“Do fundo escuro do coração solar do hemisfério sul, de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética, das entranhas imundas (e, no entanto, saneadoras) da internacionalizante indústria do entretenimento, da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América, do centro do nevoeiro da língua portuguesa, saem estas palavras que, embora se saibam de fato despretensiosas, são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre os grupos humanos, os indivíduos e as formas artísticas, e também das transações comerciais e das forças políticas, em suma, sobre o gosto da vida neste final de século.” (Caetano Veloso, em e sobre “Verdade Tropical”).
(...)
Pan e latina América:
o delírio épico de José Agrippino de Paula
Carlos Henrique Bento*
1 A estética pop
A estética pop, presença evidente na obra, forneceu a Agrippino não apenas temática,
mas também alguns procedimentos freqüentes em seu texto. Trata-se de um movimento artístico
que se desenvolveu nos anos cinqüenta e sessenta, principalmente na Inglaterra e nos Estados
Unidos.. Seus seguidores se propunham a fazer arte utilizando temas e objetos presentes
na vida cotidiana, em sua maioria veiculados pelos meios de comunicação de massa, chamados
de mass-media. Era a tentativa de se fazer arte a partir dos produtos de uma cultura centrada
no consumo. Com essa atitude, buscavam questionar as noções tradicionais de arte, ligando-se,
neste ponto, aos movimentos das vanguardas modernistas do final do século XlX e início do
século XX. Seu trabalho pode ser compreendido como uma denúncia do monopólio dos objetos
de consumo como mercadoria artística. Valeram-se de técnicas como a colagem e a reprodução
em série. As obras tematizaram o mundo à sua volta, refletindo a sociedade industrial,
reproduzindo imagens do corpo humano, estrelas de cinema e da música, objetos do dia-a-dia,
textos e ilustrações publicitários, quadrinhos, automóveis. Usavam cores fortes, criando imagens
de grande impacto visual. É o caso de Andy Warhol, considerado o principal artista pop,
que reproduziu em série fotos de Marilyn Monroe, notas de dólar, garrafas de Coca-cola, fotos
de presidiários. Reproduziu manchetes de jornal. Criou rótulos para as latas de sopa Campbel.
Outro artista pop muito conhecido foi Roy Lichtenstein, famoso por seus trabalhos em que
tematizou fragmentos de histórias em quadrinhos.
Um dos fatores fundamentais ao pop é a relação de reconhecimento que se estabelece
entre o espectador e a obra. Afinal, esta representa imagens que são, em alguma medida, pertencentes
ao dia-a-dia do espectador, ainda que apenas como objetos de desejo. A arte pop pode
ser vista como o despertar de uma consciência a respeito do domínio da ideologia capitalista,
que não apenas transforma tudo em mercadoria de consumo, como faz com que qualquer coisa
que resista a tal lógica não possa sobreviver. Afinal, se, após as vanguardas artísticas e os experimentalismos
de tantos artistas do início do século XX, chegou-se à conclusão de que a arte
também é produto de consumo, não parece absurdo reverter a lógica e considerar determinados
objetos de consumo, eleitos arbitrariamente como ícones de desejo ou fetiches universais,
como obras de arte.
O texto de Panamérica utiliza vários procedimentos comuns à pop art, como as colagens
e a repetição. Incorporou ao texto personalidades próprias dos mass-media, disseminadas pelo
livro com insistência, como Marilyn Monroe e Marlon Brando – que também foi pintado por
Warhol. Dessa maneira, Agrippino aderiu, em seu livro, a certos ícones fetichizados pelos capitães
do movimento pop. O livro tem um capítulo dedicado ao ato do narrador entrar em uma
agência e comprar um automóvel Jaguar, saindo com ele pela cidade. Ao final da descrição, o
automóvel adquire asas e sobrevoa o mar. Com isso, Agrippino reconhece um dos ícones da
cultura pop, o automóvel, que, dentro da lógica capitalista, é valorizado pela marca glamourosa.
Sua aquisição representa mais do que a compra de um objeto de consumo. Trata-se da aquisição
de um imaginário, construído pelo marketing consumista, de que um automóvel caro,
luxuoso e veloz seria capaz de conferir plena liberdade a quem o possuísse. Dentro da lógica
da sociedade de consumo, não há limites para aqueles que detêm o poder de consumir. Se a
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estrada terminou no mar, que sejam dadas asas ao Jaguar, para que a liberdade do consumidor
não sofra qualquer perda. As descrições, em Panamérica, são ricas em detalhes, criando uma
linguagem altamente imagética, como se o leitor pudesse ter à disposição uma tela de cinema
imaginária, onde as imagens descritas pudessem ser imediatamente projetadas.
A utilização de temas e procedimentos da arte pop por Agrippino permite tratar seu
texto como representante de uma literatura pop no Brasil, que teria entre seus representantes
o escritor mineiro Roberto Drummond, em sua fase inicial. Exemplar desta possibilidade é o
livro Sangue de Coca-cola, que apresenta semelhanças com Panamérica. O livro é formado por
vários fragmentos que vão se complementando com o desenvolver da narrativa. Como Panamérica,
estão disseminados pelo texto ícones como Marilyn Monroe, Marlon Brando, e outros,
principalmente a Coca-cola, que dá título ao livro e é tratada como uma deusa, presença que
impregna a sociedade a ponto de substituir o sangue. A Coca-cola, no livro de Drummond, é
considerada a responsável pela passividade do brasileiro.
A possibilidade de reconhecimento entre espectador e obra funciona como um contrato
na arte pop, mas é quebrado ironicamente no texto de Agrippino. Panamérica traz o subtítulo
de epopéia, mas difere bastante de uma epopéia tradicional. É, na verdade, uma espécie de antiepopéia
ou, no mínimo, um épico às avessas. O título do livro remete ao plano norte-americano
de união das Américas. Retoricamente, a América deveria pertencer aos americanos. Na
prática, a intenção é de que as Américas pertencessem aos norte-americanos, representados
pelos Estados Unidos, que se valem deste artifício discursivo para mostrar força na batalha
de imaginários da Guerra Fria. A intenção de uma pan-américa revela-se uma tentativa de
submissão dos países latino-americanos aos interesses dos Estados Unidos. É o imperialismo
americano tentando dominar o mundo, penetrando nos países subdesenvolvidos por meio do
cinema, dos quadrinhos, da cultura de massas, e até mesmo por meio da imposição de regimes
ditatoriais. Este é o principal tema que povoa o imaginário dos estudantes e dos intelectuais na
época. Um momento em que para ser considerado bom era preciso ser de esquerda. E ser de
esquerda significava adotar a lógica do combate marxista ao império do norte.
Abstract
This text reads the book Panamérica, by José Agrippino de Paula, as an allegory of the thought about
Latin America in the sixties. For that purpose, it articulates the ideas present in pop art, guerrilla
and performance.
Keywords: Panamérica. José Agrippino de Paula. Pop Art. Guerrilla. Performance.
Ipotesi, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 145 - 153, jan./jul. 2008
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Notas explicativas
1 Folha de São Paulo, 11/05/01.
2 Ver seu ensaio no livro organizado por Graciela Ravetti e Márcia Arbex.
Referências
CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
COLOMBO, Sílvia. PanAméricas de Áfricas utópicas. Folha de São Paulo (Folha Ilustrada), São
Paulo, 11/05/01.
PAULA, José Agrippino de. Panamérica. São Paulo: Papagaio, 2001.
_____. The United Nations. Rio de Janeiro: s.d.c., 1968. (mimeog.)
_____. Lugar Público. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
DRUMMOND, Roberto. Sangue de Coca-cola. São Paulo: Ática, 1982.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: C
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