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3. Por uma pragmática do imaginário radical
Conquanto Castoriadis não possa ser dito um fenomenólogo, julgamos apropriado apelidar ante-estrutural sua tentativa de elucidação, por analogia com a categoria (fenomenológica) do ante-predicativo. Esta última constitui recurso para trazer à luz o que é filosoficamente anterior à possibilidade de predicar algo do ser, ou mesmo de posicioná-lo. Castoriadis, por seu lado, empenha-se em elaborar a idéia daquilo que é condição historicamente anterior a qualquer discurso (ou ação transformadora) sobre o sócio-histórico. Ao resultado obtido, chama imaginário radical.
O termo imaginário leva imediatamente a pensar em Psicanálise, especialmente lacaniana. Não estaremos inteiramente errados nesta referência, desde que não assimilemos o projeto a qualquer espécie de freudo-marxismo. Castoriadis não visa a articulações e/ou conciliações entre Marx e Freud. Lança mão de alguns conceitos psicanalíticos, em especial o de imaginário, desviando-o de seu sentido canônico e libertando-o, inclusive, das conotações especulares/alienantes adquiridas na pena de Lacan.18 Talvez a maneira mais sugestiva para entender o modo como se vinculam vertente ante-estrutural e Psicanálise seja apelar a uma citação algo mais tardia, originalmente datada de 1981:
... quase sempre, os filósofos começam dizendo: "Quero saber o que é o ser, o que é a realidade. Ora, eis aqui uma mesa; que é que essa mesa me exibe como traços característicos de um ser real?" Jamais qualquer filósofo começou dizendo: "Quero saber o que é o ser, o que é a realidade. Ora, eis aqui minha lembrança de meu sonho da noite passada; que é que ela me exibe como traços característicos de um ser real? (...) Por que não poderíamos começar postulando um sonho, um poema, uma sinfonia, como instâncias paradigmáticas da plenitude do ser, e considerar o mundo físico como um modo deficiente do ser (...)?" (Castoriadis, 1987b, p.227-8).
Quiçá nenhum filósofo tivesse começado sua reflexão sobre o ser apelando ao paradigma do imaginário antes que Castoriadis se engajasse em tal empreitada, com a radicalidade dele característica. É nesta linha que a Psicanálise lhe pode oferecer algo: uma doutrina que pensa a subjetividade mais a partir do sonho que da mesa.
Neste sentido, o projeto castoriadiano difere bastante de qualquer freudo-marxismo. Não está confinado entre uma teoria da história e uma teoria do psíquico, tampouco obrigado a construir pontes entre conceitos de âmbitos previamente dados, às custas de reducionismos e/ou distorções. Navegando na companhia de certoFreud - sonhador do fantasma e do imaginário - e na deriva quanto a certo Marx - o sistemático, pensador contra-revolucionário -, inventa modos de ser para o psíquico e o sócio-histórico julgados capazes de tomar parte em um projeto político autonomista.
No prefácio de A Instituição Imaginária da Sociedade, ocupa-se em distinguir seu próprio trabalho de eventuais construções de teoria, no sentido herdado do termo. Ao invés de teoria, elucidação: não imagem de algo, mas procura da lucidez indispensável a um projeto político; não um saber sobre a verdade do ser, prévio e exterior à sociedade e à história, mas parte da sociedade e da história. Como estas, a elucidação constitui poiesis.
O que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o que pensam (...) A divisão aristotélica theoria, praxis, poiésis é derivada e secundária. A história é essencialmente poiesis e não poesia imitativa, mas criação e gênese ontológica no e pelo fazer e o representar/dizer dos homens. Este fazer e este representar/dizer se instituem também historicamente, a partir de um momento, como fazer pensante e pensamento se fazendo. (Castoriadis, 1986, p.14, grifos nossos).
Sendo a história inevitavelmente criação, como poderia não o ser o discurso relativo à história? O que encobre esta indispensável lucidez é a ilusão da theoria, ou seja, de que haja algum Logos - chamemo-lo Mundo das Idéias, Deus, Razão, Espírito Absoluto, Homem19, Leis da História ou Ponto da Vista do Proletariado - a falar pela boca do pensador. Nesta linha argumentativa, o imaginário radical, embora aparentado ao paradigma psicanalítico, nada tem a ver com o "especular", o qual carrega as conotações de "imagem de" ou "reflexo" - subproduto da ideologia platônica, ainda que os que o utilizam costumem ignorá-lo.
O próprio "espelho" e sua possibilidade e o outro como espelho são antes obras do imaginário, que é criação ex nihilo. Aqueles que falam do "imaginário" compreendendo por isso o especular, o reflexo ou o "fictício", apenas repetem (...) a afirmação que os prendeu para sempre a um subsolo qualquer da famosa caverna: é necessário que (este mundo) seja imagem de alguma coisa. O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de "alguma coisa." (Castoriadis, 1986, p.13, grifos nossos).
É bem conhecida a recomendação positivista-durkheimiana de tratar os fatos (sociais, ou outros) como coisas. Igualmente a estruturalista de tratá-los como palavras, a fenomenológica de abordá-los como aparecimentos à consciência, a hegeliana (e quiçá marxista) de concebê-los como momentos da astúcia da Razão. A máxima castoriadiana pode ser dita tratar as coisas - o que quer que se apresente, em qualquer âmbito, na qualidade de ente - como contingência sócio-histórica20 ou instituição, no sentido ativo deste termo (ato de instituir ao qual estão condicionados seus produtos).
Os processos de elucidação, contudo, não são tão simples quanto poderiam fazer crer algumas máximas de efeito retórico. Afirmar que tudo é sócio-historicamente instituído não basta para combater o pensamento herdado (racionalista, objetivista, voz do logos). Este conta com categorias fortemente estabelecidas para pensar a temporalidade, de maneira a imobilizá-la como um já-dado: a causalidade, a finalidade, a sucessão logicamente esperada. Devemos ter em mente, porém, que o pensamento herdado é ele mesmo uma instituição, cuja lógica é a da determinação e a ontologia, a do ser como determinado.
Há vinte e cinco séculos, o pensamento greco-ocidental se constitui, se elabora, se amplia e se aprimora sobre esta tese: ser é ser algo de determinado (einai ti), dizer é dizer algo de determinado (ti Legein); e, obviamente, dizer verdadeiramente é determinar o dizer e o que se diz pelas determinações do ser ou então determinar o ser pelas determinações do dizer e, finalmente, constatar que umas e outras são a mesma coisa. (Castoriadis, 1986, p.259).
De acordo com Castoriadis, a instituição, pelo Ocidente, do pensamento como Razão corresponde ao domínio e à autonomização do Legein, cujas operações são distinguir/escolher/estabelecer/juntar/contar/dizer objetos já postos, independentemente da natureza dos mesmos. As categorias ou esquemas operativos do Legein (dizer/representar) são inseparáveis das de um fazer (teukhein), igualmente determinado enquanto juntar/ajustar/fa-bricar/construir objetos também já postos, uma vez mais a despeito da natureza dos mesmos. A estes modos instituídos, simultaneamente, de dizer/representar e de fazer/atuar, Castoriadis chama lógica conjuntista-identitária.
Como qualquer instituição, esta lógica é arbitrária. Não está fundada em eventuais razões, sendo instituinte do que se compreende como razão. A lógica conjuntista-identitária, todavia, corresponde às exigências de uma das dimensões de todo dizer e todo fazer - a dimensão simbólica -, sem a qual o imaginário radical ficaria limitado ao plano da virtualidade.
Sendo assim, falar em "autonomização" do conjuntista-identitário é, de certo modo, um abuso de linguagem.21
Não temos (...) que "explicar" como e porque o imaginário, as significações sociais imaginárias e as instituições22 que as encarnam, se autonomizam (...) A bem dizer, a própria expressão "se autonomizar" é visivelmente inadequada a esse respeito: não estamos lidando com um elemento que, primeiro subordinado, "se desliga" e torna-se autônomo num segundo tempo (real ou lógico), mas com o elemento que constitui a história como tal. (Castoriadis, 1986, p.192-3).
O problema, portanto, não reside na autonomização do simbólico - em suas dimensões de legein e teukhein - mas, sim, em que este se auto-erija como "o racional" na história e da história. A nosso ver, neste duplo caráter - arbitrário e necessário - do conjuntista-identitário situa-se a principal encruzilhada do pensamento de Castoriadis, cujos problemas retomaremos ao final deste trabalho.
No momento, devemos conduzir a elucidação às últimas conseqüências, ou melhor, ao entendimento do vínculo entre o imaginário radical (ou sociedade instituinte) e o social-histórico.
O social-histórico é o coletivo anônimo, o humano-impessoal que preenche toda formação social dada, mas também a engloba, que insere cada sociedade entre as outras e as inscreve todas numa continuidade, onde de certa maneira estão presentes os que não existem mais, os que estão alhures e mesmo os que estão por nascer. É por um lado, estruturas dadas, instituições e obras "materializadas", sejam elas materiais ou não; e por outro, o que estrutura, institui, materializa. Em uma palavra, é a união e a tensão da sociedade instituinte e da sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo. (Castoriadis, 1986, p.131, grifos nossos).
Recordemos que a história é fundamentalmente poiesis, o que implica em um privilégio, quanto ao projeto revolucionário, da "história se fazendo" - dimensão instituinte ou do imaginário radical. Nesta perspectiva, o social-histórico se auto-institui não como ordem - identitária ou dialética -, nem como caos, mas na qualidade do que Castoriadis denomina magma de significações. O magma é uma diversidade em princípio irredutível à lógica conjuntista-identitária. Sendo impossível dizer/representar o modo de ser daquilo que se dá como condição da lógica conjuntista-identitária sem apelar, de algum modo, para esta própria lógica, o máximo que se pode ousar formular a respeito do magma é que deste se pode extrair um número indefinido de organizações de tipo conjuntista-identitário, embora jamais o possamos reconstituir por uma composição conjuntista destas organizações.
Passemos a dois exemplos elucidativos. O primeiro nos facultará uma aproximação ao plano da imaginação radical - modo de ser do imaginário radical (e do magma) no âmbito da psiquê/soma. Discutindo o inconsciente psicanalítico, Castoriadis recorda que este ignora o tempo (identitário) e a contradição (terceiro excluído), afastando, por esta via, a possibilidade de ser concebido como lugar (espaço homogêneo e linear). Mesmo a representação - material essencial do inconsciente -, quando tomada em separado, constitui uma violentação à lógica do processo primário (lógica dos magmas, bem mais que dos conjuntos). Se efetuarmos alguma separação no fluxo indissociavelmente representativo/afetivo/inten-cional do inconsciente, ali distinguindo representações particularizadas, será totalmente inadequado dizer a respeito de um sonho, por exemplo, que uma representação simboliza uma outra ou mesmo um conjunto de outras. Tal tipo de formulação é a do legein da vigília (processo secundário), radicalmente distinto do funcionamento efetivo da imaginação radical. Fora deste legein, no entanto, nada poderíamos dizer do sonho, sendo apenas possível sonhá-lo. Parodiando Castoriadis, ousamos afirmar ser este o paradoxo da união/tensão entre o sonho feito (relato do sonho) e o sonho se fazendo (sonho sonhado, sonhando ou sonhante).
O problema desaparece (ou reaparece, aparentemente solucionado) quando assimilamos o deslocamento e a condensação freudianos às operações lingüísticas da metonímia e da metáfora. Segundo Castoriadis, esta assimilação de processos ainda concebíveis, em sua indeterminação, como magmáticos, aos modos de funcionamento secundários da vigília minimiza drasticamente a descoberta de Freud. Melhor seria, talvez, dizer o inverso, ou seja, que metáfora, metonímia e outras figuras de linguagem "tomam alguma coisa das operações do inconsciente, sem poder reconstituir sua abundância e riqueza." (Castoriadis, 1986, p.317-8). Este exemplo esclarece bastante bem a razão pela qual o filósofo denuncia como "assassinato estruturalista." (Castoriadis, 1986, p.266) do objeto as tentativas de recorrer à lógica conjuntista-identitária do legein para dar conta da psiquê-soma (e da sociedade).
Argumento análogo ao manejado na abordagem do sonho é retomado na discussão do fantasma, do desejo e do sujeito do inconsciente. Em uma visão magmática, o sujeito não está na cena imaginária do fantasma, ele é esta própria cena; o desejo não é irrealizável, mas se apresenta como sempre realizado. Logo, nada falta ao sujeito do inconsciente, a não ser que o encaremos com base no legein e teukhein identitários erigidos em Razão. É de supor, segundo Castoriadis, que por trás das afirmações relativas à "falta a ser" seja pressuposto (e naturalizado como destino inelutável) "o cidadão que passeia pela rua - que está cheio de desejos irrealizáveis, e até de necessidades insatisfeitas, estas e aquelas respeitáveis, importantes, decisivas." (Castoriadis, 1986, p.339).
Não é difícil perceber o principal adversário destas considerações: Jacques Lacan ou, mais especificamente, olacanismo logicista em expansão. Se pensarmos, com Castoriadis, que a alienação no discurso do outro não é estado primeiro; que a psique é magma e imaginação radical; que ela é, mesmo, "estado monádico" - o que não constitui o "indivíduo natural" do legein e teukhein, mas indistinção entre sujeito, mundo, afeto, intenção, ligação, sentido -, poderemos, invertendo a máxima freudiana, dizer que "onde é o Ego, o Id deverá surgir."23 O paradigma é o do sonho, ou, inclusive, o da loucura:
O homem não é um animal racional, como diz o velho lugar comum. Ele também não é um animal doente. O homem é um animal louco (que começa sendo louco) e que, também por isso, torna-se ou pode tornar-se racional. (Castoriadis, 1986, p.342).
Passemos ao segundo exemplo da (louca) lógica magmática, agora referida ao social-histórico. Para tanto, acompanhemos Castoriadis na retomada da questão das classes sociais. Para o filósofo, a explicação marxista do problema das classes se reduz a dois únicos esquemas. No primeiro deles, um estado de penúria absoluta24 é colocado na origem, não existindo então qualquer "excesso" a ser apropriado. O surgimento das classes derivaria do surgimento de algum excedente que, em lugar de ser incorporado a um bem-estar crescente do conjunto, passa a ser usado para sustentar a classe exploradora nascente. O fim da evolução histórica - sociedade sem classes - é percebido como estado de absoluta abundância, em que a exploração não mais tem razão de ser, podendo cada um satisfazer inteiramente suas necessidades. O segundo esquema marxista liga cada forma específica de divisão da sociedade em classes a uma etapa determinada do desenvolvimento tecnológico. Esta concepção é sintetizada pela conhecida frase de Marx: "Ao moinho movido a braço corresponde a sociedade feudal, ao moinho a vapor a sociedade capitalista." (Apud Castoriadis, 1986, p.183).
Segundo a avaliação castoriadiana, ambos os enfoques estão submetidos ao imaginário capitalista. No caso da emergência das classes pela produção do excedente, a explicação marxista é suficiente, mas não necessária. Existe, subjacente à mesma, o pressuposto de uma "imagem de homens que aguardam o momento em que o crescimento da produção atingirá a cota 'permitindo' a exploração para se lançarem uns contra os outros." (Castoriadis, 1986, p.183). Se nos voltarmos para a teoria do desenvolvimento tecnológico, embora não possamos negar o vínculo entre este e o tipo de divisão social, veremos que tampouco é possível basear a última no primeiro: técnicas bastantes semelhantes correspondem, na história, a formas de organização social enormemente distintas, e apenas a autonomização das forças produtivas - característica do capitalismo, não de toda a história - pode fazer compreender sociocentrismo explicativo tão exacerbado.
Como se vê, os dois esquemas lançam na origem das classes, ou no fundamento das mesmas, uma lógica - economicista - cujo aparecimento, ele mesmo, demandaria elucidação histórica. O nascimento da burguesia como classe - nascimento, por sinal, ex nihilo - só é de uma classe porque se dá em uma sociedade já dividida em classes. Saberemos algum dia como a sociedade de classes - e não o imaginário capitalista a respeito - surgiu? Castoriadis pensa que dificilmente poderemos compreender tal circunstância.
O termo compreender deve ser posto em destaque. Ele implica reunir-dispor-ordenar, entre uma origem e um telos, uma seqüência lógica necessária e suficiente. Em lançar mão, portanto, de uma criação histórica - lógica dolegein e teukhein instituídos - para dar conta da gênese e finalidade da história. Como podemos constituirracionalmente uma significação "classe social" - sempre encarnada materialmente no que chamamos "coisas", "sujeitos" e "conceitos" - que é constituinte de nosso dizer/representar enquanto membros de sociedades históricas? Para Castoriadis, definitivamente, não podemos fazê-lo. Isto, no entanto, não nos deixa desarmados. Ao contrário, já que a "lógica louca" da poiesis ou instituição dos magmas de significação responde adequadamente ao projeto político do presente.
... para os homens que vivem hoje, a questão não é compreender como se faz a passagem do clã neolítico às cidades já grandemente divididas de Akkad. É compreender - e evidentemente isso significa, aqui mais do que em qualquer outro lugar: agir - a contingência, a pobreza, a insignificância deste "significante" das sociedades históricas que é a divisão em senhores e escravos, em dominantes e dominados. (Castoriadis, 1986, p.186-7).
Pensar o magmático, a poiésis, a contingência, o imaginário radical como fundamento-sem-fundamento do social-histórico (e da psiquê/soma) é engajar-se num projeto político no qual, se alguma palavra de ordem existe, é como palavra de desordem. Pois "toda elucidação que empreendemos é finalmente interessada, é para nós em sentido efetivo, porque não existimos para dizer o que é, mas para fazer o que não é." (Castoriadis, 1986, p.197).
A Instituição Imaginária da Sociedade se encerra com uma afirmação bastante semelhante. Ali, Castoriadis reafirma não possuir sua elucidação outro fundamento que o de um projeto compartilhado por outros - um certo nós - , no presente. Este não deriva de justificativas tomadas de empréstimo a eventuais teorias (marxismo e psicanálise, por exemplo). O que busca nas mesmas são apenas alguns elementos do dizer/representar e do fazer que escapem, ainda que provisoriamente, à heteronomia instituída do social-histórico e do psíquico, contribuindo, assim, para "fazer o que não é" - a autonomia instituinte. Na conclusão do livro, um bárbaro diz/representa, como momento do processo revolucionário, o que bem raramente se faz:
... a auto-alienação ou heteronomia da sociedade não é "simples representação" ou incapacidade da sociedade de se representar de outra maneira que não como instituída a partir de um alhures (...) Assim como o ultrapassá-la - que nós visamos porque o desejamos e sabemos que outros homens o desejam, não porque tais são as leis da história, os interesses do proletariado ou o destino do ser -, a instauração de uma história onde a sociedade não somente se sabe, mas se faz como auto-instituinte explicitamente, implica uma destruição radical da instituição conhecida da sociedade até seus recônditos mais insuspeitados, que só pode ser como posição/criação não somente de novas instituições, mas de um novo modo de instituir-se e de uma nova relação da sociedade dos homens com a instituição. (Castoriadis, 1986, p. 417-8).
Chama a atenção o número de vezes em que aparece, neste fragmento, o termo instituição. Em sociologia ou história, ele habitualmente surge quer numa abordagem econômico-funcional - instituições como criações sociais derivadas de necessidades ditas naturais -, quer numa abordagem lógico-estrutural - instituições como redes simbólicas sempre-já-dadas a partir das quais, somente, todas as coisas (necessidades, sujeitos, desejos) são. O primeiro enfoque se baseia em uma pretensa natureza - humana, econômica ou ontológica - do social. O segundo, em uma autonomia do simbólico frente a toda natureza, monarquia do código25 que acaba por redundar em novos universalismos naturalizantes (mais "formalistas" ou mais "realistas", de resto).26
Quando Castoriadis fala em instituição, coisa distinta está conotada: não há fundamento funcional ou lógico; não há ser - sujeito individual ou da história, sistema, sistema de sistemas, natureza, homem - que atue como referência última. O ser é sem fundo e só existe como temporalidade/história, isto é, como auto-instituição. Esta nunca é totalmente transparente: em princípio, é invisível e inconsciente - obra do "coletivo anônimo."27 Mas é, também, parcialmente visível na instituição (no sentido comum ou secundário do termo), já que apenas nela e por ela se apresenta. A instituição, neste sentido secundário, é a sociedade instituída, que sempre pressupõe a instituição no sentido radical do termo - auto-instituição, sociedade instituinte ou imaginário radical.
Denominamos imaginário social no sentido primário do termo, ou sociedade instituinte, o que no social-histórico é posição, criação, fazer ser (...) O imaginário social ou a sociedade instituinte é na e pela posição de significações imaginárias sociais e da instituição; da instituição como "presentificação" destas significações e destas significações como instituídas. (Castoriadis, 1986, p.416).
Aqui, portanto, a sociedade é sempre auto-instituição - no sentido primário -, mediante uma quantidade deinstituições - no sentido secundário ou comum. Uma não pode existir sem a outra: "A empresa é uma instituição secundária do capitalismo - sem a qual não há capitalismo." (Castoriadis, 1986, p.416). Sabe-se bem mais daempresa que do capitalismo, bem mais do instituído que do instituinte. Neste sentido, à auto-instituição corresponde uma auto-alienação ou heteronomia da sociedade: esta última se oculta a si própria, encobre para si mesma sua temporalidade essencial, não se sabe como criação. Mas Castoriadis não pensa que este "ser assim" corresponda a um "dever ser assim" ou "só poder ser assim". Deseja ultrapassar esta heteronomia auto-instituída - portanto, contingente - mediante o fazer e o dizer elucidativos. Nas palavras de Morin (1989, p.15), a concepção sociobárbara da auto-gestão alimenta e é alimentada por um paradigma que nos incita "a separar e ligar, ao mesmo tempo, o conjúntico28 (conjuntista-identitário) e o magmático, a pensar juntos, de maneira complementar e antagonista (...) o determinado/limitado (o peras grego) e o aberto/indeterminado (o apeiron)." (Morin, 1989, p.15).
4. Novas encruzilhadas para um pensamento-labirinto
Finalizando nosso percurso, algumas derivas a partir de A instituição imaginária da sociedade. Se relacionarmos o pensamento de Castoriadis com os marxismos economicista e estruturalista, vê-lo-emos diagnosticá-los enquanto belos representantes oficiais da heteronomia instituída no plano do pensamento e da ação. Alternativo a estes pensamentos e práticas da vontade de verdade como determinação, Castoriadis quer, a partir de um fazer político raro - a auto-gestão -, ficcionar/inventar um saber da história que incorpore o indeterminado, contingente oupoiético. Deste novo saber, reciprocamente, quer fazer momento de uma ficção política, de uma invenção do que não é.
Percebe tanto antagonismo como nexo entre o apeiron e o peras, o indeterminado e o determinado, a criação e a alienação. Toda a elucidação consiste em um esforço para esclarecer a tensão e a complementaridade entre instituinte e instituído, imaginário auto-instituinte e heteronomia (auto!)-instituída. Por esta razão, Châtelet e Pisier-Kouchner (1983, p.651-2) pensam existir, em seu pensamento, um problema mal esclarecido: o do estatuto da sociedade instituída. Para estes autores, Castoriadis atribuiria unicamente ao legein/teukheinidentitário a auto-alteração que, procedendo por meio da causalidade e da finalidade, conduz à auto-alienação e à heteronomia. Reintroduziria, em decorrência, como que pela porta dos fundos, uma inércia da história, repetição necessária ou resultado previsto - o instituído -, reativando uma ontologia do ser como determinado. Na plano político, por sua vez, o conflito acabaria por situar-se entre uma "sociedade do pensamento herdado" e uma "sociedade inventiva". Desconsiderar-se-ia, neste percurso reflexivo, a multiplicidade de ações políticas em vigor, a cada momento, em benefício de uma noção demasiado sociológica, e ineficientemente política, de social-histórico.
Quanto à primeira objeção, discordamos em parte dos autores. Em diversos momentos de A instituição imaginária da sociedade, algo mais do que o legein/teukhein identitário é citado como fator responsável pela heteronomia/alienação. Vejamos dois exemplos.
A alienação surge pois como grandemente instituída, pelo menos como grandemente condicionada pelas instituições (a palavra tomada aqui no sentido mais amplo, compreendendo, sobretudo, a estrutura das relações reais de produção). (Castoriadis, 1986, p.132, grifos nossos).
Ela [a auto-alienação ou heteronomia da sociedade] é encarnada, fortemente e pesadamente materializada na instituição concreta da sociedade, incorporada na divisão conflitual, levada e mediatizada por toda a sua organização, interminavelmente reproduzida no e pelo funcionamentosocial, o ser-assim dos objetos, das atividades, dos indivíduos sociais. (Castoriadis, 1986, p.417-8, grifos nossos).
Châtelet e Pisier-Kouchner declaram que a heteronomia não pode ser considerada um resultado pré-estabelecido, dado que decorre de práticas específicas e especificáveis - "redes de máquinas sociais e de montagens discursivas que implicam, em nossos estados, o uso dominante da lógica da identificação." (Châtelet & Pisier-Kouchner, 1983, p.652). A nosso ver, não se pode dizer que Castoriadis omita esta rede de práticas e discursos. Nos exemplos acima, ela aparece como que condensada sob o termo instituição (no sentido secundário do termo). Em outros momentos, seu texto atinge maior detalhamento, citando '"mecanismos de mercado'", '"racionalidade do Plano"', "lei de alguns apresentada como lei de todos", "uma ordem de mobilização", "uma folha de pagamento", "uma decisão de tribunal", "uma prisão" (Castoriadis, 1986, p.131) enquanto "materializações" da alienação. Não nos parece, portanto, que peque por ausência: não obstante a múltipla e heterogênea rede de práticas e discursos seja mais exemplificada do que conceituada, não deixa de ser referida.
A pertinência da crítica de Châtelet e Pisier-Kouchner situa-se a outro nível, que consideramos importante especificar. É claro que se pode definir as instituições - tanto no sentido primário como no secundário - como portando, necessariamente, lutas de forças e derivando, inclusive, do processo de hegemonização de algumas dentre elas, fixadas em formas de ser social. Não é indiferente, no entanto, partir das forças - múltiplas e destotalizadas - ou das formas - sempre prenhes do risco de levar a supor um social dotado do estatuto geral de totalidade (mesmo que conflitual).
É nesta diferença, por sinal, que se joga grande parte do caráter problemático do conceito de instituição. Quando totalizado a priori, costuma ser apreendido como mediador para a reprodução de uma totalidade outra29 - o "capitalismo", por exemplo -, em lugar de pensado como multiplicidade de práticas das quais resulta (ou mediante as quais se institui) uma forma sócio-histórica. Este é o risco que corre a elucidação castoriadiana, mesmo considerando que ela não deixa de exemplificar os dizeres, fazeres e subjetivações que constroem a lógica identitária.
As dificuldades se tornam mais claras quando passamos à segunda crítica de Châtelet e Pisier-Kouchner. Em princípio, os autores reconhecem o mérito de Castoriadis em eliminar, da idéia de revolução, o catastrofismo: a transformação radical da sociedade não pressupõe um evento único a cortar o devir em dois, mas a adoção progressiva de práticas específicas - a autogestão operária, partidária, pedagógica, etc ... Embora estas formas de gestão remetam ao problema da totalidade social, não devem ser, por este motivo, paralisadas: não há como remodelar a sociedade em seu conjunto na ausência da criação/invenção de práticas cotidianas efetivas. Exatamente por reconhecerem a presença destas idéias na elucidação castoridiana é que Châtelet e Pisier-Kouchner lamentam o exagerado "sociologismo" e o insuficiente "politicismo" do conceito de social-histórico.
O argumento dos autores é semelhante ao contido na primeira objeção, mas as conseqüências aventadas são mais graves. Supondo-se que a noção de social-histórico reintroduza uma determinação sociológica global, os conceitos de instituinte e instituído arriscam-se a se tornar meros substitutos da antiga oposição proletariado x burguesia (ou da nova, executantes x dirigentes). Com isso, torna-se provável a emergência de um maniqueísmo teórico-político globalizante do tipo bem (sociedade inventiva) versus mal (sociedade herdada), que mais encobre do que traz à luz a contingência, diversidade e multiplicidade dos exercícios de poder. Sabendo-se ser esta contingência histórica a base do representar/dizer apta a convergir com o fazer revolucionário concebido por Castoriadis, tal conseqüência só pode ser vista como lamentável. Aparentemente, ele está cônscio deste risco, ao declarar:
A sociedade instituída não se opõe à sociedade instituinte como um produto morto a uma atividade que o originou; ela representa a fixidez/estabilidade relativa e transitória de formas-figuras instituídas em e pelas quais somente o imaginário radical pode ser e se fazer como social-histórico. A auto-alteração perpétua da sociedade é seu próprio ser, que se manifesta pela colocação de formas-figuras relativamente fixas e estáveis e pela explosão dessas formas-figuras que só pode ser, sempre, posição-criação de outras formas-figuras. (Castoriadis, 1986, p.416).
Neste fragmento, Castoriadis procura escapar ao maniqueísmo/glo-balismo político da oposição inventivo x herdado (instituinte x instituído), recorrendo à figura da auto-alteração constante (contingenciação de ambos os vetores). Apesar do modo de conceituação nos parecer extremamente claro, o funcionamento concreto destas idealidades não é decorrência inelutável de seu rigor: a nosso ver, os riscos apontados por Châtelet e Pisier-Kouchner jamais deixaram de se fazer sentir no funcionamento da elucidação castoriadiana, tornando-a, muitas vezes, uma chave efetivamente tão completa sociologicamente quanto inútil politicamente.
Vale acrescentar, no entanto, que este não foi um inescapável destino. Desde o início de seu trajeto teórico-político, Castoriadis insistiu na necessidade de vincular, sem interrupções, a produção conceitual à análise das práticas em curso.30 Talvez por isso tenha sido um dos poucos intelectuais de esquerda capaz, senão de anunciar, ao menos de se inquietar com o que aos demais permanecia invisível às vésperas de maio de 1968. Em março de 1963 (no nº 34 de Socialismo ou Barbárie) publica, com Claude Chabrol, um artigo intitulado Juventude estudantil, em que já se faz sentir a futura crise. Em setembro de 1964, os sociobárbaros são praticamente os únicos intelectuais de esquerda, na França, a emprestar algum eco às revoltas de jovens desencadeadas em Berkeley, na Califórnia.
Lembremos, em acréscimo, que a menos de um ano do famoso maio, o livro Jeunes d'aujourd'hui - "Livro Branco" do Ministério da Juventude e dos Esportes, editado pela Documentation Française - oferece a imagem de jovens de contornos frouxos, pouco mobilizados pelos desafios políticos e quase nada sensíveis ao problema da democratização do ensino. Ver-nos-emos, neste caso, diante de algo que significa muito mais do que a baixa confiabilidade das pesquisas ao estilo positivista. Deparar-nos-emos com a relevância da análise conceitual em situação, inseparável das práticas históricas em curso, mais apoiada no paradigma do "sonho" que no da "mesa".
Ao início deste artigo, ligamos nossa tentativa de retomada do percurso castoriadiano a uma prática de resistência ao presente. E nosso presente é, decerto, o de um imenso "Livro Branco", em que não somente jovens, como trabalhadores, operários, camponeses, intelectuais, idosos, mulheres, crianças etc., etc., são figurados enquanto comportados consumidores de imagens, submetidos às Leis do Mercado, conformados com "o que é", protótipos de um legein-teukhein identitário, hegemônico porque coincidente com determinado "Deus Logos"- o do "fim da história" - que exibe, como aspectos mais visíveis, o "fim do socialismo real" e a "ascensão globalizada do modelo neo-liberal".
"A palavra futuro está em decadência"- afirmou o escritor mexicano Octavio Paz (Apud Silva, 1996, p.7), reeditando, em versão lingüística, a repetida alegação do declínio das utopias. Neste sentido, por mais que o pensamento de Castoriadis se veja, por vezes, aprisionado em perturbadoras encruzilhadas, julgamos que prossegue inegavelmente fecundo enquanto deriva contingenciadora, ao insistir na proposição de que o social-histórico se auto-institui, a cada momento, como produto nunca integralmente previsível de um imaginário radical, por mais que este imaginário possa instituir, em determinados momentos, exatamente o fim definitivo dos radicalismos e, conseqüentemente, de qualquer virtualidade criadora.
Vivemos, portanto, e por mais paradoxal que isto pareça, uma utopia ativa do fim das utopias. No coletivo (nem sempre, talvez) anônimo que a institui, estamos inexoravelmente implicados - constituintes do que se pensa e faz; constituídos pelo que se pensa e se faz; união/tensão, como diria Castoriadis, com todos os problemas que isto possa implicar, entre instituinte e instituído. Quiçá o escape ao maniqueísmo carregado por esta dupla de conceitos exija, conforme aquele filósofo tantas vezes sugeriu e praticou, que abandonemos, enquanto agentes sociais e intelectuais que se desejam "de esquerda", o primado da theoria - "aquilo que é" - , em benefício da atenção e abertura à história se fazendo. Em nossa perspectiva, isto significa estarmos prontos a analisar, em situação, mais o que nossos dizeres e fazeres promovem do que aquilo que revelam/representam.
Derivaríamos assim, talvez, ao lado de certo Castoriadis, para a posição de agentes de contingenciação/criação, correndo o desejável risco de pôr em crise nosso legein/teukhein identitário-disciplinador.31 Dentre outros companheiros discursivos, a radicalidade do pensamento castoriadiano permanece, a nosso ver, força viva em tal empreitada - a de "fazer o que não é", ou seja, o múltiplo, a criação, a vida ... o justo?
CONDE RODRIGUES, H.B. Cure, Guilt and Radical Imaginary in Cornelius Castoriadis: The Course of a Social-Barbarian. Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.2, p.87-138, 1998.
Abstract: This article accosts the theoretic-political procedure of Cornelius Castoriadis within the period which extends itself from the immediate post-war to the decade of 1970 - moment of the publication of The Imaginary Institution of Society. The ties between theoretic and social constitutions of the castoriadian concepts and analysis are emphasized, as well as the relevance of the same within a discussion of the contemporary world.
Index terms: Castoriadis, Cornelius, 1922-1997. Socialism. Marxism. Phylosophy. Politics. Sociology.
Index terms: Castoriadis, Cornelius, 1922-1997. Socialism. Marxism. Phylosophy. Politics. Sociology.
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1 A grosso modo, estes momentos coincidiriam com as décadas de 50, 60 e 70.
2 Segundo Lyotard (1975), o termo deriva indica que "entre uma posição e outra há deslocamento, não superação; (...) acontecimento e não negatividade." (p.20).
3 Algumas observações quanto à presença do pensamento de Castoriadis no Brasil: visitou o país diversas vezes - a primeira em 1982 e a última em 1997, pouco antes de seu falecimento; grande parte de seus trabalhos está traduzida para o português, como pode ser constatado por nossas referências bibliográficas; tais trabalhos continuam despertando polêmica e interesse entre nós, conforme evidencia a publicação de duas teses brasileiras recentes (ver Amorim, 1995 e França, 1996). O leitor interessado em acompanhar alguns dos debates de Castoriadis com a intelectualidade brasileira pode consultar com proveito Castoriadis et al., 1992 (transcrição do seminário promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre em 1991).
4 Dentre estes acontecimentos, podemos citar a invasão das tropas soviéticas a Berlim Oriental (1953) e a Budapest (1956); a posição mais do que ambígua de socialistas e comunistas durante as lutas de libertação da Argélia, chegando a apoiar a instauração de poderes ditatoriais e a violação de direitos internacionais; a invasão do canal de Suez promovida pelos governos francês (de maioria socialista) e inglês; o famoso Relatório Krushev (1956), denunciando o totalitarismo stalinista.
5 No segundo artigo da trilogia, uma nota de rodapé frisa que as posições do autor não exprimem necessariamente o ponto de vista do conjunto. Desde muito cedo Castoriadis e Lefort se opõem quanto ao problema da organização. O último vê na idéia de um partido que se mantenha revolucionário uma contradição nos termos: o partido, para Lefort, gera a burocracia "como a nuvem engendra a tempestade." (Vidal-Naquet, 1989, p.24). Sendo assim, abandona Socialismo ou Barbárie em 1958, deixando com seu contraditor o projeto partidário.
6 No que tange à forma de organização revolucionária, são os conselhos operários do Leste Europeu (Polônia e Hungria, especialmente) - lugares de criação e decisão coletivas, a qualquer momento revogáveis -, que se tornam o modelo de Castoriadis. A presença de formas análogas em países do Ocidente o leva a divisar a eventualidade de partidos revolucionários, onde a autogestão seria o remédio contra a burocratização.
7 Os dez últimos números de Socialismo ou Barbárie se haviam dedicado a uma análise detalhada destes fatores.
8 Assinale-se a quase coincidência da publicação do último volume de Socialismo ou Barbárie com a de Militant chez Renault, de D. Mothé - fresador na Renault, delegado sindical e antigo membro de Socialismo ou Barbárie. No livro, publicado pela Seuil, desenvolve-se uma análise das implicações dos operários com o processo de trabalho e denuncia-se a degenerescência do socialismo burocrático.
9 Expressão muito usada por Freud, retomada por Castoriadis no texto em questão (p.151).
10 A publicação de La Nouvelle Classe Ouvrière, de S. Mallet , pela Seuil, dar-se-á em 1963. O livro reúne três monografias sobre trabalho em empresa e põe em questão a noção marxista global de "classe operária", matizando sua constituição segundo as diferentes fases do capitalismo.
11 Lyotard e Souyri se voltarão, à época, para Pouvoir Ouvrier, outra publicação onde pontificavam os sociobárbaros.
12 Seguindo a sugestão de Eguchi (1989, p.49-58), podemos estabelecer a seguinte periodização para as reflexões de Castoriadis: crítica da sociedade russa (44-8); crítica da economia marxista (48-54); reconstrução da imagem do socialismo (55-8); reexame da organização revolucionária (58-9); análise do capitalismo moderno (59-61); crítica do marxismo em seu conjunto (61-4); trabalhos filosóficos (64 em diante).
13 Ver, principalmente, Castoriadis (1960, 1961).
14 Num argumento análogo ao de Althusser, embora conducente a conclusões totalmente opostas, Castoriadis repudia os "marxistas sofisticados" que só querem ouvir falar dos manuscritos de juventude de Marx, cuja atitude, a seu ver, consiste em dizer: "... a partir dos trinta anos, Marx não sabia mais o que fazia." (ver Castoriadis, 1986, p.26).
15 Para críticas ainda mais sibilinas à antropologia marxista, ver Clastres, 1982.
16 O que Castoriadis chama comportamento criador (de indivíduos, grupos, massas ou sociedades inteiras) é de tal relevância para suas concepções que nos obriga a passar momentaneamente da análise da vertente meta-marxista à da ante-estrutural: antes que as "premissas" possam determinar as "conclusões", há que elucidar como se põem as próprias "premissas". É este o problema histórico por excelência, sem o qual a própria história se dilui num determinismo causal que a faz "não mais ser".
17 Castoriadis salva apenas, entre os marxistas, a pele de G. Lukács em História e Consciência de Classe - livro redigido numa época em que o filósofo húngaro ignorava alguns dos manuscritos importantes da juventude de Marx.
18 Lembremos que no momento da redação de Marxismo e teoria revolucionária, Lacan está em plena reformulação logicista. Castoriadis, membro da Escola Freudiana de Paris, está mais próximo dos clínicos. Em 1969, quando se der a saída do chamado "4º Grupo" - Valabrega, Perrier e Piera Castoriadis-Aulagnier -, Castoriadis o acompanhará. O 4º Grupo, logo chamado OPLF (Organização Psicanalítica de Língua Francesa) editará, pela PUF, a revista Topique, em substituição a L'Inconscient, criado em 1967. Castoriadis publicará ali com frequência. Dentre os artigos, ver: Epilegômenos a uma teoria da alma que se pôde apresentar como ciência (L'Inconscient, n.8, out. 1968) e A psicanálise, projeto e elucidação (Topique, n.19, abr. 1977), ambos reeditados em Castoriadis (1987a).
19 Embora o termo homem apareça freqüentemente na pena de Castoriadis, pensamos que não recai inteiramente nas aporias do humanismo. Diríamos que fala de um homem com "h" minúsculo ou, talvez, "homem sem h"...
20 O conceito de social-histórico busca evitar a dissociação sincronia/diacronia, tratando-as em imanência num único termo: "o que é" social (sincrônico) ou histórico (diacrônico) para uma sociedade é acontecimento ... sócio-histórico!
21 Em Castoriadis, aliás, toda linguagem é abuso de linguagem, jamais sendo esta redutível ao puro código racional e determinado - sua dimensão conjuntista-identitária.
22 "Instituições", aqui, no sentido vulgar do termo. A instituição no sentido conceitual (poiesis, criação) não é visível e é dificilmente dizível.
23 Efetivamente, Castoriadis fala em completar a proposição de Freud pelo seu inverso. Assinala, porém, que jamais se trata de uma tomada de poder pela consciência em sentido estrito: "O desejo, as pulsões (...) sou eu também, e trata-se de levá-los não somente à consciência, mas à expressão e à existência. Um sujeito autônomo é aquele que sabe ter boas razões para concluir: isso é bem verdade, e: isso é bem meu desejo." (Castoriadis, 1986, p.126).
24 Para uma refutação desta concepção, remetemos mais uma vez às obras Pierre Clastres &, para quem as sociedades primitivas são "sociedades de abundância".
25 Segundo Castoriadis, considerar o sentido como simples resultado da diferença de significantes é transformar as condições necessárias para a leitura da história em condições suficientes de sua existência.
26 Freqüentemente se encontram passagens entre um e outro. L. Strauss, por exemplo, acaba por remeter suas sintaxes culturais (combinações de elementos a-significantes produtores de sentido) à ordem das coisas (estrutura real do cérebro humano).
27 Este "coletivo anônimo" não implica em qualquer harmonia pré-estabelecida. A auto-instituição do social histórico comporta assimetrias, complementaridades, violentações, dominações, etc ...
28 "Ensidique", no original, como condensação de ensebliste e identitaire.
29 Parece-nos que as ressonâncias "ontológicas" (no sentido herdado) de Castoriadis derivam, em parte, de suas inserções marxistas e/ou psicanalíticas. Em ambas as disciplinas proliferam os grandes conceitos "de topo" (Estado, relações de produção, modo de produção, imaginário, simbólico, alienação, ideologia) que redundam quer numa aplicação um tanto mecânica - o que não é o caso de Castoriadis -, quer na necessidade de elaborar mediações, incapazes de eliminar o fato de que o ponto de partida do raciocínio esteja posto na totalidade conceitual afirmada ao início. No caso de Castoriadis, este ponto é "o instituído", "o legein/teukhein identitário", "o simbólico" ou "o pensamento herdado", conforme sugerem Châtelet e Pisier-Kouchner.
30 Embora Socialismo ou Barbárie se tenha dedicado especialmente ao exame da produção econômica, este nunca foi seu campo exclusivo de análise. A aproximação de educadores e psicossociólogos ao grupo, durante os anos 60, acabará por configurar uma singular herança político-conceitual, da qual a autora deste trabalho se considera tributária. Desde sempre analistas sobre o terreno, os futuros analistas institucionais socioanalíticos irão aliar variados campos situacionais de intervenção - escolas, universidades, grupos militantes, organizações religiosas, estabelecimentos de formação profissional, centros culturais - a um campo conceitual de análise no qual o conceito de instituição será, em grande parte, derivado das concepções de Castoriadis.
31 O termo disciplinador denuncia a presença, em nossas objeções a certas facetas do pensamento de Castoriadis, de algumas ressonâncias foucaultianas. Monstruosidade epistemológica, decerto, seria dita uma adesão indiscriminada aos dois tipos de abordagem. A forte presença de ambos em nossa formação, contudo, exige que respeitemos mais a história que a coerência teórica.
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