quinta-feira, 20 de julho de 2017

Cena maquínica

No seu projeto do Livro, Mallarmé introduz a figura de um mestre de cerimônias - espécie de antiator - que não sendo um mero recitador de poesia, nem tampouco atuando nos moldes representacionais de um ator comum, é por ele designado “operador”. Como nos lembra Puchner (2002), tal terminologia, sugerindo algo como a operação de uma máquina, satisfazia Mallarmé à medida que permitia uma abordagem do processo de criação por um viés rigorosamente impessoal, rompendo de vez com a ideia de uma criação subjetiva. E esse aspecto mecanicista acabava sendo ainda mais reforçado pelos cálculos matemáticos obsessivos que perpassam todo o projeto (pois além das notas detalhando, de forma precisa, aspectos da composição final do Livro e da coreografia de sua leitura, há, ainda, um grande número de gráficos esquemáticos que dizem respeito ao gênero do Livro nos termos de sua forma textual e teatral; número de convidados, bancadas, assentos, folhas, sessões etc). Para Mallarmé, interessavam acima de tudo nesse tipo de automatização do processo de criação , as diferentes permutações passíveis de operação por meio dos vários arranjos de folhas soltas (devidamente numeradas); assim como as possibilidades de sentido derivadas dessa ars combinatoria.

Por outro lado, esse automatismo, de acordo com indicações contidas no próprio Livro, deveria reter, sempre, um certo grau de “mistério”- termo que, aliás, costumava ser empregado por Mallarmé em suas referências aos efeitos mobilizados por sua estética simbolista de forma geral. De acordo com Puchner, no caso do Livro isso se reflete pelo caráter cerimonial de sua leitura performática, esse “meio-termo” que parece desempenhar a mediação entre o teatro e o livro. Sobre esse último aspecto, porém, Blanchot (1984) sustenta que, embora seja possível aproximar a leitura do Livro de um tipo de cerimonial sagrado - com traços de prestidigitação, teatro e liturgia católica -, não se pode desconsiderar o fato de que o operador, não sendo um leitor vulgar, também não era um autor ou um intérprete privilegiado capaz de tecer comentários sobre o texto, no sentido de fazê-lo passar de um sentido a outro ou de mantê-lo em movimento entre todos os sentidos possíveis. O operador, nesse caso, não seria propriamente um leitor. Ele seria, de fato, a leitura. Por esse viés, a operação, enquanto leitura, é “a obra que se realiza suprimindo-se, que se prova confrontando-se consigo própria e se suspende ao mesmo tempo que afirma” (BLANCHOT, 1984, p. 254).
De modo que, para Blanchot a palavra “operação”, ao conservar não só o sentido que lhe advém da palavra “obra”, como também adquirindo a acepção quase cirúrgica que lhe confere o seu caráter técnico, passa a ter valor correspondente ao de “supressão”. Subtrai-se o tempo da narrativa, à medida que se opta por mostrar, em vez de contar[3]. Elimina-se o conceito, uma vez que se opera apenas na esfera onde a arte é pura linguagem. Por fim, suprime-se o direito de autor, de modo a impedir que até mesmo o operador (leitor) saiba de antemão “o que é o livro, nem se ele é, nem se o devir a que o livro responde ao mesmo tempo que o constitui com a sua supressão infinita tem desde já um sentido para nós ou terá alguma vez um sentido” (Ibidem, p. 254).
Considerando-se alguns dos aspectos que perpassam a ideia da operação (e do operador) no projeto do Livro de Mallarmé - dentre os quais, a supressão do autor e/ou do intérprete privilegiado, assim como a substituição da expressão de ideias ou emoções pelo automatismo -, pode-se perceber porque tanto Badiou, nas conjecturas que faz a respeito de uma possível cena do porvir[4], quanto Deleuze, ao se referir à mecânica da subtração mobilizada pelo teatro de Carmelo Bene, fazem uso da mesma[5]Operação e operador, nesse sentido, parecem ser termos adequados para se nomear um teatro (e cada um daqueles que o agenciam) livre das amarras da representação, da encenação, da interpretação, do sentido e da autoria.

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