nada tem que ver com o meu. Não me apresento, absolutamente, como um comentador de textos. Um texto, para mim, é apenas uma pequena engrenagem numa prática extratextual. Não se trata de comentar o texto por meio de um método de desconstrução, ou de um método de prática textual, ou de outros métodos, trata-se de ver para que isto serve na prática extratextual que prolonga o texto. O senhor pergunta se acredito na resposta dos nômades. Sim, eu creio. Genghis Khan, é alguma coisa. Ele vai ressurgir do passado? Não sei, em todo caso, sob outra forma. Do mesmo modo que o déspota interioriza a máquina de guerra nômade, a sociedade capitalista não pára de interiorizar uma máquina de guerra revolucionária. Não é na periferia (pois não há mais periferia) que se formam novos nômades. Eu perguntava de quais nômades, se necessário imóveis e no mesmo lugar, nossa sociedade é capaz. [364] André Flécheux: -- Sim, mas o senhor excluiu na sua exposição o que chamava de interioridade... [364] Gilles Deleuze: -- O senhor joga com a palavra “interioridade”... André Flécheux: -- A viagem do dentro? Gilles Deleuze: -- Eu disse “viagem imóvel”. Não é uma viagem do dentro, é uma viagem sobre o corpo, se for o caso, sobre corpos coletivos. Mieke Taat: -- Gilles Deleuze, se eu o compreendi bem, o senhor opõe o riso, o humor e a ironia à má consciência. O senhor está de acordo que o riso de Kafka, de Beckett, de Nietzsche não exclui chorar por esses escritores, desde que as lágrimas não sejam as que jorram de uma fonte interior ou interiorizada, mas simplesmente de uma produção de fluxos na superfície do corpo? Gilles Deleuze: -- Certamente, tem razão. Mieke Taat: -- Ainda uma outra questão. Quando o senhor opõe o humor e a ironia à má consciência, não os distingue mais um do outro, como fazia em Lógica do sentido, onde um era de superfície e outro de profundidade. O senhor não teme que a ironia possa estar perigosamente próxima da má consciência? Gilles Deleuze: -- Eu mudei. A oposição superfície-profundidade não me preocupa mais em absoluto. O que me interessa agora são as relações entre o corpo pleno, um corpo sem órgãos, e os fluxos que fluem. Mieke Taat: -- Isto não excluiria mais o ressentimento, neste caso? Gilles Deleuze: -- Oh, sim! ... Tradução de Milton Nascimento NRT NRT [Parte da tradução brasileira originalmente publicada em Nietzsche hoje? – Colóquio de Cerisy, SP, Brasiliense, 1985, pp. 56-76].
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